31/07/2021

A EXPANSÃO DO AFETO Diogenes da Cunha Lima Afeto é assunto do coração. A afetividade constrói, junto à função motora e à inteligência, o equilíbrio e a harmonia da vida psíquica. Nestes bicudos tempos de pandemia, as manifestações afetivas quase desapareceram. São vedados o abraço, o beijo, e até o próprio “cheiro”, tão nordestinamente brasileiro. São tempos de expansão. Há trinta anos, o telescópio espacial Hubble provou a ampliação do universo. As fronteiras do conhecimento foram ultrapassadas. Vivemos o crescimento científico e de inovação. As artes estão se expandindo graças à tecnologia. A Inteligência Artificial (IA) ajuda o artista a criar obras de arte, inclusive pintura e poesia. Entretanto, constata-se limitações ao desenvolvimento do afeto positivo. O Direito busca caminhos para favorecer a saúde mental dos jurisdicionados. Em todo o mundo, a lei tenta acompanhar as modificações da sociedade. A união estável homoafetiva é tão reconhecida quanto a união entre casais heterogêneos. A jurisprudência já estabelece a existência de dano moral por desamor familiar. O filósofo francês Henri Wallon (1879-1962) provou a não superioridade da inteligência. Ela se interpenetra com as funções motora e com a afetividade. Elucida que a afetividade se expressa através da emoção, do sentimento e da paixão, que, muitas vezes, conjugam-se, interagem. Comparou a Nietzsche que disse: “Sob cada pensamento habita um afeto”. A qualidade afetiva de uma experiência é a característica que a torna aprazível, desejável, anota o Dicionário Oxford de Filosofia. O preconceito é o verdadeiro predador da afeição. A humanidade não tem conseguido superá-lo, ou seja, é visível a hostilidade contra os diferentes. É crescente a discriminação contra outro ser humano. Há ações fruto do sentimento negativo por conta de orientação sexual, ideológica, de raça ou etnia, deficiência pessoal, crença, idade, língua. Terríveis são os efeitos da discriminação de torcedores de futebol. Portanto, tudo se expande, menos o afeto. A pessoa vítima de preconceito pode perder o prazer do convívio, do sentir-se confortável em seu trabalho e fazer decair o sentimento de utilidade social ou, até mesmo, a própria alegria de viver. Só o conhecimento adquirido na família ou na escola pode transformar a atitude preconceituosa. Temos de reconhecer que é impossível fugir aos aspectos negativos, os transtornos da existência que nos dão medo, raiva, sentimento de culpa, angústia de viver. Afetividade positiva é condição essencial à qualidade de vida. Não há felicidade sem afeição. A expansão do afeto positivo, certamente, dará ao homem entusiasmo e gratificação de vida.
Marcelo Alves AMANTE · Recebi da amiga e confreira da Academia Norte-rio-grandense de Letras Lalinha Barros, emprestado (e devolverei, asseguro), o livro “Memórias esparsas de uma biblioteca” (Coedição Escritório do Livro e Imprensa Oficial, 2004), do bibliófilo José Mindlin (1914-2010). Genibaldo e Lalinha são meus vizinhos. Em tempos de pandemia, ela me disse: “Vou dar um pulo na porta do seu apartamento. Para emprestar um livro. Você vai gostar”. Eu adorei. Mindlin, que exerceu muitos papéis na vida – de jornalista a advogado, de empresário a escritor e membro da Academia Brasileira de Letras – foi o nosso mais célebre bibliófilo. E nos dois sentidos da palavra, como colecionador de obras raras e como amante/amigo dos livros. Gente boníssima, portanto. Muito embora, cá entre nós, até para evitar mais gastos de que já tenho com livros e assemelhados, eu suplique, para a minha singela pessoa, ser apenas dotado da segunda qualidade, a de amante (de livros), sem os custos, digamos, do “casamento”. As “Memórias” de Mindlin são cheias de histórias sobre livros que eu desconhecia. Sobre tipografias, editoras e edições raras. Sobre livrarias, sebos e antiquários. Interessantíssimas. Mas