07/09/2020

 

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Um estágio
Estes dias, pela Internet, andei comprando umas belezuras na Livraria Cultura. Tudo com 90% de desconto (e quem me conhece sabe que adoro descontos). Entre elas estava um tal “Confronting Animal Abuse: Law, Criminology, and Human-Animal Relationships” (Rowman & Littlefield Publishers, 2009), de Piers Beirne. E desse dito cujo eu tirei a ideia desta crônica.
Em “Confronting Animal Abuse” há um capítulo intitulado: “Is there a Progression from Animal Abuse to Interhuman Violence?” (“Existe uma progressão dos maus-tratos a animais para a violência para com humanos?”). O tema não me era desconhecido, claro. Já tinha lido sobre essa progressão em livros e produções acadêmicas e, nos últimos meses, em artigos de jornal. Mas achei a abordagem de Beirne, histórica e imparcial, deveras interessante.
De início, lembra o autor de “Confronting Animal Abuse” que a relação entre abuso animal e violência para com os humanos é uma “proposição com um antigo e impressionante pedigree. Afirmações acaloradas sobre sua veracidade podem ser encontradas em pensadores tão diversos como Pitágoras, São Tomás de Aquino, Montaigne, Kant, Mary Wollstonecraft, Gandhi e Margareth Mead. Exposta pelos seus defensores num alto nível de abstração, ela é hoje frequentemente disseminada no bordão, quase mantra, denominado ‘o link’. É principalmente defendida e estudada por feministas e por membros de agências governamentais e organizações filantrópicas que trabalham com famílias em situação de risco. Ela também implicitamente aparece em escritos de filosofia moral sobre bem-estar animal e direitos dos animais”.
Com base no que já li sobre o tema, incluindo agora “Confronting Animal Abuse”, acho que posso dividir essa temática em quatro eixos ou relações: (i) maus-tratos de animais e violência familiar; (ii) maus-tratos de animais na infância e o futuro da criança; (iii) vida pregressa de adultos violentos e maus-tratos de animais; e (iv) a progressão da crueldade individual para o abuso institucionalizado de animais. São essas as minhas sacadas de hoje.
Embora ainda careçamos de informações oficiais no Brasil, pelos dados já existentes e analisados (aqui e, em especial, nos EUA), acredita-se existir uma clara relação entre a violência familiar e os maus-tratos de animais de companhia. Nos EUA, entre veterinários, instituições de controle e abrigo de animais, defensores dos direitos das mulheres e a própria polícia, pela experiência diária e pelos números, há um consenso sobre como o abuso de animais e a violência familiar andam juntos. Tudo misturado, familiares violentos tendem a ser agressivos também com os animais de casa. E até primeiramente com estes, para, só em momento posterior, o serem com os outros membros humanos da família. Os números assustam.
Uma outra relação é entre os maus-tratos de animais na infância e o futuro da criança. Segundo o autor de “Confronting Animal Abuse”, crianças que apreendem a ter compaixão pelos animais têm maior probabilidade de se tornarem adultos sensíveis e gentis. Doutra banda, crianças que são abusivas para com os animais – a maioria, por sinal, meninos e com notável comportamento antissocial – tendem ou tenderão a ser abusivos e violentos quando adultos, contra animais e humanos. Mais uma vez, os dados coletados mostram isso. Podem pesquisar.
Aliás, é aqui que chegamos ao terceiro link, que deve ser entendido de forma regressiva. Quando se investiga a vida de adultos violentos, frequentemente se descobre um indivíduo, já na infância ou adolescência, violento para com os animais. Há até relatos – e já não sei dizer se é mito – de serial killers que, no passado, estiveram metidos em maus-tratos de animais. Pode haver uma certa mitificação desses indivíduos. Mas não deixa de ser um dado a considerar.
E há a progressão da crueldade individual para o abuso institucionalizado de animais. Os circos romanos, os nossos velhos circos, as caçadas, as rinhas de galos e de cães, a tourada, a vaquejada etc., todas essas coisas são adoradas por indivíduos insensíveis ao sofrimentos animal. Homens violentos, muitos deles. Do indivíduo, da soma ou agrupamento destes, chega-se a esse tipo de abuso naturalizado e institucionalizado. Acredito que nossa sociedade está em progresso contra isso, ainda lento, mas constante. Um dia, com a ajuda do direito, chegaremos lá.
Bom, eu poderia fechar este riscado apenas lembrando que estou na companhia dos grandes pensadores citados acima. Entretanto, serei mais pedagógico e dramático. Recomendo uma espiada na gravura “First Stage of Cruelty” (1751), do grande William Hogarth (1697-1764). Afinal, uma imagem vale mais do que mil palavras (minhas).
Marcelo Alves Dias de Souza
Procurador Regional da República
Doutor em Direito (PhD in Law) pelo King’s College London – KCL

