25/10/2016

   
Marcelo Alves

 


Eficácia temporal dos precedentes nos EUA (I)


Já escrevi aqui, penso que mais de uma vez, sobre a problemática da eficácia temporal da decisão judicial que anuncia um novo “direito”, “revogando” (ou ao menos modificando) anterior regra de orientação diversa: deve ter essa “nova” decisão efeitos retroativos (podendo afetar fatos e atos jurídicos acontecidos sob a égide da anterior orientação legal/jurisprudencial) ou seus efeitos devem ser meramente prospectivos? Essa é uma questão de grande relevância porque as pessoas e a Administração, em sistemas baseados na vinculação aos precedentes judiciais (no que está se transformando o sistema jurídico brasileiro), pautam suas condutas de acordo com o que os tribunais afirmam, em suas decisões, ser o direito. 

Pois outro dia, no Facebook, recebi uma mensagem de uma ex-aluna curiosa pedindo que eu explicasse como se dá a eficácia temporal dos precedentes nos Estados Unidos da América e na Inglaterra, os dois principais países filiados à tradição do “common law”. 

Eis, começando pelos EUA, a resposta que dei. 

Como explica Jane C. Ginsburg (em “Legal Methods”, The Fundation Press, 1996), nos EUA, a regra é a aplicação retroativa clássica do precedente revogador, ou seja, “as decisões judiciais se aplicam a eventos que ocorreram antes que a regra nova ou modificada fosse declarada. Entretanto, quando decisões prévias são revogadas, as partes desses casos não estão livres para reabrir o caso, se ele já tiver sido objeto de um julgamento final”. E essa orientação é conhecida desde os albores do século XIX, quando da decisão do caso United States v. Schooner Peggy 5 US (I Cranch) 102 (1801). 

Todavia, nos EUA, a atribuição de efeitos retroativos ao precedente revogador não é um dogma intransponível. 

E, pelo que sei, o primeiro caso na Suprema Corte dos EUA em que, claramente, se decidiu pela validade da aplicação prospectiva de um precedente revogador foi Great Northern Ry v. Sunburts Co. 287 U.S. 358 (1932). A Suprema Corte dos Estados Unidos foi chamada a decidir sobre a validade das decisões da Suprema Corte do estado de Montana nos casos Sunburst Oil & Co. v. Grat Northern Ry 91 Mont. 216 7 P.2d. 927 (1932) e Montana Horse Products Co. v. Great Northern Ry 91 Mont. 194, 7.2d 919 (1932), em que o Tribunal estadual havia entendido como meramente prospectivos os efeitos da revogação do precedente Doney v. Northern Pacific Ry 60 Mont 209, 199 Pac. 432 (1921), baseado na confiança que as partes implicadas tinham no precedente revogado, quando realizaram os seus negócios, assim como na injustiça, in casu, de uma revogação com efeitos retroativos. Na ocasião, o Justice Benjamin N. Cardozo (1870-1938), falando pela unanimidade da Suprema Corte americana, confirmou a validade da aplicação prospectiva em questão, afirmando ser dado a um tribunal reconhecer tanto eficácia retroativa como prospectiva ao precedente revogador. E, conforme citado por Victoria Iturralde Sesma (em “El precedente em el common law”, Ed. Civitas, 1995), o fez nos seguintes termos: “Acreditamos que a Constituição Federal não tem influência sobre esta matéria. Um Estado, ao definir os limites da adesão ao precedente, pode fazer por si mesmo uma eleição entre o princípio de avançar com a aplicação ou fazê-la retroagir. O Estado de Montana tem-nos mostrado, através da decisão de seu mais alto tribunal, que, aberto a estes métodos alternativos, sua preferência foi pela primeira alternativa. Ao fazer esta escolha, está declarando o common law para aqueles que estão dentro de seus limites. (...) Se esta é a doutrina do common law sobre a adesão ao precedente como entendida e posta em prática pelos tribunais de Montana, não temos liberdade, com fundamento em nada que esteja contido na Constituição dos Estados Unidos, para impor sobre estes tribunais uma concepção diferente, nem sobre a força obrigatória do precedente nem sobre o significado do processo judicial”. 

Outro caso emblemático de aplicação prospectiva de precedente, que ilustra perfeitamente o que estou dizendo aqui, se dá com a decisão de Mapp v. Ohio 367 US 643 (1961). Neste caso, a Suprema Corte dos Estados Unidos, com base na 4ª Emenda à Constituição, decidiu que era inadmissível a utilização de prova ilegalmente obtida no processo criminal. Assim agindo, a Suprema Corte revogou o anterior precedente Wolf v. Colorado 338 US (1949). Em virtude do precedente revogador, visando ver reconhecidos, nele, efeitos retroativos, os tribunais receberam uma enorme quantidade de pedidos de habeas corpus de pessoas condenadas anteriormente com base em provas supostamente ilegais, pleiteando a aplicação do novo precedente (Mapp v. Ohio) aos seus casos e, consequentemente, a absolvição. A questão suscitou inúmeras decisões contraditórias. Relata Victoria Sesma (em “El precedente em el common law”) que “as argumentações dos tribunais intermediários de apelação estiveram divididas: os Distritos 4º e 9º estabeleceram que o precedente de Mapp fora totalmente retroativo (isto é, aplicável nos casos decididos definitivamente), enquanto que os Distritos 2º, 5º, 7º e 10º rechaçaram essa aplicação”. 

A Suprema Corte americana, chamada a apreciar a questão em Linkletter v. Walker 381 US 618, 620 (1965), acabou por afirmar que não se podia dar efeitos totalmente retroativos à decisão de Mapp v. Ohio. No caso, o Justice Tom C. Clark (1899-1977), também citado por Victoria Sesma, afirmou: “Uma vez aceita a premissa de que não estamos obrigados nem se nos proíbe aplicar uma decisão retroativamente, devemos sopesar os méritos e deméritos em cada caso olhando a história anterior da regra em questão, sua finalidade e efeito, e se a operação retroativa fomentará ou retardará seu efeito. [Como] (...) os propósitos da regra Mapp foram os seguintes: desestimular a ação ilegal da polícia; proteger a privacidade do lar das vítimas e que os órgãos federais e estaduais tenham os mesmos padrões jurídicos. Dar à regra Mapp um efeito completamente retroativo – disse – não serviria a estes propósitos”. 

No mais, pelo que sei, existem duas formas de os tribunais americanos decidirem sobre a eficácia temporal de um precedente novo: a) ao anunciar a nova regra, indicar, simultaneamente, a partir de quando aplicá-la a outros casos, como ocorreu em Durham v. United States 214 F. 2d 862 (1954); e b) deixar a opção para a corte onde porventura essa questão, no futuro, seja controvertida, o que, aliás, é o que normalmente ocorre. 

Por derradeiro, nos resta a questão: quais os critérios utilizados nos EUA para se dar ao precedente revogador efeitos retroativos ou meramente prospectivos? Sobre isso nós conversaremos na semana que vem. 

Marcelo Alves Dias de Souza
Procurador Regional da República
Doutor em Direito (PhD in Law) pelo King’s College London – KCL
Mestre em Direito pela PUC/SP

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