trata-se também de um livro sobre pessoas. Sobre tipógrafos/editores. Sobre bibliotecários. Sobre livreiros. Do Brasil e do exterior. Na verdade, sobre amantes de livros. Afinal, o que seriam destes se não fossem as pessoas para lê-los, mas, também, para guardá-los e adorá-los. Algumas histórias merecem destaque. E aqui o faço indo do mais distante ao mais particular. Tocou-me a narrativa sobre os livreiros/antiquários ingleses. A Maggs Bros, Quaritch e a Francis Edward, alguns deles situados na Old Bond Street, em Londres, cujos proprietários Mindlin enfaticamente elogia pela honestidade. É uma área que conheço razoavelmente. Morei não muito longe. Mas nunca me apercebi dessas casas. Ou não entendo de antiquários de livros ou eles já haviam fechado as portas no meu tempo. Talvez as duas coisas. De toda sorte, posso assegurar o bom preço e a honestidade dos simples sebistas da capital do Reino Unido. Adorei as referências a vultos da história “livresca” do Brasil. Como Francisco de Paula Brito (1809-1861), empresário, editor, jornalista, escritor, tradutor, ativista e muitas coisas mais. Foi talvez o nosso maior “tipógrafo” (que, a seu tempo, fazia as vezes de editora). Foi o primeiro a publicar Machado de Assis (1839-1908), e isso já diz tudo. Como Rubens Borba de Moraes (1899-1986), grande bibliotecário, bibliógrafo e bibliófilo. Pioneiro no Brasil nessa coisa de ciência dos livros e assemelhados. Foi nada menos que diretor da biblioteca da ONU, em Nova Iorque. Escreveu uma “Bibliographia brasiliana” (1958), até hoje referência no tema, e o manual “O bibliófilo aprendiz” (1965), entre outros títulos. Como um “irmão mais velho”, Borba legou sua enorme coleção de raridades a Mindlin. A passagem de Mindlin por Natal, que junta João Cabral de Melo Neto (1920-1999), Zila Mamede (1928-1985) e outras figuras da terra, merece eco. Zila preparava uma biobibliografia do poeta pernambucano. Ela “já tinha feito uma biobibliografia de Câmara Cascudo. Era bibliotecária de profissão, mas seu maior destaque no mundo intelectual brasileiro foi de excelente poeta. Publicou vários livros que mereceram muitos elogios de Manuel Bandeira, João Cabral e Carlos Drummond de Andrade, de quem se tornou grande amiga pessoal. Infelizmente, faleceu ainda jovem, de um colapso cardíaco em pleno banho de mar. (…). Zila, por sua vez, nos convidou para ir a Natal, levando uma exposição de desenhos de Di Cavalcanti que o MAC possuía. Fomos, e através de Zila fizemos outras amizades. Entre elas com Lalinha e Genibaldo Barros, Selma Bezerra e Fran Martins, que há anos vinha publicando uma revista literária – Clan, que eu conhecia mas não possuía”. Turma boa, incluindo meus vizinhos. E fato histórico. Por fim, comoveu-me a lição: “Não se deve hesitar quando um livro desperta interesse, e é melhor se arrepender de ter comprado do que de não ter”. Há o risco de cair-se na bibliomania, desordem compulsiva de adquirir livros desvairadamente, é vero. Mas também já se disse – e que minha mulher não escute – que a melhor forma de livrar-se de uma compulsão é render-se a ela. Marcelo Alves Dias de Souza Procurador Regional da República Doutor em Direito (PhD in Law) pelo King’s College London – KCL
Cuidando da língua materna Padre João Medeiros Filho Monsenhor Landim foi nosso professor de português, no Seminário de São Pedro (Natal/RN). Procurava incutir nos alunos amor e zelo pelo idioma pátrio. Explicava-nos com nuances as peculiaridades gramaticais, filológicas e semânticas. Chamava a atenção para os modismos e neologismos (semânticos, lexicais e sintáticos), que fazem parte do processo da criação de uma palavra ou expressão, fruto do comportamento da linguagem humana. Os vocábulos gerados podem provir do português ou de outros idiomas. Os modismos, por sua vez, caracterizam-se por expressões, frases e palavras, cujo