13/04/2020

SANTUÁRIO DE LEMBRANÇAS I

Valério Mesquita*

01) Do folclore humano e social de Macaíba, vale a pena resgatar a figura de “Sérgio Cabeceiro”. Esse era o seu nome sem sobrenome que percorria as ruas do centro da cidade, conduzindo mercadorias, fardos, de um comércio a outro, principalmente nos dias de sábado. Estatura mediana, barba branca por fazer, residia na periferia próxima, quando os pontos cardeais de Macaíba eram medidos da rua da Aliança ao Barro Vermelho, da rua do Vintém, ao Araçá e Pernambuquinho. Semanalmente, alcoólatra juramentado, Sérgio se embriagava após o trabalho e perambulava pela praça Augusto Severo, Cinco Bocas, ao redor do mercado público, mendigando e sempre cantarolando uma melodia sem pé, sem rima, nem cabeça, intitulada “A Baratinha” – que se supõe tenha sido uma antiga namorada. Recorro aos meus amigos de infância e adolescência que curtiram e testemunharam comigo os desempenhos de Sérgio, que se auto-intitulava, após a cantoria: “Eu sou um cabeceiro boçal!!”. Batista Pinheiro, Silvan Pessoa, Francilaide Campos, Tarso Cordeiro, Bridenor Costa Jr. (Costinha), Venício Ferreira, Chico Cobra, Nassáro Nasser (Danga) e tantos outros, hão de recordar a canção ligeira, simples, popular, mas carismática que se misturava com o sentimento telúrico, de transição mágica. “A Baratinha, a baratinha,/ a baratinha bateu asas e “avoou”.../ Aiá baratinha, aia baratinha,/ bateu asas e “avoou”./ Meninada celebrante,/Cinturinha de “retrole”/ Bote a chaleira no fogo/ Prá fazer café prá nós.../”. E, em voz afirmativa dizia com o dedo em riste: “Eu sou um cabeceiro boçal!”.
02) Bar Gato Preto, povoado por imensa galeria de vultos inesquecíveis que faziam dali o território sentimental da cidade. Era o balcão do cidadão que consagrava e desconsagrava, julgava e punia os que fossem achados em culpa. Na sinuca consagraram-se Perequeté, Banga, Geraldo Alcapone que maravilhavam os “pirus” com jogadas cerebrais. Antonio Assis, Waldemar Diógenes Peixoto, Né Macena, Paulo Marinho e Sabino eram frequentadores que também excursionavam na barbearia do cirurgião Zuca, PHD em escalpo de couro-cabeludo. Havia ainda outras figuras hoje impregnadas nas paredes do Bar e nas esquinas das Cinco Bocas comentando as ocorrências do seu tempo, dos idos de cinquenta e sessenta como chamas votivas que não se apagam.
03) Macaíba é rica em figuras folclóricas. Já fiz desfilar na galeria infinda inúmeras personagens. O “gango”, por exemplo, era o famoso cabaré macaibense onde pontificou um plantel digno de fazer inveja ao técnico Tite, da atual seleção brasileira de futebol. E de lá emerge Pirôba, rapariga de longo curso e discurso intermináveis nas campanhas políticas pelas ruas e bares da vida. Nos idos de oitenta, Pirôba não perdia uma carreata. Era “valerista” de carteirinha. Numa peregrinação política motorizada (ônibus, caminhões, automóveis, etc.) Pirôba foi advertida que deveria se retirar do ônibus, pois estava reservado somente às mulheres casadas. Discriminação intolerável que Pirôba reagiu matando a pau: “E mulher casada não f... não?”. E ficou.
04) Lúcia Araújo era uma funcionária da Prefeitura de Macaíba. Amiga de infância, Lúcia, tornou-se popular na cidade por ser muito prestativa nas “outras atividades” ligadas a igreja católica, ao cartório localizado na parte baixa da cidade e a delegacia de polícia local que ficava no alto do Conjunto Alfredo Mesquita. Gostava de “advogar” problemas e queixas junto a delegacia onde desfrutava de prestigio incomum. Portava uma pasta com papeladas difusas e profusas sobre as questões da periferia macaibense. Assisti, em várias ocasiões o atendimento a sua clientela na minha casa com aquele fraseado cartorial: “O seu processo sobe hoje para a delegacia e amanhã desce para o cartório!!”, sentenciava Lúcia didaticamente. De pequena estatura, voz rouca proveniente do vício de fumar, ela tinha um apelido que detestava ouvir: “Lúcia Pitôco”. Mantinha com o desportista José Felix Barbosa uma rusga antiga e nunca curada. Um dia, foi designada a servir na secretaria de esportes, onde reinava Felix. Este ao vê-la entrar na repartição, exigiu: “Dona Lúcia, aqui está o livro de ponto”. A funcionária encrespou-se, pegou a sua pasta indefectível e arrematou à queima roupa:  “Não assino ponto que não sou de xangô, nem tenho chefe que não sou índia”. Escafedeu-se e nunca mais voltou. Lúcia politicamente sempre foi minha correligionária, a começar dos seus pais Luiz Cassimiro de Araújo e Luzanira Lima de Araújo que residiam à rua do Pernambuquinho. Criou os seus filhos e educou-os. Será lembrada pela maneira extrovertida de ser, fiel às amizades e as inimizades também. Um tipo popular inesquecível.
05) Maria Cabral era morena, magra, cabelos longos, vestia-se de preto em sinal de protesto pelas coisas ao seu redor que sempre reprovava. Fazia discursos intermináveis praguejando contra a ordem constitucional dos seres e costumes. Com uma rosa vermelha presa aos cabelos, caminhando sempre pelo meio da rua, dava-nos a impressão de uma “Diana” perdida ou bêbada de um pastoril imaginário. Ai de quem dissesse: “Vai trabalhar Maria Cabral”. Despachava uma verdadeira cascata de impropérios que atingia até a 3ª geração do xingador. Morreu há cerca de 50 anos e com ela os seus mistérios, pois não se vê mais dessas Marias como antigamente.
Registrarei outras figuras do folclore popular macaibense.
(*) Escritor



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