 

NOSTALGIAS

Valério Mesquita
mesquita.valerio@gmail.com


Vivo o desconforto e a nostalgia de mim mesmo ao me deparar com o sonho dos meus vinte anos que a idade madura não confirmou. Sinto-me disperso, irrealizado, quando retorno às minhas origens telúricas. A meta de trazer o passado ao presente, reconstruí-lo pela palavra e pensamento a fim de reconquistar a minha autoestima, parece-me uma tarefa hercúlea porque constato que o personagem não sou eu mas, sobretudo, o tempo. Deduzo que, precisaria recriar os fatos e renascer as pessoas. Verifico que sou o resultado de todas as convivências e acontecimentos afins do passado. Por isso o vácuo e a irritação me arrastam ao entendimento inconcluso de que tudo foi ilusão e fantasia, ou infecção sentimental.


Mas, o patrimônio existencial da terceira idade, onde a memória olfativa, a auditiva e, principalmente, a visual, procuram restituir-me o universo perdido das fases inaugurais da vida. Aquela lua cheia, por exemplo, vista do cais do rio Jundiaí em Macaíba, como se estivesse pendurada por fios invisíveis, atrás dos coqueiros e eucaliptos, infundia-me na adolescência negro mistério do tempo da colonização dos escravos, índios e colonos, de escuridão e medo, como se as fases da lua chegassem naquele tempo por édito imperial. Como me perco na contemplação do Solar do Ferreiro Torto e os seus sortilégios de poder, carne, cobiça e paixão. E a descortinação surpreendente do Solar dos Guarapes. Quantas perguntas insaciadas não existem sobre o que ocorreu ali? Os seus fantasmas que subiam e desciam a colina sob a batuta do senhor de engenho numa cosmovisão ora polêmica, ora lírica, dentro do abismo da memória? “Tu não mudas o mundo. Mas o mundo te muda”. Talvez essa frase de Otto Lara Rezende explique e me convença que o futuro nada tenha a ver comigo, porque o passado está mais presente em mim do que o próprio presente. Em cada rua onde passo em minha terra revisito os mortos na lembrança tentando reconstituir os fatos com os quais dividi o tempo. Adquiri o hábito de rezar por quase todos eles, todas as noites. Faço-os prolongar no meu convívio pela relembrança. Para mim o chão dos antepassados é sagrado, mesmo que estejam sepultados nele resquícios enferrujados e rangentes de um antigo fausto. Mesmo debilitada pela decadência física, da feição das caras e das coisas, o que mais me dói nele é  decadência das mentalidades e dos antigos costumes, como se fosse hoje um porão cheio de escuro, melancolia e solidão. Nostalgias, nada mais.


                


DIA DA INDEPENDÊNCIA DO BRASIL

Por: Carlos Roberto de Miranda Gomes(*)

       Hoje comemoramos mais um dia de amor ao Brasil, data em que em 07 de Setembro de 1822, D. Pedro I ratifica a decisão de sua esposa, Dona Leopoldina, declarando o Brasil independente de Portugal.

    A decisão foi de extrema coragem, haja vista a fragilidade dos apetrechos bélicos existentes e o diminuto contingente de soldados, mas uma imensidão de cidadãos e cidadães amantes deste País amado.

    Este ano, por contingências da pandemia, não teremos os desfiles comemorativos, mas em cada casa certamente haverá um momento de respeito e devoção à pátria amada.

    O sentido do amor à Pátria, nos dias perniciosos de hoje, ressoa com a deformação ideológica dos que se opõem ao governo atual, sendo a sua invocação motivo de chacota pelos que pretendem implantar um estado totalitário.