emprego é mais recorrente em certos períodos e, depois parcial ou totalmente, esquecidos. Inegavelmente, a língua é dinâmica, adaptando-se aos tempos e às circunstâncias. No entanto, há que obedecer a regras e padrões linguísticos. Os filólogos acatam o uso de neologismos, quando inexistem termos com significado idêntico ou se os dicionarizados não atendem às necessidades comunicacionais. Em geral, busca-se respaldo nos latinistas e etimólogos. Isso contribuiu muito para aumentar nosso gosto e interesse pelo latim. Cabe registrar que o Rio Grande do Norte foi celeiro de grandes conhecedores da Língua do Lácio. Primeiramente, vale destacar Cônego Estevão Dantas, autor de vários poemas, lápides e dísticos, bem como tradutor de documentos latinos eclesiásticos e civis. Segundo Cônego Jorge O’Grady, o mais talentoso foi Padre Luiz Monte. A ele deve-se o lema de nossa Academia Norte-rio-grandense de Letras: “Ad lucem versus” (voltados para a luz). Em seguida, Dom José Adelino, um dos responsáveis pela revisão linguística dos textos oficiais do Concílio Vaticano II. Monsenhor Emerson Negreiros escreveu uma História do Brasil, toda em primorosos versos hexâmetros, num puro e erudito latim. Antes de sua morte, chegamos a ver vários cadernos manuscritos, contendo o longo e belo trabalho. No Seminário, fomos alunos de latim de Monsenhor Alair Vilar, ao qual recorria frequentemente o mestre Cascudo em suas dúvidas sobre as Odes de Horácio e outros autores. Como tarefa escolar acompanhávamos nosso docente na tradução dos textos. Certa feita, o grande folclorista potiguar apresentou uma frase atribuída a Horácio: “unguibus albam maculam mendacium facit” (A mentira deixa uma mancha branca na unha), que possivelmente serviu de base para a lenda, analisada e comentada pelo renomado pesquisador, contada por nossas mães e avós, desestimulando as mentiras infantis. Os dermatologistas poderão explicar os tipos de leuconíquia. O que se pretende com este atalho? Não somos um purista da língua. Este artigo não é uma crítica nem reprimenda, trata-se de um desabafo, diante de agressões sofridas pelo nosso idioma. Procede o dito: “como faz falta o latim!” É preciso maior cuidado com nosso patrimônio cultural, do qual faz parte a língua. Somos cotidianos aprendizes. Entretanto, faz cócegas em nossos ouvidos, quando ecoam certos neologismos, modismos e impropriedades. À guisa de exemplo, citamos o emprego generalizado de “feminicídio”, em oposição a homicídio. Este não significa simplesmente o assassinato de um varão, mas de qualquer ser humano. A palavra latina “homo” não é especificamente masculinidade, mas ser humano (daí humanidade). Etimologicamente entendemos feminicídio como um termo impróprio, pois seria a destruição do feminino e não de uma fêmea. Seguindo-se o mesmo raciocínio e idêntica proposta, ter-se-ia masculinicídio: a morte do masculino. Segundo os lexicógrafos e dicionaristas, matar uma mulher é mulhericídio (variante de muliericídio, do latim “mulier”). Assassinar a esposa é uxoricídio (de “uxor”, correspondente latino de cônjuge) e o marido ou varão, virícidio (da palavra latina “vir”). Assim, feminicídio não seria o termo próprio para indicar assassinato de uma mulher. Hoje é usado indiscriminadamente por muitos em detrimento do termo homicídio. Os etimólogos e filólogos lançam a pergunta: vigendo a ideologia do gênero, como seriam as denominações? O apóstolo Paulo aconselhava os cristãos de Corinto: “Não vos deixeis seduzir, pois as palavras inadequadas podem vos corromper.” (1Cor 15, 33). Homicídio é o termo apropriado, a não ser que se pretenda qualificar o tipo de assassinato. A motivação para o emprego de feminicídio, com o sentido ora adotado e propagado por alguns, atenta contra a semântica. Isaías já advertia: “Os que te guiam podem te enganar e destruir o caminho dos teus passos.” (Is 3, 12).

