18/06/2014



O POETA GRAXEIRO
Gileno Guanabara, advogado e sócio do IHGRN

Na visita que d. Pedro II fez à província da Bahia, no ano de 1859, dentre as autoridades locais que o recepcionaram, o soberano foi surpreendido e reverenciado pela presença de um poeta popular, o desabrido João Nepomuceno da Silva.

            A sua verve estava mais para a picardia audaciosa e irreverente de um Gregório de Mattos, de Laurindo Rabello, dos Pessoa da Silva, cujo sortilégio era o de não desperdiçar a oportunidade de atanazar a vida dos poderosos e seus privilégios. Tamanho era o rigor de suas críticas mordazes que o povo o apelidou de poeta graxeiro.

            Não perdoava a falta de sorte de sua amargurada vida, compensando suas frustações em atanazar o comportamento e escândalos impróprios para a época. Nesse aspecto, pesavam mais o seu caráter impulsivo e as firulas de um talentoso vate contrariado.

            Divulgada com certa antecipação a visita imperial à sede da Província da Bahia, as autoridades se preocuparam de estabelecer uma agenda de homenagens e recepções que comportassem a presença tão ilustre. Um boato se espalhou. Dava conta que João Nepomuceno gostaria de falar diretamente com o imperador. Certamente, a sua fala não corresponderia ao protocolo exigido para os cumprimentos de praxe. Pelo contrário, a sua fala seria a da irreverência e reclamos do povo. Dessa forma, o poeta graxeiro se manifestaria, como um direito seu, de sua livre pensamento e liberdade. Ninguém o impediria de se expressar perante o visitante ilustre. Portanto, as ameaças de prisão que passou a sofrer, as promessas para convencê-lo em contrário, nada o fez desistir do seu intento.

            No dia 7 de outubro, d. Pedro II chegou à sede da Província. Dois dias antes, Nepomuceno desaparecera. Ninguém sabia a respeito do seu paradeiro, somente boatos e conjecturas. Formara-se nas ruas o cortejo de recepção, as ruas embandeiradas, as moças das janelas atiravam pétalas de flores ao visitante. Ao final, no coreto do largo do Theatro (atual Praça Castro Alves), a tropa apresentou armas, enquanto a d. Pedro foram entregues as chaves da cidade das mãos do alcaide presidente, conselheiro Herculano Ferreira Penna. O povo delirou. Os olhos do imperador marejavam de tanta felicidade, tal a manifestação popular que o acolhia.

            Por fim, o cortejo solene se dirigiu ao salão nobre do palácio, dando-se as apresentações dos deputados, dos juízes, dos vereadores, dos chefes políticos, com os devidos afagos e abraços. De repente, um murmurinho ecoou entre os presentes. Sem que se soubesse de como, nem de onde, adentrou na sala o poeta graxeiro, para surpresa do anfitrião e das autoridades gratas.

            Com frieza tumular, indiferente a preocupação dos olhares que se entrecortaram, o poeta dirigiu-se ao imperador, a quem reverenciou em genuflexão respeitosa. Sem soçobro, retirou do bolso da fatiota o alfarrábio em tiras, aumentando ainda mais a dúvida sobre o que teria o poeta escrito, para ler naquela ocasião. D. Pedro, num gesto cavalheiresco, aquiesceu e sinalizou permitindo a sequência do ato. João Nepomuceno iniciou a peroração de sua verve: “ – Majestade dá licença... // Fardas saiam dos cantos bolorentas,/ De balões uma vez fiquem varridas/ As lojas do commercio brasileiro/ Escovem-se as caponas e se remendem./ Velhos façam a barba; as moças comam/ De sepo, e fitas se lhe façam ornadas/ Colletes de três terças e dois palmos./ Gravatas grandes de atrevidas pontas/ Calças estreitas de fevella e cós.” //  “Que cem anos já têm, se escovem hoje;/ Chapéos sem abas de afliladas copas,/ Camisas grandes, que a canela roçam,/ Tudo veja contente a luz do dia,/ E o grande arsenal se apinhe de povo;/ Não entrem negros que não têm monarca/ Os pobres também não, que não têm rei.”.

            A introdução poética já antecipou a exposição das mágoas do poeta que prosseguiu em referência ao professorado incompetente, apesar da preocupação que causava, à exceção da tranquilidade do imperador: “Primeiro que os professores/ Dão lição lá nas escolas,/ De manhã de chambre velho./ De tarde de camisolas.”. E numa referência ao tratamento dispensado aos internos da Santa Casa, satirizou em versos: “O café, que não ilude,/ Parece agua barrenta;/ É o café que o mal aumenta,/ Bem adverso à saúde./ O mingáu parece grude/ Feito dagua e farinha,/ Ralo caldo de galinha/ Bem picado de vinagre;/ Parece tripa de bagre/ Misturado com sardinha.”

            Àquela altura dos acontecidos, a insolência do poeta graxeiro, que parecia não ter mais fim, investiu contra a magistratura: “A nossa Relação de bons e maos/ Desembargadores se compõe; é certo/ Que ali há mais brejeiros que homens sérios.” E em referência às graças que a visita a todo lixo na Província encobriu, vaticinou: “Senhor meu, toda a Bahia/ Nada aqui em porcaria./ Eu vos afirmo, eu vos juro/ Se não fosse a vossa vinda/ Oh! Existiria ainda/ Em cada canto um monturo.”

            Não fora a condescendência do soberano que ouvia infenso ao desaforo do poeta, contrariamente ao desespero manifesto pelo presidente da Província e o chicote fez estalar entre as paredes do Palácio: “Ninguem mette aqui prego sem estopa,/ Ninguem faz um favor sem pedir três.” E concluiu a apologia de seu desabafo, sem alterar o monocórdio: “Eu, João, poeta novo,/ Graxeiro denominado,/ Que não tarda proclamado/ Ser defensor de seu povo, Faço sciente que o rei/ Que visitou nossa grei,/ Recebeu meu relatório/ Este folheto notório/ Que sobre o povo atirei.”

            No silencio que a seguir durou, o poeta graxeiro, em despedida, fez a última saudação ao monarca e, em passos cadenciados, se retirou do recinto, sem ser aparteado. A sua sátira estava registrada solenemente, apesar das advertências e tentativas de conter a sua indignação. A partir de então poderiam surrá-lo, prendê-lo, mas a sua vindita estava cumprida. A sua história estava contada.

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