        Deploro esses sentimentos e repudio a política que deturpa o sentimento nativo do Brasil, que não respeita nem mesmo as vítimas da pandemia, tornando-a motivo de exploração em causa própria de pessoas ou facções.

        Renovando o amor à minha Pátria, relembro os dias cívicos dos desfiles dos colégios, grupos, instituições culturais e desportivas na "Parada da Raça", com o garbo natural dos filhos dessa Mãe Gentil. Depois os desfiles dos corpos militares de todas as armas, da Polícia Militar e Corpo de Bombeiros, deixando aos que ali compareciam com o sentimento renovado de patriotismo.

        Lamento que não tenhamos aprendido, ainda, o amor à terra em que nascemos. Contudo, não tenho receio de ser pichado de retrógrado ou piegas, ou mesmo reacionário. Prefiro manter firme o meu sentimento de patriotismo, repetindo os grandes poetas do passado:

HINO À BANDEIRA

Olavo Bilac

Salve lindo pendão da esperança!
Salve símbolo augusto da paz!
Tua nobre presença à lembrança
A grandeza da Pátria nos traz.

NAVIO NEGREIROS - VI

Castro Alves

Existe um povo que a bandeira empresta
P'ra cobrir tanta infâmia e cobardia!...
E deixa-a transformar-se nessa festa
Em manto impuro de bacante fria!...
Meu Deus! meu Deus! mas que bandeira é esta,
Que impudente na gávea tripudia?
Silêncio. Musa... chora, e chora tanto
Que o pavilhão se lave no teu pranto!...
Auriverde pendão de minha terra,
Que a brisa do Brasil beija e balança.

OU DEIXAR A PÁTRIA LIVRE, OU MORRER PELO BRASIL

(*) Cabo Reservista do Exército e escritor

04/09/2020

 


Reforma agrária é coisa capitalista

Tomislav R. Femenick – Contador, mestre em economia e historiador.

 

Da janela da minha biblioteca, vejo a bela instalação predial que o INCRA desfruta em nossa capital. Também, a posse da terra é um problemão que parece sem solução.

Antes de Cabral aportar por estas plagas, os nativos, ou melhor dizendo, as tribos indígenas, disputavam e defendiam um lugar com flechas e tacapes. Mas era uma posse temporária, até que eles resolvessem se mudar para outras regiões. Então aconteciam novas lutas. Com a efetiva colonização, cerca de trinta anos depois do descobrimento, a coroa portuguesa tomou toda a terra para si e a redistribuiu entre fidalgos e amigos do rei, através das edições das Capitanias Hereditárias (de curta duração) e das cartas de sesmarias, instituto que fazia a dação de terrenos aos novos povoadores. A questão era encontrar quem cultivasse essas terras, quem efetivamente trabalhasse. Escravizaram os índios e depois trouxeram africanos apresados e feitos escravos. Criou-se, então, uma dicotomia que premiou todo o período colonial, sobreviveu ao Império e à República, agravando-se no século XX, e perdura até os dias de hoje: quem trabalhava a terra não era dono dela; quem era dono não trabalhava.

Revoltas contra essa situação sempre houve. Os índios escapavam para as matas, os escravos fugiam e criavam quilombos, e os colonos trazidos, da Europa para trabalhar nos engenhos de cana, fazendas café e outras culturas, terminavam indo para as cidades, onde se tornavam artesãos, operários e pequenos empreendedores.

Em meados do século passado, a questão fundiária assumiu novas proporções. A luta pela reforma agrária tomou nova forma em 1946, quando, sob orientação do antigo PCB, foram criadas as Ligas Camponesas. Postas na ilegalidade, ressurgiram em 1954, lideradas por Francisco Julião. No governo militar de 1964, a organização foi novamente posta na clandestinidade e muitos de seus dirigentes foram presos. Porém o problema fundiário permaneceu e, em 1984, foi organizado o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra, o MST, que contou com o decisivo apoio da Comissão Pastoral da Terra, da Igreja Católica.

