04/08/2020



Do Éden ao coronavírus
Tomislav R. Femenick – Jornalista

No começo era o nada. Depois fez-se a luz e o universo. E nele, o nosso planeta, o sol, a lua, os cometas e as estrelas. Mas Deus queria mais, criou a terra, a água, o fogo e o vento; criou o dia e a noite. E, para coroar sua criação, criou o homem à sua imagem e semelhança. Mas era insuficiente. Criou a mulher e os colocou para morar no Éden. É pouco: não ter que trabalhar, morar no Paraíso sem ter que pagar IPTU nem taxa de condomínio e, além de tudo, ser casado e não ter sogra. É... o ser humano era o centro de todo o universo; uma espécie de antropocentrismo capenga, uma velada contraposição ao teocentrismo, que sempre põe Deus no lugar supremo. Essa é a história contada por várias religiões, para explicar a criação do cosmos e do ser humano.
O primeiro percalço foi aquele da cobra e da maçã. Pura sacanagem. A cobra levou Eva na conversa e essa sussurrou baixinho no cangote de Adão e deu no que deu: foram defenestrados e o jardim do Éden ficou guardado por querubins, armados com espadas flamejantes.
Mesmo despejado e tendo que trabalhar para ganhar o seu sustento, o homem continuava no centro de tudo, pois a sua casa natural, o planeta Terra, ficava no centro do Universo e em seu entorno giravam todos os outros corpos celestes. Aristóteles e Ptolomeu – o primeiro um dos maiores filósofos, e o segundo o maior astrônomo de então – estavam aí para garantir essa firme posição, o geocentrismo, aceito e sacramentado pela Igreja de Roma.
Estava tudo bem assentado e aceito, até que no século XVI o castelo começou a cair.  Galileu Galilei (um físico, matemático, astrônomo e filósofo italiano) e Nicolau Copérnico (um cônego da Igreja Católica, astrônomo, matemático, administrador, jurista e médico polonês) desenvolveram, paralelamente, a teoria heliocêntrica, isso é, de que o sol é que era o centro de tudo. O geocentrismo cedia o lugar ao heliocentrismo, agora com resistência da igreja. Todas essas teorias tinham duas coisas em comum: a primeira, explícita, a concepção fechada e finita do Universo; e a segunda, implícita, a relevância do ser humano.
Esse “estado da ciência” permaneceu por um bom tempo, com pequenas diferenças de entendimento, até que estourou a bomba: o sol é apenas uma estrela de quinta categoria, e como a Terra, há outros sete planetas: Mercúrio, Vênus, Marte, Júpiter, Saturno, Urano e Netuno; além de “Plutão que já foi planeta”, mas foi excluído. Quando a humanidade começou a se acostumar com o seu rebaixamento de categoria, outra bomba explodiu: o sistema solar inteiro é apenas um pequeno ponto na periferia da nossa Galáxia, a Via Láctea. O sol é apenas uma das cem bilhões de nebulosas, aglomerados, estrelas, poeira e gás do sistema galáctico.
Eita porrada certeira na moleira do ser criado à imagem e semelhança de Deus; agora reduzido a pó de titica de pulga de barata; a insignificância absoluta. Um detalhe a mais, existem bilhões de galáxias no Universo.  
Depois de humilhado no sentido macro e esmagado pela grandeza do Universo, finito ou não (mas essa é outra conversa), agora a raça humana está sendo desafiada e devorada por um ser minúsculo, pequenininho, invisível a olho nu, o novo coronavírus. Somente microscópios potentes, como o existente no Instituto Oswaldo Cruz (IOC/Fiocruz), do Rio de Janeiro, mostra, em detalhe, a configuração do vírus e o momento exato em que uma célula é infectada pelo novo coveiro da humanidade. O estrago tem sido feio. Dezenas de milhares de pessoas morrem todos os dias, infectadas pelo “maledetto”, a economia do mundo está em frangalhos, a qualidade e o nível de vida dos mais pobres está em declínio crescente.
Enquanto isso, muitos se julgam infectáveis pelo vírus, igual àquele desembargador lá de São Paulo. O pior é que esses intocáveis colocam em risco a vida das outras pessoas com quem convivem – e até a de quem eles nem conhecem.