24/07/2021

EVOCANDO CORTEZ PEREIRA Valério Mesquita mesquita.valerio@gmail.com Relutei muito em escrever sobre José Cortez Pereira de Araújo. Teimava comigo mesmo em relatar a sua odisséia. A travessia do sofrimento político, os algozes, os coveiros do seu governo até a eutanásia dos seus sonhos. Decidi me deter nos instantes felizes que presenciei ao lado de um homem de cultura, de uma cordialidade que não encobria formas perversas de indignidade e traição. Meu pai foi seu amigo dileto e colega na Assembléia Legislativa, no período das turbulências entre o PSD versus UDN. O velho Mesquita de pé, altivo e irreverente, apontava o grupo udenista e disparava ironicamente: “Dessa bancada só presta Cortez Pereira!”. A amizade dos dois se alimentava também nos encontros semanais em Macaíba para impressões sobre a política e o inverno, como dedicados proprietários rurais. Quando Alfredo Mesquita faleceu em abril de 1969, Cortez – a quem o velho vaticinava que um dia seria governador do Rio Grande do Norte – foi escolhido no ano seguinte. Lamentei muito o meu pai não ter sobrevivido para contemplar a face desse dia. No seu governo fui nomeado Subchefe da Casa Civil, tendo ocupado, posteriormente, após uma reforma administrativa, a Coordenação de Assistência aos Municípios e a Diretoria do Departamento de Serviço Social do Estado. Daí, me exonerei para ser candidato a prefeito de Macaíba. Eleito, Cortez Pereira levou a Telern para Macaíba, comparecendo a duas posses: a minha e a de Dix-Huit Rosado em Mossoró. Inaugurou uma agência do Bandern em Macaíba, a Casa do Agricultor, eletrificação rural, escolas e a alegria de um dia receber em minha casa o rei do baião Luiz Gonzaga. Em 1973, foi padrinho de batizado de minha filha Isabelle. Relembro, ainda, como seu auxiliar, os memoráveis discursos e palestras. A da Federação das Indústrias de São Paulo empolgando Amador Aguiar do Bradesco, Mário Amato, entre outros. Era a pregação do “desenvolvimento econômico” do Rio Grande do Norte, das suas riquezas e potencialidades nos porões do PIB da paulicéia desvairada . Recordo a sua altivez ao enfrentar e resistir o autoritarismo do General Meira Matos, Comandante da Guarnição de Natal, que armou estocadas com o objetivo de tirá-lo do governo. Evoco Cortez Pereira como professor universitário, orador, polemista, deputado estadual, Diretor do Banco do Nordeste, suplente do Senador Dinarte Mariz que encantou o Senado com os seus pronunciamentos em favor do Nordeste e do Rio Grande do Norte. Relembroo Projeto Camarão, do Bicho-de-Seda, do Boqueirão, do turismo (Centro de Turismo, Bosque dos Namorados, Cidade da Criança e a duplicação da entrada de Natal por Parnamirim). Cortez santificado pelo padecimento da dor, mas redivivo na lembrança e na admiração de tantos que conheceram a pureza dos seus sonhos. “Louvar o que está perdido torna querida a lembrança”. Shakespeare.
