04/11/2020

 


Um caipira esperto que nem um caipira

Tomislav R. Femenick – Auditor e jornalista

 

Por ser um imbróglio que envolve direitos de propriedade industrial, registro de patente e outros assuntos correlatos ainda em disputa, aqui serão omitidos os nomes dos personagens, da empresa e mesmo da cidade envolvidos na história que vou contar.

Quando eu era diretor adjunto da Campiglia Auditores e Consultores, lá em São Paulo, um dia fui chamado para uma reunião com o professor Américo Oswaldo Campiglia e seu filho, Roberto Campiglia. Resumo da ópera: teria que ir (com uma equipe) reestruturar o setor de custos de uma fábrica de chapas de madeira aglomerada, localizada no interior do Estado. O trabalho não era difícil nem fácil, pois já tínhamos experiência, expertise, sobre o assunto.

Ao chegarmos à empresa, vimo-nos envolvidos em uma nuvem de poeira que, na verdade, era pó de madeira. O pátio, o espaço que ficava entre a fábrica e a ala administrativa e que servia de estacionamento, estava coberto por aquela nuvem. Visando evitar que a poeira entrasse no prédio da administração, para se alcançar os escritórios, tinha-se que passar por dois vãos, onde nunca as respectivas portas ficavam abertas ao mesmo tempo. Aqui preciso explicar o que era aquela nuvem de pó. As chapas de aglomerado são fabricadas em três fases principais: trituração da madeira; colagem dos fragmentos e lixamento das placas. O pó era resultado da última etapa.

Ao passarmos pela recepção, notamos (até porque era a única pessoa ali presente) um senhor humilde, de braços cruzados e sentado em uma das cadeiras. Nos dias seguintes, sempre que passávamos pela recepção, ali estava o mesmo senhor. Quem diz que não é curioso é mentiroso. Um dia perguntei ao diretor da unidade: “Quem é aquele senhor que sempre fica na recepção?”. Ele também não sabia e perguntou à secretária, que respondeu que era o encarregado da turma que varria o pó. Estava de férias e todos os dias vinha, querendo falar com alguém da diretoria.

“Passando por cima da secretária”, o diretor mandou o senhor entrar em seu gabinete e perguntou o que ele desejava. Ele, o encarregado da varredura, queria vender uma ideia que acabaria com o pó de madeira na fábrica, em troca de uma casa para si, outra para o filho e mais uma viagem à Flórida (com tudo pago) para ele, mulher, filho, nora e dois netos conhecerem a Disney. O diretor quis saber como era isso. O funcionário exigiu que se escrevesse tudo em um papel, explicando que, se a empresa aplicasse suas ideias, teria que cobrir suas exigências. Foi escrito uma espécie de documento e ambos assinaram o acordo que, em síntese, era: as máquinas deveriam ser acopladas a capas plásticas maleáveis, junto às correias de lixa, colhendo o pó, que seria levado por dutos, impulsionados por exaustores, até os caminhões que o levaria aos aterros. Uma solução simples, que ninguém tinha pensado.

Um ano depois, de volta à empresa, de cara notei que o pátio estava relativamente limpo e que o corredor de entrada estava desativado. Dei os parabéns ao diretor e perguntei pelo seu funcionário prodígio. “Está na Europa, conhecendo a terra dos seus avós, por conta de sua nova ideia” – respondeu. Aí contou-me o que aconteceu. Seis meses depois de implantada sua primeira sugestão, o funcionário havia lhe levado uma nova; em troca de um carro para ele e outro para o filho e, mais, uma viagem para a Itália (com tudo pago) para ele, mulher, filho, nora e dois netos conhecerem a cidade de Carpineto, terra dos seus avós (ou de sua esposa, não me lembro bem).

Novamente a ideia era relativamente simples: em vez de jogar em aterros sanitários o pó resultante do processo de lixamento, ele, o pó, deveria ser reciclado e misturado com cola aos fragmentos de madeira, dando-lhe mais consistência e aderência e, ao mesmo tempo, resultando em superfícies mais planas e, portanto, exigindo menos lixamento. Um caipira esperto que nem um caipira. Pena é que, anos depois, tudo foi parar na justiça, como é moda hoje em dia.