03/08/2020


Fora de moda?
Existem leis que não pegam. Existem leis que o tempo e o progresso tornam ultrapassadas. Esses tipos normativos, um e outro, abundam no Brasil. Muitos aqui não gostam de seguir as leis do país, sobretudo aquelas que lhes impõem obrigações.
Uma norma que parecia se encaixar em um desses dois casos – e talvez numa mistura dos dois – era o já revogado art. 240 do Código Penal, que tipificava o crime de adultério, com pena de detenção, de quinze dias a seis meses. Não vou adentrar na discussão moral da conduta, bastante grave para alguns, sobretudo se praticado pela mulher. Hipócrita e injustamente, elas sempre pagavam o pato. O fato é que esse crime foi revogado por uma lei de 2005. Pelo que sei, nunca pegou de verdade. Considerava-se muito severa a repressão criminal para tanto. Ou, talvez, com o passar dos tempos, se aplicada a lei, tivéssemos de prender todo mundo.
Trago aqui essa questão apenas porque, outro dia, presenciei uma divertida discussão sobre o crime de bigamia, que, ao contrário do adultério, ainda está presente entre nós. Segundo o nosso Código Penal: “Art. 235 – Contrair alguém, sendo casado, novo casamento: Pena – reclusão, de dois a seis anos. § 1º – Aquele que, não sendo casado, contrai casamento com pessoa casada, conhecendo essa circunstância, é punido com reclusão ou detenção, de um a três anos. § 2º – Anulado por qualquer motivo o primeiro casamento, ou o outro por motivo que não a bigamia, considera-se inexistente o crime”. Diz-se que o bem tutelado por esse crime seria o próprio casamento ou a família, o caráter monogâmico desta, uma expectativa que a sociedade nutre com a constituição do novo núcleo familiar. Há, claro, os diversos efeitos jurídicos gerados pelo casamento. Importantes efeitos, inclusive de ordem patrimonial. E, se há uma forte justificação para punir a bigamia, ela estaria aqui, na disciplina desses efeitos.
É bom lembrar que a união estável não entra nesse rolo para fins de cometimento do crime. Embora equiparada ao casamento para fins civis, ela não o foi no Código Penal, no art. 235, que fala expressamente em “casamento”, não devendo essa norma penal ser interpretada extensivamente.
Aliás, por falar na interpretação do art. 235 do Código Penal, há a história – não sei se anedota – do juiz potiguar, até bem conhecido, muito apegado ao texto da lei, que, atuando no interior do estado, teve de julgar um caso de um “cabra casador”. Para esse juiz, o direito sempre foi aquilo que estava no Código. Ele era codicista, seguidor da escola francesa da exegese e devotado a Napoleão Bonaparte (1769-1821). Dizia que o Código – o de Napoleão, na França; o dele, no nosso sertão – era a única fonte do direito. E, como juiz, ele era apenas a “boca da lei”. Quando deu de cara com o caso do cidadão acusado do crime de bigamia, colhidas as evidências, ele absolveu o “cabra”. Este era casado várias vezes. Não era bígamo. Era polígamo. E isso não estava criminalizado na epígrafe do seu código.
Já na discussão que assisti outro dia, alguém defendeu a possibilidade de se casar no Brasil com duas ou mais mulheres ou homens, a depender do gosto. Ou até mais gente. Tudo junto e misturado. Disse que a monogamia estava fora de moda. Falou que devemos reconhecer uma moral hoje relativizada a respeito do casamento, com a existência de relacionamentos amorosos plúrimos, um tal de “poliamor”, que levaria a abolitio, de fato, do crime de bigamia. Deu ainda como argumento o fato de que devemos, hoje, admitir os mais diversos tipos de arranjo familiar. Por que não esse? “Existem leis que ficam ultrapassadas, démodées. Isso ainda vai ser levado à Suprema Corte, podem apostar”, disse ao final. Pelo contexto, não achei que estivesse brincando.
Bom, o juiz potiguar citado acima, embora por vias tortas, deu alguma razão a essa tese. E você, caro leitor, o que acha?
Marcelo Alves Dias de Souza
Procurador Regional da República
Doutor em Direito (PhD in Law) pelo King’s College London – KCL