UM HOMEM FEITO DE BOM HUMOR Diogenes da Cunha Lima Vida e obra de Veríssimo de Melo tem sido celebrada no centenário do seu nascimento. Sempre admirável, exerceu eficientemente as funções como professor, antropólogo, jornalista, poeta, cultor de música. Foi o aluno dileto e parceiro continuador da obra de Luís da Câmara Cascudo. O acadêmico Ivan Lyra lembra que o bom humor, geralmente, é atributo de gordos. Veríssimo era um magro alegre. O Mestre de Natal dizia que ele era tão magro e ágil que, em uma chuva, passava entre um pingo e outro sem se molhar. Cascudo dizia também que ele podia se esconder atrás de um i. Foi meu amigo-irmão-camarada. Conversávamos, quase todo dia, por telefone, em meu escritório ou na Academia. Chegava a começar um diálogo reclamando: “Você tem uma mania de ...”. Eu rebatia: Calma, amigo, seja civilizado. Primeiro dê bom dia, pergunte como eu estou. Quando fui nomeado reitor da UFRN, pensei nele como pró-reitor, pois era um grande promotor cultural. Recusou o convite. Preferia dirigir a Imprensa Universitária. Argumentei dizendo que ele ganhava mais como diretor do Museu Câmara Cascudo. E ele: “Você não sabe os meus planos. Vou publicar os meus livros, depois os seus livros e de amigos selecionados”. Contestei: Veríssimo, e os trabalhos da Universidade? A resposta inesperada: “A gente manda imprimir fora”. O Conselho Universitário aprovou a nossa proposta para fazer Jorge Amado paraninfo de todas as turmas concluintes. O lendário escritor aceitou e acertou a sua vinda à Natal. Na última hora, não pode comparecer, e mandou o discurso para ser lido por Veríssimo perante a assembleia, na noite colorida com professores e alunos concluintes. Notei que o distraído orador “ad hoc” pulara algumas páginas. Reclamei. Ele explicou o “engano”: “Você devia era me agradecer. O seu amado Jorge, esculhamba o Regime Militar e os militares. Você seria o primeiro a ser preso...”. O primeiro reitor da nossa UFRN, Onofre Lopes, tinha dois assessores culturais: o rígido e impecável professor Edgar Barbosa e o lírico buliçoso Veríssimo de Melo. Edgar levou ao reitor o comportamento do colega que chegava ao cúmulo de comparecer ao expediente cheio de cerveja. Depois de defender o poeta, doutor Onofre apenas sorriu: “Edgar, deixa Vivi viver”. O livro “Folclore Infantil” alcançou êxito no Brasil e em Portugal. Foi lançado, em sessão solene, na Academia Norte-Riograndense de Letras. Fiz apresentação dizendo que o autor ampliava as pesquisas de Câmara Cascudo. A meu lado, ele, Veríssimo, soprou: “É pouco! ”. Continuei... disse que ele era um notável folclorista. Novamente, ele sussurrou que era pouco. Somente sossegou quando eu afirmei que não iria compará-lo ao Nosso Senhor Jesus Cristo. Adquiri o terreno com o Baobá de Natal. Escreveu dizendo que, por mais que fizesse, publicasse livros, eu seria apenas reconhecido como: O homem que comprou o Baobá, um pé de pau. Fazia rir, falando com sinônimo picaresco de árvore e a dimensão da minha propriedade. Veríssimo é uma lição de vida. Ensinava a todos que o bom humor deve comandar as nossas ações.