Dizem que até pedido de casamento já é feito via oficial de justiça.

 

Tribuna do Norte. Natal 04 nov. 2020.

 

 


 

LÁGRIMAS DO SOL 

 

Valério Mesquita

mesquita.valerio@gmail.com

 

O planeta que hospeda a humanidade está aflito. Não por causa de Deus ou dos elementos naturais que Ele criou. Mas por culpa do maior predador do universo: o homem. Deus sempre foi misericordioso com o mundo. Tanto antes quanto depois de o seu Filho unigênito ser mutilado na cruz para remissão dos nossos pecados. Sacrifício vicário a fim de que se cumprissem as Escrituras.

 

Segundo os cientistas e pesquisadores geofísicos o clima na terra em 2100 estará insuportável. E prevêem daqui pra lá uma série de catástrofes terrestres. O aumento das águas dos oceanos invadirá os continentes em virtude do contínuo degelo polar. Não são eles profetas do Apocalipse, pois seriam logo contestados e ironizados pelos céticos e agnósticos.

 

Avisaram, ainda, que a Amazônia se transformará paulatinamente num cerrado, vítima da desertificação promovida pelos insensatos. Advertem, igualmente, sobre a falta de alimentos que virá como conseqüência dos transtornos climáticos e atmosféricos. O ecossistema global entrará, por fim, em colapso.

 

E Deus, o Pai supremo sabe de tudo. Porque, pelo lado espiritual todos esses fatos fazem parte das previsões tanto do Antigo como do Novo Testamento. A cavidade da camada de ozônio já é bem maior que a ganância dos países ricos e os desvãos das civilizações pecadoras através dos tempos. O homem é um predador natural. Não, apenas, do ecossistema, mas da família, das instituições públicas, do sistema judiciário, da atividade política através da corrupção dos costumes e da exploração dos mais fracos. O ser humano é o devastador e ceifador de vidas desde a era pré-histórica, das guerras da Antiguidade, da Idade Média, da Idade Moderna até a fase contemporânea. Sempre o homem será o lobo do homem. Porque não permitem que nele atue o Espírito Santo de Deus e sim o instinto diabólico. E assim caminha a humanidade para a autodestruição numa encruzilhada que nem o gênio e a sabedoria científica dos geógrafos, geólogos, oceanógrafos, geobotânicos, astrônomos, biólogos, ufólogos e ecologistas podem deter ou evitar a catástrofe.

 

O Sol imutável, intangível, inatingível, obra de Deus, continua rei da galáxia. A ele devemos o brilho dos nossos dias, todos os dias. Não fossem os seus raios luminosos, a Terra seria congelada e escura. O seu calor faz parte da vida humana e animal desse corpo celeste. Mas o buraco-negro na atmosfera terrestre é da autoria criminosa do homem, hóspede predador da terra. As águas que vão aumentar o nível dos oceanos e os tsunámis que assolarão as cidades são lágrimas inconformadas de Jesus. O planeta Terra suicidou-se.

 

