24/04/2016



NOITE DA CRUVIANA, um repensar

Um amigo de Brasília perguntou-me como se poderia  pressentir os sinais de que em uma determinada noite a cruviana sairia. Ele havia lido um texto sobre o assunto e ficou interessado em passar para os filhos essa vivência.
Brasília é uma cidade onde predominam apartamentos em prédios de seis andares. Aqui nós temos pilotis barulhentos e áreas comuns movimentadas, além do barulho aborrecido dos elevadores, somado ao tagarelar das pessoas a todo momento. Imagino não haver condições propícias nem atmosfera capaz de atrair o inusitado, o sutil, que dependem de um conluio da alma com o inesperado para se manifestarem. Sem chance.
Em Brasília há também aqueles que moram em bairros onde predominam as casas que, aqui, guardam uma razoável distância entre si. Eu resido em um desses locais. Apesar de as pessoas estarem em casas bem cercadas, os níveis de violência se equiparam aos menores do Brasil.
Falar da cruviana é retornar à cidade da minha infância, com o verbo no pretérito, onde a usina de luz parava de funcionar às dez da noite. É se portar como criança em uma cidade por onde passa um belo rio repleto de embarcações, grandes e pequenas, com seus ruídos característicos. Na escuridão das noites estreladas, velas eram içadas e arreadas, sob o augúrio dos marujos, aqui chamados de barcaceiros, além dos movimentos próprios do rio cuja foz fica logo ali, com o mar tentando subjugá-lo a toda hora.
Para que se percebesse a presença da cruviana, formatada em noites onde o escuro absoluto dava abrigo ao bicho papão, acoitava lobisomens fugidios, e em que o barulho das serrações assombrava crianças inocentes  que tremiam em suas redes brancas com cheiro de carinho, parece-me de fácil entendimento.
Hoje, especialmente em cidades de grande porte, como imaginarmos ter sensibilidade e ambiente propício para perceber o assobio fino de um vento noturno que leva consigo uma aura de mistério, com uma estranha sensação de um frio que corre fino pelo corpo, tal qual uma pizza metafísica meio mágica meio mística? Na infância, nas noites da cruviana, as crianças percebiam um som agudo, fininho, tipo assobio, arrastando-se pela noite, fazendo com que se encurvassem ainda mais em suas redes, assumindo uma posição quase fetal.
Em Brasília, algumas vezes, despertado pelo som de uma ambulância em plena madrugada, já tentei perscrutar os ruídos característicos e os eflúvios sonoros atípicos das noites do Lago Norte, na tentativa de identificar os murmúrios da cruviana. Em vão.
Pelos mesmos motivos, já não se percebem os sacis, os gnomos, os duendes nem as mulas sem cabeça. Afinal, “é preciso chuva para chover”.
Os tempos são outros. Temo que a percepção dos movimentos da cruviana não seja para qualquer um, nem para qualquer lugar ou momento. Ao menos nestes tempos raivosos.
Temo que a maioria desta geração Whatsapp jamais consiga, em algum momento, agendar um encontro com o lado mágico da vida, onde mora a fantasia.
Evaldo Oliveira

Sócio Correspondente do Instituto Histórico e Geográfico do RN

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