22/07/2021

Cascudo na Academia de Medicina Daladier Pessoa Cunha Lima Reitor do UNI-RN Para proferir palestras sob o título “Cascudo: uma janela de ser e ver o mundo”, a Academia de Medicina do Rio Grande do Norte teve a honra de receber, na noite de 06 de julho/2021, as pesquisadoras Daliana Cascudo Roberti Leite e Camilla Cascudo Barreto Maurício, Presidente e Vice-Presidente do Ludovicus-Instituto Câmara Cascudo. Em ambiente virtual, as duas convidadas, netas do patrono do Ludovicus, foram fluentes na abordagem do tema proposto, bem como mostraram-se seguras quanto ao conhecimento da vasta e significativa obra de Luís da Câmara Cascudo, a quem o escritor Diogenes da Cunha Lima chamou de “símbolo de brasilidade”. Recebi da Presidente da Academia Selma Jerônimo, e do Vice-Presidente Alexandre Sales, a missão de fazer a saudação às ilustres convidadas, além de coordenar os debates. Foi uma noite memorável vivida pela Academia de Medicina, conforme as próprias palavras da confreira Selma Jerônimo, ao encerrar o evento, no qual palestrantes e participantes interagiram de forma brilhante, descontraída e animada sobre a vida e o legado cultural de um autor que soube reunir erudição clássica com os saberes da alma do povo. Na saudação que fiz às duas palestrantes, ressaltei o grande mérito de Daliana e de Camilla Cascudo, pois têm a responsabilidade pela preservação e pela difusão do legado cultural do escritor, antropólogo, sociólogo, etnógrafo, poeta, historiador, folclorista e professor Luís da Câmara Cascudo (30/12/1898-30/07/1986). Na gestão do Ludovicus-Instituto Câmara Cascudo, ambas se desdobram para manterem o objetivo principal dessa instituição, missão exercida com muito amor, devoção e conhecimento de causa. Relembrei que Luís da Câmara Cascudo foi casado com a senhora Dáhlia Freire Cascudo, e o casal teve dois filhos: Fernando Luís e Anna Maria. Fernando logo cedo deixou a casa paterna e se mudou de Natal, enquanto Anna Maria seguiu sempre os passos intelectuais do pai. Formou-se em Direito e integrou o Ministério Público do RN, o Instituto Histórico e Geográfico do RN e a Academia Norte-rio-grandense de Letras. Com a morte de Câmara Cascudo, em 1986, e de dona Dáhlia, em 1997, Anna se viu no dever de tudo fazer para preservar a memória cultural do seu pai, um dos maiores escritores do Brasil, de todos os tempos. Assim, Anna Maria, mãe de Newton, Daliana e Camilla, criou o Ludovicus-Instituto Câmara Cascudo, em 2010, contando com o apoio da família e, em especial, do esposo Camilo Barreto, com quem foi casada em segundas núpcias. Já viúva, em 2015 faleceu Anna Maria Cascudo Barreto e, dessa forma, as filhas Daliana e Camilla Cascudo assumem a Direção do Ludovicus, ou seja, assumem a grande responsabilidade de manterem viva uma das mais relevantes memórias culturais do nosso país, missão que vem sendo exercida com muito amor, preparo e competência. O Ludovicus-Instituto Câmara Cascudo é um orgulho do RN e do Brasil. Texto publicado na Tribuna do Norte, em 22/07/2021

14/07/2021

Leitura teológica do Auto da Compadecida Padre João Medeiros Filho Entende-se por auto uma composição teatral, que remonta à Idade Média. Transita do profano ao sagrado, geralmente de cunho moralizante. Na língua portuguesa, o seu representante mais renomado é Gil Vicente, cuja obra situa-se entre os séculos XV e XVI. No Brasil, o Padre Anchieta introduziu os Autos Indianistas, considerados precursores do teatro brasileiro. Na década de 1950, o monge beneditino e acadêmico Dom Marcos Barbosa procurou divulgar este tipo de dramaturgia, com destaque em “A noite será como o dia – autos de Natal”. Em 1955, foi publicado “Morte e Vida Severina – auto de Natal pernambucano”, de João Cabral de Melo Neto. No mesmo ano, Ariano Suassuna lançou “O Auto da Compadecida”. Segundo os