27/07/2020


A peste do jurista
Justiniano I (483-565) foi imperador bizantino (romano do Oriente) de 527 a 565. Sua fama é enorme. Para o direito, ele é certamente o mais importante desses soberanos. Justiniano foi o compilador – ou mesmo o codificador – do direito romano antigo, com o seu “Corpus Iuris Civilis”, uma monumental obra legislativa e doutrinária composta de quatro partes: o “Código”, o “Digesto”, as “Novelas” e as “Instituições”. Ali está condensado um até então disperso direito, nos mostrando ainda como era o raciocínio e a argumentação jurídica romana (especialmente no Digesto), assim como a sua base principiológica (nas Instituições). Casado com Teodora (circa 500-548), mulher hábil politicamente, o reinado de Justiniano foi uma era de grande atividade, de reformas e de tentativa de expansão do Império, restando ele conhecido, à época, por sua energia e denodo, como o “imperador que nunca dorme”. Ele faleceu em Constantinopla (atual Istambul). E ganhou para a posteridade o apelido de “o Grande”. Merecidamente.
Mas Justiniano teve também os seus insucessos. No direito, inclusive. Justiniano pretendeu que o “Corpus Iuris Civilis” se tornasse a única fonte do direito de então, devendo ser aplicado pelos juízes do seu Império, que estariam proibidos de fazer uso de outras fontes e até mesmo de interpretar/comentar o “Corpus”. Entretanto, à sua época, o “Corpus” teve mais sucesso no Oriente que no Ocidente. No Ocidente de então, dada a conhecida invasão dos bárbaros, sua influência foi menor, tendo apenas voltado à cena no século XII, como referência do chamado “direito comum”, alastrando-se esse prestígio até os nossos dias.
Ademais, embora Justiniano tenha lutado para restaurar a grandeza do Império Romano, estimulando a administração, a indústria, o comércio, as ciências e as artes, ele falhou no que toca ao Ocidente. Ele buscou reconstruir o Império Romano indo atrás de sua porção ocidental, perdida aos bárbaros em 476. Fez isso por razões de ordem econômica e política, mas também por motivos religiosos. Para ele, Roma era a quintessência do mundo católico. Mas não deu.
Muitos atribuem esse insucesso à chamada “Peste de Justiniano”. Uma pandemia. Talvez o primeiro relato de peste bubônica da história, que afetou o Mediterrâneo e o Império Bizantino, especialmente Constantinopla, entre os anos de 541 e 544. Uma das maiores pandemias de todos os tempos, com impactos semelhantes ao da Peste Negra, no século XIV. Falam em até 100 milhões de mortos. Em uma mortandade de metade da população da Europa e de Constantinopla.
Segundo Anne Rooney, em “A história da medicina: das primeiras curas aos milagres da medicina moderna” (M.Books, 2013), vinda do Egito, a peste varreu Constantinopla, “matando até 10.000 pessoas por dia no período crítico – os mortos ficavam pelas ruas, sem serem enterrados, de acordo com o cronista contemporâneo Procópio. Por volta de 600 d.C., a praga matou cerca de 50% da população da Europa”. O império foi gravemente afetado. Depopulação arrasadora. Economia devastada pelo colapso da agricultura. Fome. Tudo isso fez Justiniano perder a esperança de soberania sobre as áreas do Mediterrâneo outrora romanas. Anos depois, isso ainda ajudou na conquista árabe das terras bizantinas no Oriente Médio e na África.
Procópio de Cesareia (circa 500-565), historiador bizantino, citado por Rooney, faz um relato tocante da coisa: “durante esse tempo, havia uma pestilência, pela qual toda a raça humana quase foi dizimada”. Ela “tomou todo o mundo, e arruinou a vida de todos os homens”. E não deixou intocada “nem uma ilha ou caverna nem um encosta de montanha que tivesse habitantes humanos”. Não sei se é exagero poético.
Mas parece ser fato, como assinala Rooney, que a peste foi uma das culpadas “pelo início da chamada Idade das Trevas, quando avanços intelectuais e culturais na Europa aparentemente chegaram a ficar paralisados durante vários séculos, pois os médicos foram incapazes de conter ou curar a doença, e por isso muitas pessoas buscaram conforto na religião”. E se isso se deu no tempo de Justiniano, o Grande, imaginem agora, quando dependemos de homens pequenos.
Marcelo Alves Dias de Souza
Procurador Regional da República
Doutor em Direito (PhD in Law) pelo King’s College London – KCL
Mestre em Direito pela PUC/SP

