07/08/2018





Marcelo Alves publicou no grupo Leitura de domingo.



Marcelo Alves


Sobre Francisco de Vitória

O “Século de Ouro” da civilização ibérica – na política, na teologia, na filosofia e, sobretudo, na literatura – também nos deu bons frutos no direito. Depois de Bolonha nos séculos XII e XIII, Orleans em fins do século XIII e Bourges no século XVI, foi na belíssima Salamanca, nos séculos XVI e XVII, que um grupo de pensadores – quase todos teólogos, filósofos e juristas – se juntou para fazer da sua universidade um local de vanguarda em quase todos os ramos das ciências humanas e sociais, incluindo a jurídica.

Como explica Antonio Padoa Schioppa (em “História do direito na Europa: da Idade Média à Idade Contemporânea”, edição da WMF Martins Fontes, 2014), a principal característica dessa “Escola espanhola – mesmo na variedade das posições assumidas por seus expoentes – é a ascendência teológica comum a todos. De fato, trata-se de professores não de direito, mas de teologia moral, geralmente membros da erudita ordem dos pregadores dominicanos, ou da nova ordem dos jesuítas, que decidiram trazer para o centro de seu ensino e de suas pesquisas alguns aspectos centrais da problemática jurídica. Partindo geralmente do comentário àquela parte da grande Summa de Tomás de Aquino que tratava justamente do direito, os mestres de Salamanca não apenas enfrentaram o tema da justiça, da lei, do direito natural, do direito divino, dos status pessoais, dos poderes do príncipe e de seus limites, mas foram muito além, a ponto de examinar analiticamente muitos institutos específicos do ordenamento normativo: por exemplo, a propriedade, as sucessões hereditárias, os contratos, a usura. Ao fazer isso, partiam, de acordo com sua formação e com seu papel, de premissas de natureza teológica, das quais extraíam consequências precisas no plano da disciplina jurídica dos institutos por eles analisados. Profundos conhecedores não apenas da teologia, mas também do direito romano e do direito de seu tempo, eles buscavam medir a congruência das normas do direito romano com os princípios do direito natural e divino”.

O primeiro grande nome da Escola de Salamanca foi Francisco de Vitória (1483?-1546). Como explica Jean-Marie Carbasse (em “Que sais-je? Les 100 dates du droit”, editora PUF, 2015), “nascido em Burgos ou em Vitória por volta de 1483, entrando na ordem de São Domingos em 1504, Vitória foi um dos fundadores da Escola de Salamanca, berço do direito natural moderno”. Francisco de Vitória estudou na Sorbonne parisiense entre 1508 e 1522, quando se doutorou. Em Paris, já brilhando, deu aulas. Foi também professor de teologia em Valladolid e, depois, a partir de 1526, em Salamanca. Vitória reformou o ensino teológico na Espanha, antes fundado nas “Sentenças” (século XII) de Pedro Lombardo (1100?-1160), dando-lhe orientação tomista. Não obstante profundo conhecedor dos clássicos latinos, desde Cícero (106-43 a.C.) a Sêneca (4 a.C.- 65), ele era sobretudo um seguidor do grande São Tomás de Aquino (1525-1274) e da “Suma Teológica” (1265-1273), embora sua concepção de direito natural, defendida nos seus anos em Salamanca, não coincidisse exatamente com aquela elaborada pelo “Doctor Angelicus” na segunda metade do século XIII.

Francisco de Vitória deixou muitos escritos, entre os quais “De Potestate Civile” (1528) e “De Potestate Papae et Concilii” (1534). E, mesmo que impregnada de teologia (especialmente a teologia tomista), a contribuição de Francisco de Vitória para o desenvolvimento do pensamento político, econômico e jurídico foi imensa. Quanto ao direito em particular, sua fama repousa, essencialmente, em duas obras, “De Indis” e “De Jure Belli (Hispanorum in Barbaros)”, ambas escritas em 1539, nas quais se ocupa dos aspectos jurídicos e teológicos da recente conquista do continente americano.

Em “Os índios”, Vitória condena as violências cometidas contra os indígenas por ocasião da conquista espanhola da América. Ele também afirma que os índios são homens como quaisquer outros e possuem os mesmos direitos, incluindo o direito de propriedade sobre suas terras, que é, inclusive, um direito natural. Guardado o contexto da sua época, Vitoria defendeu que a conversão dos índios americanos ao cristianismo não devia ser forçada, mas livre. E que eles, os indígenas, podiam até ser tratados na qualidade de menores sob tutela, mas não como escravos. Em “O direito de guerra”, Vitória trata, já depois de São Tomás de Aquino, das condições da chamada “guerra justa”. Para ele, em síntese, apenas seria justa a guerra desencadeada para responder de forma proporcional a uma agressão ou aquela iniciada preventivamente para evitar um mal maior. Como registra José Cretella Júnior (em seu “Curso de filosofia do direito”, Forense, 2002), Vitória também procurou “convencer os governantes de que só se admitem ações baseadas em lei, preceito que deve conciliar o divino e o natural, repudiando a arbitrariedade. Confrontando a tese da onipotência de Deus com a opinião corrente de que as coisas possuem essências naturais e invariáveis, Vitória procurou harmonizar a antinomia dessas teses, dentro da colocação tomista, dando ênfase especial ao elemento jurídico, mesmo em questões estranhas ao mundo do direito. Estudando as causas que poderiam justificar as guerras, ao mesmo tempo põe em paralelo os direitos dos espanhóis nas Índias (de indis et de jure belli, 1539) e os direitos dos índios em seus respectivos territórios”.

De fato, em sua época, Francisco de Vitória foi, junto com o também dominicano Bartolomeu de las Casas (1474-1566), embora em menor intensidade do que este, um dos grandes defensores do índios. Mas Vitória é, sobretudo, com anterioridade a Alberico Gentili (1552-1608) e a Hugo Grócio (1583-1645), pela profundidade e originalidade no tratamento da matéria (tratando da guerra como problema jurídico, entre outras coisas), considerado o grande fundador do direito internacional e até mesmo da disciplina jurídica que hoje chamamos de direitos fundamentais.


Marcelo Alves Dias de Souza
Procurador Regional da República
Doutor em Direito (PhD in Law) pelo King’s College London – KCL
Mestre em Direito pela PUC/SP

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