03/11/2020

 Marcelo Alves


Um lugar
Grandes cidades são frequentemente cenários de filmes, séries e assemelhados. Os exemplos são incontáveis. Lembremos das urbes mais badaladas: Nova York, Londres, Roma e, claro, Paris. Em razão disso, até se criou um tipo de literatura de viagens voltada para o amante da sétima arte. Fomentam uma espécie de turismo cultural, através de guias e livros, direcionados àqueles que querem curtir a cidade visitando as locações do cinema. Peguemos, por ora, o exemplo de Paris. Tenho em mãos dois livros: “Le guide Paris des filmes cultes” (Bonneton Edition, 2008), de Marc Lemonier, e “Paris fait son Cinéma” (Éditions du Chêne, 2012), de Barbara Boespflug e Beatrice Billon (fotografias de Pierre-Olivier Signe). Como esses, sobre outras metrópoles, há dezenas. Podem procurar.
Em alguns casos, essas grandes cidades são mais do que cenários, são as “personagens principais”, quase como que dominando toda a fotografia e o enredo do filme. Um exemplo disso é “Meia-noite em Paris” (“Midnight in Paris”, 2011), que assisti estes dias quase “profissionalmente”, para poder escrever este riscado.
Com roteiro e direção de Wood Allen (1935-) – homem do cinema, diretor, roteirista/escritor, ator e outras coisas mais –, “Meia-noite em Paris” mistura comédia, fantasia e romance. Tem no elenco Owen Wilson (que faz o papel principal do escritor Gil Pender), Rachel McAdams, Marion Cotillard, Carla Bruni, Kathy Bates, Léa Seydoux e Adrien Brody, entre outros. Foi indicado ao Oscar em algumas categorias, tendo vencido como melhor roteiro original. O filme gira em torno da estada da personagem Gil Pender – roteirista de Hollywood, mas que sonha ser romancista –, junto com a chatérrima noiva Inez e a família desta, em Paris. O dia é curtido na Paris de hoje. Mas em seus passeios solitários noturnos, bêbado numa primeira vez, Gil é levado, sempre à meia-noite, a uma Paris dos anos 1920, lugar e época que ela acredita serem de ouro. Lá ele encontra seus mitos: F. Scott Fitzgerald e Zelda, Ernest Hemingway, Gertrude Stein, T. S. Eliott, Picasso, Salvador Dali, Luis Buñuel e muitos outros gigantes. E Gil até se apaixona pela bela Adriana, que, dos anos 1920, deseja viver na Belle Époque. Há bastante nostalgia no filme, embora, ao final, a mensagem subliminar seja de que não devemos cair na ilusão de um passado de ouro, sejam os anos 1920 ou a Belle Époque. Devemos viver o nosso tempo, com as nossas próprias memórias, o nosso presente e o nosso futuro.
O filme é uma verdadeira celebração de Paris, a de hoje e a dos anos 1920 (com a exceção da cena que retorna à Belle Époque), que “protagoniza” a estória. Tem Paris para todo gosto: o Jardim de Luxemburgo, o Sena e suas pontes, a Igreja de Saint-Étienne-du-Mont, o Museu Rodin, a livraria Shakespeare and Company, o Hotel Bristol, a antiga casa de Gertrude Stein na Rue de Fleurus e por aí vai. Muitíssimos lugares para o turista conhecer e aproveitar.
“Paris fait son Cinéma”, por exemplo, discorre sobre o restaurante Paul, que fica no coração da Paris histórica, na Île de la Cité, na linda Place Dauphine: “graças a sua decoração parisiense retrô, Wood Allen pôde fazer dele cenário de uma das cenas noturnas mais românticas do seu filme”. Cita o Hotel Bristol, nos Champs-Élysées, onipresente no filme e na sua produção. Tem ainda a Deyrolle, famosa maison de taxidermia, na Rue do Bac, entre Saint-Germain Prés e os Invalides. E o deveras nostálgico restaurante Polidor, “a dois passos do [Teatro] Odéon”, que é “um verdadeiro cartão-postal de Paris”. Tem mais, claro. Questão do gosto das autoras, acredito.
Bom, caro leitor, qual o seu lugar em Paris? De ontem ou de hoje, presente ou não em “Meia-noite em Paris”?
De minha parte, vou repetir a declaração da mãe do meu pequeno João quando fomos juntos pela primeira vez a Paris: “Eu que pensava que o melhor de Paris era Paris”. A companhia importa muito. E, saudoso, voltarei mais no tempo, para, como homenagem a quem tanto devo, escolher a discreta Rue Cambon, no 1º arrondissemant, entre o Jardim das Tuileries e a Igreja da Madeleine. Pois ali, num hotel honesto, eu passei a minha primeira meia-noite em Paris, menino de calças curtas, na companhia dos meus pais. Um tempo que, infelizmente, não volta mais.
Marcelo Alves Dias de Souza
Procurador Regional da República
Doutor em Direito (PhD in Law) pelo King’s College London – KCL

26/10/2020

 



O verdadeiro Sinhozinho Malta

Tomislav R. Femenick – Jornalista

 