O problema do MST é que as questões políticas suplantam o motivo de sua origem. Prega a luta de classe, desvia recursos recebidos do governo, através de cooperativas que são por ele controladas, cobra taxas dos assentados e a eles impõe procedimentos e ações. Quem se recua é afastado ou excluído de qualquer benefício. Além desses comportamentos, não diretamente ligados à reforma agrária, entre suas lideranças há sérias lutas simplesmente pelo poder. Exemplo: sob forte controle de João Pedro Stédile, o MST afastou de sua direção uma das suas figuras de destaque, José Rainha Júnior, líder do movimento no Pontal do Paranapanema, no Estado de São Paulo, e provocou o desligamento de Bruno Maranhão, que fundou uma dissidência: o Movimento pela Libertação dos Sem Terra - MLST.

A posse da terra por quem nela trabalha deixou de ser o foco primeiro do MST e movimentos correlatos. As convocações para as ocupações rurais visam recrutar o maior número de pessoas, não interessando quem seja. Juntam no mesmo barco verdadeiros trabalhadores rurais, trabalhadores rurais desempregados e mais toda espécie de gente; gente que sempre morou na cidade, donos de pequenos negócios, políticos profissionais, sejam quem sejam. O importante é que formem um grande ajuntamento, pois a luta política tomou destaque no cenário da reforma agrária, sempre socialista, sempre anticapitalista. Qualquer reivindicação social faz com que suas lideranças mobilizem as bases e usem os “sem terra” como massa de manobra. Analisando o panorama, chega-se à inevitavelmente conclusão de que há desvirtuamento na luta pela reforma agrária no Brasil. Desce a terra; sobe o socialismo.

Será que ninguém ver o contrassenso: a reforma agrária verdadeira defende a PROPRIEDADE PRIVADA da terra para quem nela trabalha; PROPRIEDADE PRIVADA individual de meios de produção não existe no socialismo. Isso é coisa do capitalismo.

 

Tribuna do Norte. Natal, 04 set. 2020


31/08/2020

 

Senciência
O que devemos levar em conta para atribuirmos aos animais não humanos direitos e proteção? Em 1789, quando da publicação do seu “An Introduction to the Principles of Morals and Legislation”, essa questão já inquietava Jeremy Bentham (1748-1832): “É possível que algum dia se reconheça que o número de pernas, a vilosidade da pele ou a terminação do osso sacro são motivos igualmente insuficientes para se abandonar um ser sensível ao mesmo destino [de torturas, a que eram submetidos, outrora, os homens de pele escura]. O que mais deveria traçar a linha insuperável? A faculdade da razão, ou, talvez, a capacidade de falar?”.
Bom, ao que tudo indica, a faculdade de raciocinar – raciocinar como nós, humanos – não é um critério adequado. Não funciona. Afinal, com já lembrava Benthan, “um cavalo ou um cão adultos são muito mais racionais, além de bem mais sociáveis, que um bebê de um dia, uma semana, ou até mesmo um mês”. Aliás, tornou-se clássica a observação de outro filósofo, Peter Singer (1946-), em seu “Animal Liberation” (1975): “Mesmo com o maior cuidado intensivo possível, alguns bebês gravemente retardados jamais poderão chegar ao nível de inteligência de um cão. (…). A única coisa que distingue o bebê do animal, aos olhos dos que alegam o ‘direito à vida’, é ele ser, biologicamente, um membro da espécie Homo sapiens, ao passo que os chimpanzés, os cães, os porcos não o são. Mas usar essa diferença como princípio para conceder direito à vida ao bebê e não a outros animais é puro especismo”.
A capacidade de linguagem/fala – embora isso nos constitua e nos diferencie dos outros animais, como sugeriram pensadores como Ludwig Wittgenstein (1889-1951) ou Jacques Lacan (1901-1981) – também não é suficiente. Bebês humanos, por exemplo, nada ou pouco dela a têm no nível sofisticado dos adultos. Por que, então, a linguagem seria capaz de gerar um discriminem dessa magnitude, separando os que merecem ou não respeito e proteção moral e legal? Singer dizia: “A linguagem pode ser necessária para o pensamento abstrato, ao menos em alguns níveis; mas estados como a dor são mais primitivos, nada tendo a ver com a linguagem”.
A resposta parece estar numa tal “senciência”, um conceito que, para os fins do direito (dos animais, em especial), tem de ir além do que nos é emprestado pelos dicionários. Capacidade de ter sentimentos, sensações, consciência, talvez seja um bom começo, mas não é um suficiente final. Talvez Bentham tenha razão mais uma vez: “A questão não é saber se são capazes de raciocinar, ou se conseguem falar, mas sim, se são passíveis de sofrimento”. Devemos dar conta da senciência dos animais no sentido de que, embora não tenham uma racionalidade igual à humana, eles não são assim tão diferentes (de nós) ao ponto de podermos negar as suas capacidades de sofrimento. Aqui podemos incluir não só as sensações de dor, mas também de ansiedade, medo e agonia. E devemos concluir que todos os animais vertebrados ou dotados de um sistema nervoso central são sencientes (embora haja quem vá mais longe e atribua a característica a todo o reino animal).
Essa proteção aos sencientes eu também extraio de disposições da “Declaração Universal dos Direitos dos Animais”, proclamada pela UNESCO em 1978: “todos os animais têm direito ao respeito e à proteção do homem; nenhum animal deve ser maltratado; o animal que o homem escolher como companheiro não deve ser nunca abandonado; nenhum animal deve ser usado em experiências que lhe causem dor; os direitos dos animais devem ser defendidos por lei”.
De toda sorte, é importante ser dito que alguns criticam o próprio critério da senciência. Segundo li na maravilhosa “Encyclopedia of Animal Rights and Animal Welfare” (Greenwood Press, 2010), editada por Marc Bekoff (1945-), esse critério denotaria “uma atitude que arbitrariamente favorece os seres sencientes sobre os não-sencientes”. Ele condenaria “toda a criação não-senciente, incluindo os animais inferiores, na melhor das hipóteses, a um status bem inferior… ou, na pior, a um status sem qualquer proteção”.
Faz certo sentido. O problema é que a senciência é hoje o melhor critério que nós temos.
Marcelo Alves Dias de Souza
Procurador Regional da República
Doutor em Direito (PhD in Law) pelo King’s College London – KCL
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27/08/2020

