16/09/2015

Marcelo Alves

   



O juridiquês, mais uma vez 

Hoje vou voltar a um tema já tratado em outros textos: o “juridiquês”, o conhecido e (por muitos) odiado “vocabulário empolado dos juristas”. Como já disse aqui, embora necessário - afinal, toda ciência precisa de linguagem técnica própria -, o “juridiquês” é um vocabulário complicado não só para os leigos, mas também, em grande medida, para nós, supostos juristas. O vocabulário jurídico é um “campo ideal para desentendimentos”, também já disse, sendo um dos grandes desafios do jurista contemporâneo (falo aqui do jurista de verdade) trabalhar melhor a sua linguagem. 

Nessa trilha, entendendo ser de alguma valia descomplicar o “juridiquês”, hoje vou tentar distinguir duas expressões bastante comuns do nosso direito processual constitucional (falo aqui, sobretudo, do controle de constitucionalidade das leis e dos atos normativos, tema especialmente caro para mim), “eficácia erga onmes” e “efeito vinculante”, que, por nós juristas, são muitas vezes confundidas. 

Antes de mais nada, essas duas expressões - “eficácia erga onmes” e “efeito vinculante” - identificam qualidades atribuídas às decisões proferidas pelo Supremo Tribunal Federal no controle concentrado das leis e dos atos normativos, especialmente na ação direta de inconstitucionalidade e na ação declaratória de constitucionalidade, visando dar um mínimo de uniformidade ao nosso sistema de controle de constitucionalidade como um todo (gravemente comprometido nesse ponto), que, como sabemos, em razão da coexistência do modelo difuso, também é exercido por qualquer juiz do país. 

Em segundo lugar, sem dúvida, “eficácia erga onmes” e “efeito vinculante”, tecnicamente, são coisas distintas. Isso restou dito há mais de 20 anos com a Emenda Constitucional 3/93 e a redação que ela deu, à época, ao § 2º do art. 102 da Constituição Federal. Na oportunidade, criando a ação declaratória de constitucionalidade, previram-se, expressamente, como coisas diversas, a “eficácia erga omnes” e o “efeito vinculante”. 

Na verdade, a “eficácia erga omnes” em uma decisão no controle concentrado, que se restringe a sua parte dispositiva, quer significar que ela atinge a própria eficácia geral e abstrata da norma objeto do controle e, por conseguinte, atinge a todos (correspondendo, portanto, embora não completamente, à denominada “força de lei” do modelo alemão). Já faz bastante tempo que Piero Calamandrei (na obra “Direito processual civil”, publicada entre nós pela editora Bookseller), fundado no modelo italiano e tratando apenas da declaração de inconstitucionalidade, dizia isto: “Pela extensão de seus efeitos, pode-se distinguir em geral ou especial, segundo que a declaração de certeza da ilegitimidade conduza a invalidar a lei erga omnes e a lhe fazer perder para sempre eficácia normativa geral e abstrata, ou bem que conduza somente a negar sua aplicação ao caso concreto, com efeitos limitados ao só caso decidido”. Declarando a constitucionalidade ou inconstitucionalidade de lei ou ato normativo, no primeiro caso confirmando a eficácia geral e abstrata que lhe é inata, no segundo retirando-lhe essa eficácia, a decisão atinge, por isso mesmo, todos os potenciais destinatários, incluindo os órgãos do Poder Judiciário e, inclusive, o próprio Supremo Tribunal Federal. 

Já “efeito vinculante” significa algo diverso. Em resumo, ele é um “plus” em relação à “eficácia erga omnes” e significa a obrigatoriedade da Administração Pública e dos órgãos do Poder Judiciário, excluindo o Supremo Tribunal Federal, de submeter-se à decisão proferida na ação direta. Em termos práticos, significa que o Poder Executivo e os demais órgãos judicantes, nos julgamentos de casos de sua competência em que a mesma questão deva ser decidida incidentalmente, devem, obrigatoriamente, aplicar o provimento contido nessa decisão. Se não o fizerem, afrontam autoridade de julgado do Supremo Tribunal Federal, o que “abre as portas” para uma “reclamação” (sobre esse instituto, recomendo o livro do nosso conterrâneo Marcelo Navarro Ribeiro Dantas, “Reclamação Constitucional no Direito Brasileiro”, publicado pela editora Sergio Antonio Fabris), conforme prevista no art. 102, I, l da Constituição Federal, além, naturalmente, do cabimento dos recursos cabíveis às instâncias superiores. Ou seja, se não for respeitada a decisão proferida na ação direta, o prejudicado poderá valer-se de um instituto próprio, denominado Reclamação, requerendo ao Supremo Tribunal Federal que garanta, de uma vez, a autoridade de sua decisão. É o que também diz o Ministro do STF Teori Albino Zavascki (em “Eficácia das sentenças na jurisdição constitucional”, livro publicado pela editora RT): “Nos países da Europa em que tais institutos são adotados, considera-se efeito vinculante uma qualidade da sentença que vai além das suas eficácias comuns (erga omnes, coisa julgada, efeito preclusivo), ‘uma peculiar força obrigatória geral’, uma ‘qualificada força de precedente’, variável em cada sistema, extensivo, em alguns deles, ao próprio legislador. É esse o sentido que melhor se adapta ao sistema brasileiro: o efeito vinculante confere ao julgado uma força obrigatória qualificada, com a consequência processual de assegurar, em caso de recalcitrância dos destinatários, a utilização de um mecanismo executivo - a reclamação - para impor o seu cumprimento”. 

Bom, espero ter sido claro nas minhas explicações. Com o tal “juridiquês” nunca se está 100% seguro disso... 

Marcelo Alves Dias de Souza 
Procurador Regional da República 
Doutor em Direito pelo King’s College London – KCL 
Mestre em Direito pela PUC/SP

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