26/07/2020



A carnaubeira
Tomislav R. Femenick - Jornalista

Em uma das minhas últimas idas ao oeste potiguar, deparei-me com uma visão, para mim, inusitada: na estrada, três caminhões transportavam troncos serrados de carnaubeiras. Até os anos 1960, as várzeas dos rios Açu e Apodi eram naturalmente embelezadas pelas gigantescas carnaubeiras e seu cultivo era uma atividade rendosa. As palhas da planta forneciam o pó valioso que gerava riquezas, que alimentava famílias inteiras e que faziam os proprietários ainda mais orgulhosos daquela beleza rentável. Isso foi durante o ciclo da carnaúba; sua época áurea.
Uma vez “apurado” (processo de separação do pó, que existe nas folhas da árvore), aquele pó se transformava em cera, que era exportada para a Europa e para os Estados Unidos, onde tinha o mais variado uso industrial como matéria-prima básica ou adicionada. No Brasil a cera de carnaúba também era usada em larga escala, inclusive nos discos musicais.
Não era somente a cera que gerava emprego, que tinha utilidade. A palha da carnaubeira servia como matéria prima em profissão artesanal das mais curiosas. Dela se ocupavam famílias inteiras no fabrico de esteiras, chapéus, bolsas, sacolas (urus), peneiras (urupemas) e vassouras. Nas fazendas era utilizada no aparelhamento de cangalhas e em coberturas de residências; nas salinas, na construção de baldes de solidificação do sal. Na época em que os carnaubais perdiam parte da sua beleza com a corte de palhas, ganhavam os proprietários com a venda dos produtos. Era a riqueza em marcha.
A percentagem do lucro nessas transações era alta, o que fazia crescer o interesse pelos carnaubais. Todos ganhavam: os proprietários, os trabalhadores, os agentes compradores, as firmas exportadoras e o governo, este com os impostos.
Acontece que muitos fatores conspiraram contra essa riqueza natural. Os imensos carnaubais do Rio Grande do Norte, antes elementos de beleza telúrica e produtores de riquezas, tiveram seus dias contados, como fatores econômicos. Suas palhas, seu pó, já não mais têm a procura de antes. A ciência descobriu produtos sintéticos que tomaram seu lugar. Já não mais se vê o trabalho exaustivo de homens a cortar e juntar a palha rica, a apurar o pó gerador de riquezas. Famílias já não mais se ocupam do artesanato da tecelagem de palhas.
As despesas com o corte dos carnaubais e cozimento do pó aumentaram em escala nunca esperada. Os mercados interno e externo diminuíram o consumo. A oferta de cera excedeu a procura, e as vendas dos produtos de artesanatos estavam longe de cobrir as despesas básicas de todo o processo produtivo.
Dos carnaubais saía apenas uma pequena percentagem de palha e cera. Uma tênue lembrança daquilo que foi uma atividade altamente lucrativa. Foi preciso parar para evitar prejuízos maiores. Foi o início do fim da economia da cera de carnaúba.
Diante destes fatores adversos, os produtores de cera foram perdendo interesse e, pouco a pouco, os imensos carnaubais ficaram esquecidos e isolados em sua solidão. Continuam apenas como beleza nativa.
No Rio Grande do Norte, especialmente, a atividade carnaubeira enquadrou-se no quadro de ocupações deficitárias. As despesas crescentes e a pouca comercialização do produto deixavam ocioso por muito tempo o capital empregado. Além do mais, com a demora de comercialização, a cera perdia peso, aumentando o prejuízo.
O resultado foi o abandono dos carnaubais, que estão condenados à extinção, quando muitos proprietários já iniciaram sua derrubada e a consequente “operação arranca do toco”, a fim de desocupar as terras para outros cultivos.
 Hoje a carnaubeira é simples madeira para construção; como vi naquela carga dos três caminhões.
Tribuna do Norte. Natal, 26 jul. 2020.