Nos meus quase quarenta anos morando em São Paulo, realizei alguns trabalhos que eu realmente nunca esperei fazer; quer pela sua magnitude (por exemplo: gerenciar a auditoria externa do Banco do Brasil, em todo o país); quer pelos seus aspectos inusitados (outra vez, por exemplo: dar consultoria a um grupo empresarial italiano na instalação de uma fábrica de fábricas de papel higiênico). No primeiro caso eu fazia parte do corpo diretivo da Campiglia Auditores; no segundo, da Deloitte/Revisora Consultoria. Houve outros casos insólitos, como da vez em que fui chamado a participar de uma reunião para ajudar na solução de um caso de chantagem amorosa, promovida por uma amante casual de um diretor, ou de outra em que encontrei mais de três mil geladeiras que haviam “sumido” dos estoques de uma grande loja de departamento.

Tudo isso foi estranho e não usual para mim. Mas, nada foi tão insólito quanto meu encontro com o verdadeiro Sinhozinho Malta. Sim, você não leu errado: o “verdadeiro Sinhozinho Malta” – e olhe que não estou falando do maravilhoso ator Lima Duarte e sua personagem na novela Roque Santeiro, da TV Globo.

Um certo dia do ano de 1973 – e lá se vão quase 50 anos –, bem cedinho recebi um telefonema de José Pedro Canovas, meu colega de trabalho na Deloitte/Revisora. Tinha um recado para mim, de parte de nosso diretor Ernesto Marra: quando eu fosse para a firma, levasse maleta e bagagem para um trabalho especial fora da cidade, que poderia demorar uma semana, um mês ou mais.

Mensagens como essa não eram surpresas. Surpresa foi, sim, saber que o professor Marra (ele, que não saía do escritório) iria comigo para Araçatuba, iniciar uma auditoria. Só por isso, eu avaliei a importância do cliente. Também, não era por menos, o cliente era o Frigorífico T. Maia. Dito assim, hoje isso não significa nada. Mas, há cinquenta anos a história era outra.

O Frigorifico T. Maia pertencia a Sebastião Ferreira Maia, o celebre e conhecido Tião Maia, então o rei do gado do Brasil. Mineiro, com primário incompleto e boiadeiro. Sabido, explorou o jeito caipira de falar e de se comportar e fez amizade com empresários e políticos de altos níveis. Conseguiu ser o maior criador de gado do Brasil e montou um frigorifico, no interior de São Paulo.

Passada a “porteira” do frigorifico, fomos recebidos pelo próprio Tião Maia, que estava sentado na calçada do prédio da entrada. E alí também ficamos sentados. O professor Marra, eu, Tião e dois de seus funcionários (um era contador e outro, advogado). Em suma: ele queria saber o que a auditoria especial iria fazer. Algumas questões, de caráter informativo, foram respondidas e outras, por se tratarem de matérias relacionadas às investigações propriamente ditas, foram resguardadas. Aí foi que nós, o célebre Tião Maia e eu, começamos a falar diretamente. Ele não queria saber como a auditoria seria realizada, queria mesmo era saber o “porquê”, qual razão, de se fazer de um jeito e não de outro.

Depois disso, fomos lanchar. Mas, como era por volta das onze horas, o lanche foi um churrasco, ocasião em que, de tão relaxados, esquecemos-nos do trabalho e começamos a jogar conversa fora. E, então, o célebre Tião Maia olha para mim e pergunta: “você é russo”? Eu respondi que não, que era de Mossoró, no Rio Grande do Norte, e filho de croata.

Foi então que ele falou da sua amizade com Mota Neto, quando este último fora superindentende do Instituto Brasileiro do Sal. Foi Motinha quem convenceu o maior pecuarista do Brasil a usar sal grosso misturado à ração de seu imenso rebanho, comportamento que passou a ser copiado por outros criadores. Depois falei disso com o meu primo (Mota Neto era meu primo) e ele confirmou o fato.

 Por motivos políticos e econômicos, o ex-boiadeiro mineiro deixou o Brasil em 1976 e foi para a Austrália. De lá foi para os Estados Unidos, para Las Vegas; não para jogar, mas para construir residências. Quando morreu deixou, entre outras coisas, cerca de 170 mil cabeças de gado, duas fazendas na Austrália e um conjunto de casas em Las Vegas – somente este no valor de 30 milhões de dólares.