mais próximos, o escritor paraibano, por influência de sua esposa Zélia, abraçou o catolicismo, nutrindo especial devoção à Virgem Maria. Os personagens da Compadecida são pessoas de moral e ética questionáveis. Verificam-se posturas luxuriosas, avarentas, violentas, soberbas, gulosas, mentirosas e preguiçosas. Trata-se de comportamentos compatíveis com os pecados capitais do cristianismo. Não nos cabe analisar a crítica social do autor. Nossa pretensão é tão somente abordar aspectos religiosos. A peça teatral culmina com o veredicto, após a morte dos partcipantes do drama. Reveste-se de elementos da escatologia cristã. Os envolvidos encontram-se no Além, recepcionados por Satanás, desejoso de enviá-los para “os quintos dos infernos”. Temeroso de ir para o Lugar de Castigo, João Grilo, representando os demais, apela para Cristo, que atua como juiz nesse pós-morte. O tribunal foi instaurado. O Demônio apresenta seus argumentos. Emanuel (Jesus) ouve as considerações. João Grilo recorre a Nossa Senhora, advogada de defesa dos indiciados. Tudo acontece em sintonia com o imaginário religioso e o devocionário de nossa gente, formados a partir de matrizes catequéticas da colonização cristã-católica europeia. O Diabo acusa. Maria Santíssima vem em socorro dos culpados. Jesus, representante de Deus Pai, é o responsável pela sentença. Conforme a narrativa, nenhum dos personagens possuía um passado limpo e incontestável. Do relato, infere-se que, no juízo final, todos serão transparentes quanto às suas condutas. Estas deveriam ter contribuído para as pessoas serem mais honestas e justas em relação ao próximo. Ariano revela no texto a fragilidade humana, que sensibiliza a Virgem Maria. Esta é a Compadecida, invocada como “Refúgio dos Pecadores” e “Consoladora dos Aflitos”, títulos marianos da Ladainha. A obra literária descreve o cumprimento do julgamento definitivo, inserido na lei da própria vida. A maldade e o pecado são marcas de nosso destino sobre a terra. Isto é um fato – explicável pela religião – que iguala todos os humanos num rebanho de pecadores. Verifica-se neste aspecto a face da doutrina cristã do pecado original. Ninguém escapa da morte, mas a misericórdia infinita de Deus resgata o destino de cada um na outra vida. Todos carregam seus erros e serão julgados pelo que fizeram de suas existências. A morte é o umbral pelo qual ter-se-á uma consciência mais nítida do que se fez, enquanto peregrino neste mundo. A perspectiva literária desenvolvida é suficiente para afirmar que a obra pode ser lida sob um enfoque teológico. No desfecho do julgamento, o autor esboça traços de Mariologia, especialmente de Nossa Senhora Medianeira. Após a intercessão da Mãe Celestial em favor dos acusados, Jesus os libera da condenação infernal. Para Ariano Suassuna “Maria Santíssima é a esperança dos desvalidos e a revelação da ternura divina”. Por fim, Jesus trava um breve diálogo com sua Mãe: “Se você continuar intercedendo desse jeito por todos, o inferno vai terminar virando uma repartição pública: existe, mas não funciona”. Nesse ponto, Ariano aproxima-se do teólogo jesuíta Teilhard de Chardin, em “Le Milieu Divin”: “O inferno é uma verdade teológica, mas não creio que seja muito habitado, pois a misericórdia divina é infinita”. O teatrólogo revela um Cristo indulgente, compassivo e sensível. Ele se enternece diante dos sofrimentos e dores dos irmãos porque um dia experimentou a maldade e a fraqueza humanas, que condicionam a existência terrena. O saudoso Oswaldo Lamartine, certa feita, confessou-nos: “Vigário, se eu tivesse o amor e a fé de Ariano pela Compadecida, teria muito mais paz interior”. 0 comentário Escreva um comentário público… Sobre Público Qualquer pessoa pode ver quem está no grupo e o que publicam. Visível Qualquer pessoa pode encontrar o grupo. Brasil