 

Tribuna do Norte. Natal, 25 out. 2020


 

Glamour e decadência
O meu primeiro contato com F. Scott Fitzgerald (1896-1940) foi por meio do cinema. Fiquei encantado com o filme “O Grande Gatsby” (“The Great Gatsby”), de 1974, adaptação do romance homônimo de 1925. O filme tem direção de Jack Clayton (1921-1995) e roteiro de Francis Ford Coppola (1939-). No elenco estão Mia Farrow, Sam Waterston, Bruce Dern, Karen Black, Scott Wilson e Lois Chiles, entre outros. E Robert Redford faz o papel de Jay Gatsby, a enigmática personagem principal da trama.
Não sei bem explicar o porquê, mas a fotografia de “The Great Gatsby”, o filme, sempre foi para mim a imagem da riqueza americana nos seus anos dourados. A mansão de Long Island. Um antigo caso. A mulher casada que se quer impressionar. As festas. A beleza dos convidados e muita champanhe. Uma impressão visual mesmo, sensorial, que ficou marcada no meu espírito. Os contos de Fitzgerald, à moda de “The Diamond as Big as the Ritz and Other Stories” (edição da Penguin Books, de 2006, que tenho agora em mãos), em que o autor “mistura inteligência e cinismo em seus retratos satíricos da movimentada Era do Jazz”, também ajudaram bastante. São quase todas estórias que nos fazem sentir o êxtase da música, das festas e da bebida e nas quais “os deuses venerados são o glamour, a riqueza e o status social”.
Mas Scott Fitzgerald também é para mim um exemplo de decadência pelo álcool e outras turbulências da vida. Membro da chamada “geração perdida”, sua estada intermitente em Paris mostra muito do que eu quero dizer. Segundo registra Jessica Powell, em “Literary Paris: a Guide” (The Little Bookroom, 2006), quando Fitzgerald chegou a Paris, em meados dos anos 1920, “ele já tinha composto This Side of Paradise e The Great Gatsby, e era conhecido por seu estilo de vida descontrolado e luxurioso. Ele e sua esposa, Zelda, estavam tentando ‘encontrar um novo ritmo’ para suas vidas, e Paris, com sua vibrante cena artística e seu baixo custo de vida, era uma opção atrativa para muitos americanos. ‘A França tem as duas únicas coisas para as quais nos movemos enquanto envelhecemos – inteligência e boas maneiras’, disse Scott, embora ele e Zelda – ambos grandes bebedores – geralmente exibissem pouco da segunda”.
Seja frequentando o 6º arrondissement ou como moradores da Rue de Vaugirard, nas abas do Jardim de Luxemburgo, foram tempos de “mil festas e nenhum trabalho”, nas palavras do próprio escritor. Como anota Jessica Powell, “em 1929, o alcoolismo consumia Scott Fitzgerald. No majoritariamente autobiográfico romance Tender is the Night, ele escreveu: ‘a bebida fez coisas felizes do passado contemporâneas com o presente, como se elas ainda estivessem acontecendo, e contemporâneas mesmo com o futuro, como se elas estivessem para acontecer de novo’”. Os escândalos eram cada vez piores. E Zelda, mais “fanática”. Consta que Scott certa vez apareceu bêbado para tomar chá com Edith Wharton (1862-1937). E James Joyce (1882-1941), após um encontro, teria dito: “Ele causará algo de ruim a si mesmo um dia”. O comportamento errático do casal passou a afastar até os amigos.
Cientes das pontes que haviam queimado, os Fitzgerald esqueceram Paris. Foram se tratar na Suíça, um país onde “poucas coisas começam, mas muitas coisas terminam”, também nas palavras de Scott Fitzgerald. E é ali onde se passa parte de “Suave é a noite” (“Tender is the Night”, 1934), talvez o mais tentador e ambicioso, além de autobiográfico, dos seus romances.
A vida de Scott Fitzgerald foi uma mistura superlativa de glamour e decadência, de alegria e tristeza. Morreu jovem. A bebida cobrou seu preço. Fala-se também de tuberculose. O coração estava fraco. Ataques cardíacos e desmaios se sucederam no fim dos anos 1930. Em dezembro de 1940, vivendo em Hollywood, um infarto fulminante. Tinha apenas 44 anos.
Bom, a Paris do grande escritor – e da sua companheira Zelda – não durou para sempre. Aliás, agora recordo que a minha (Paris) também não. Quando estudava/morava lá, um tio querido faleceu no Brasil. As coisas perderam a graça. E comecei a arrumar as malas para voltar à terrinha. A festa não duraria para sempre. Nenhuma festa dura, parece.
Marcelo Alves Dias de Souza
Procurador Regional da República
Doutor em Direito (PhD in Law) pelo King’s College London – KCL
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16/10/2020

 EVOCAÇÕES


Valério Mesquita*

Não precisa ser macaibense (filho da terra) para constatar o vazio da presente campanha eleitoral em comparação com os anos, 50, 60, 70 e até das últimas décadas. Basta mesmo ser macaibeiro (aquele que reside lá e veio de fora). O município parece um cemitério.. É o povo com fastio da política e da eleição. Lembro-me das passeatas daqueles anos que varavam as madrugadas. Rios de gente, janelas abertas, acenos, luzes, fogos. Uma multidão andando ou pulando ao som da música obedecendo ao comando do líder porque acreditava na palavra, no homem e na mensagem. Os bares, as praças, as esquinas viravam palanques dos eleitores que incensavam os escolhidos e queimavam os depurados.

Tempo dos gestos espontâneos da mulheres na madrugada da passeata, oferecendo um copo de leite ao líder cansado e caminhante. Tempo do povo romeiro que acendia velas votivas em louvor da vitória do seu candidato. Hoje nem vota e ainda mais roga praga. O que aconteceu com o povo ou com a cidade? Mudaram eles ou mudamos nós Nessa política até parece que Macaíba está sob o toque de silêncio. No interior, corre a notícia que não haverá eleição este ano. Os comícios de bairro na cidade até agora não aconteceram um sequer para acordar galinha. Diria que a política perdeu o charme, o glamour, o encanto, a confiabilidade, o rumo e o prumo. Sim, porque política é contágio, é cumplicidade, é atitude e participação, enfim, tudo aquilo que vibra, que vive, que estimula uma sociedade inteira a partilhar do processo democrático do voto do destino de um povo.

Evoco esses fatos porque eles existem. É só comparar, refletir sobre o passado recente e o presente. As ruas estão desertas e as mensagens dos candidatos não mais atingem os ouvidos do povo.

Eleger candidato de fora, aí o município perde a identidade, o sentimento nativista, o amor telúrico. Passar o comando de uma prefeitura, de um poder público de um cunhado para a sua cunhada, como quem troca um carro, uma moto ou uma bicicleta, é querer esconder papel safado, oculto, tudo por debaixo do pano. Por isso, o povo perdeu o canto, o encanto e o gosto de entoar nas ruas que é proibido cochilar.

Saindo do papo político, gostaria de evocar aqui e agora um amigo que se foi há algum tempo. Partilhamos das fases da adolescência e da maturidade. Filho único de Emídio Pereira Filho e Maria Nazaré Madruga Pereira, Marcos Vinicius Madruga Pereira ainda se mantém vivo na minha memória como o garotão da motocicleta, o paquerador, o dançarino do Pax Clube, o amigo político fiel e dedicado, o caminhoneiro de longo curso, apesar de tudo e dos reveses que enfrentou na vida. Vinicius, o pescador, o caçador que ficava de “mutuca”, como gostava de dizer, para atingir a presa. Vinicius, conquistador e galante, louco por “pivetes”, como tratava as namoradinhas, que se refletiam nos seus olhos azuis, herdados de D. Nazaré. Relembro-o com sentimento de saudade. Foi um homem que teve tudo que quis, mas sofreu muitas perseguições e a todas sobreviveu. Valeu a pena revivê-lo com ternura e amizade. 

(*) Escritor









13/10/2020

 


A democracia, as eleições e a cidade

Tomislav R. Femenick – Jornalista

 

Dentre os inúmeros presentes que recebemos dos gregos (falo dos presentes genuínos, e não do cavalo de Troia), a democracia talvez tenha sido o mais precioso. Todavia, como muitas outras coisas – tais quais o ar e a água – é frequente não nos darmos conta de sua importância. A democracia é como a liberdade, a sua irmã siamesa; falamos muito sobre elas, porém só “sentimos” a sua importância quando as perdemos.

Como já deu para notar, o assunto de hoje é a democracia, explicitada nas eleições que se aproximam. Mas, afinal de contas, quem é essa senhora? Teórica e filosoficamente, a democracia (do grego: δῆμος”, povo; “κράτο”, poder) é o regime político em que todo o poder se origina do povo. Em nossa Constituição está dito: “Todo o poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente”. É lindo, não é?

Ela, a democracia, parece estar presente em todo o processo eleitoral, mas somente parece. Acontece que, no Brasil, os partidos políticos têm donos que se assenhoram da máquina e impõem sua vontade, prostituindo o conceito de democracia. Esses senhores fazem o que querem, escolhem os candidatos e a distribuição dos recursos do fundo partidário. E o povo? Ora, o povo! O povo é apenas massa de manobra desses senhores que transformam os partidos políticos em verdadeiros feudos, nos quais eles mandam e, mais que isso, desmandam.

As eleições que se aproximam são um exemplo clássico desse proceder. Para angariar votos, vale tudo, inclusive candidatos inexpressivos, sem plataforma nenhuma, mas que são simpáticos e possíveis puxadores de votos para reforçarem a votação das legendas. As redes sociais das quais participo dão um exemplo típico. Tenho recebido mensagens pedindo meu voto, oriundas de pessoas que conheço e, também, de outras que não conheço e de quem nunca ouvi falar. Tem de tudo. De pagodeiro a doutores, de intelectuais a gente do povo, de políticos profissionais a estreantes, dos que apresentam enredos de planos de ação aos que apelam para a excitação de sentimentos. No entanto, a grande maioria se apega a nomes como Bolsonaro ou Lula.

O que esses senhores e senhoras se esquecem é de que as próximas eleições têm caráter municipal, têm a ver com o cotidiano da cidade em que moramos; aqui, no nosso caso, a cidade de Natal, uma urbe cheia de problemas que nunca são resolvidos, dos mais simples aos mais sérios. Por exemplo: quase ninguém fala do nosso eterno problema de saneamento básico, do desmantelo que é o transporte público, da desatualização do Plano Diretor que engessou o desenvolvimento urbano. Há, dirão, mas esses são problemas que exigem grandes recursos ou grandes trabalhos. Sim, no entanto é para resolver grandes problemas que existem prefeitos e vereadores. Os pequenos, os funcionários burocráticos resolvem sozinhos.

O que falta é vontade política para resolvê-los, inclusive os pequenos assuntos controversos. Quer exemplos? Temos aos montões. Entram e saem governantes e ninguém resolve a questão da numeração das edificações de nossas ruas, avenidas e praças. Localizar um número é enfrentar uma loucura organizada. Em alguns logradores, não há um segmento lógico, há repetição de números, um número alto é seguido de um número baixo e assim por diante. Para completar a loucura, a maioria das ruas não têm placas nos cruzamentos.

Outra loucura é a altura das calçadas. Saindo dos bairros centrais, encontramos calçadas de todas alturas, umas baixas e outras altas, umas seguidas das outras. Completam o quadro da desordem os rebaixamentos ou as elevações para as entradas dos carros. As pessoas, principalmente as com deficiência de locomoção, que se lixem.                 

Não vi nem ouvi nenhum candidato falar nesses problemas; são pequenos demais para eles se envolverem. O foco deles é se apresentarem como simpáticos ou seguidores dessa ou daquela corrente, de direita ou de esquerda. A maioria pensa apenas em se dar bem.

 

Tribuna do Norte. Natal, 10 out. 2020.