 

Usado em vão o nome de Cristo

Tomislav R. FemenickMestre em economia, com extensão em sociologia e história

 

Um caso que chegou ao TSE, pedindo a cassação do mandato de uma vereadora goiana, por ter praticado abuso de poder religioso durante a campanha, trouxe à discussão a não tão estranha relação das religiões com o poder. Basta lembrar que, desde as mais antigas civilizações, há uma simbiose entre as partes, da qual ambas tiram proveito. Foi assim na Mesopotâmia, no Egito, na China, na Índia, na América pré-colombiana e nas tribos da Terra Brasilis.

Entretanto, foi na Idade Média e nos anos que lhe seguiram que essa situação aflorou, dando lugar a inúmeras crises religiosas. Considere-se que o homem europeu típico dessa época era um místico por excelência, quereduzia à religião tudo quanto concernia às condições de vida, quer fossem políticas e materiais, quer morais(CORVISIER, s.d.).

Nesse período histórico, a Igreja Católica tinha enorme poder temporal. Se uma parte considerável do clero se preocupava com a vida espiritual e declarava votos de pobreza, uma outra se dedicava inteiramente às lides mundanas. A igreja era uma grande proprietária de bens materiais, o Papa era um príncipe que tinha exércitos e dirigia pessoalmente suas guerras; e reinava sobre os reis.

O ponto inicial do movimento contra a presença da Igreja na vida temporal foram as obras de Erasmo de Rotterdam, principalmente seu livroElogio da Loucura”, editado em 1511, onde dizia: “Sua Santidade glorificada possui terras, cidades, domínios e recebe impostos e taxas. E é sobretudo para defender e conservar essa rica aquisição que os pontífices romanos costumam condenar as almas (...) e, sem piedade, empregam o ferro e o fogo para sustentar as suas razões(ROTTERDAM, 1971). Todavia, sua obra crítica foi mais além e condenou o comportamento da sociedade como um todo. Erasmo, que era filho de um padre, foi ele mesmo padre, secretário de bispo, professor particular e reitor; rejeitou ser cardeal. Apesar de criticar a Igreja, ele não deu seu apoio aos reformistas; na sua opinião bárbaros e fanáticos.

Os movimentos de confrontação com o poder da igreja viriam principalmente com Lutero, Calvino e a Igreja Anglicana, todos eles desposando ideias coincidentes com o pensamento de Erasmo.

Martinho Lutero, padre e doutor em teologia, iniciou o seu confronto com Roma, em 1517. Suas pregações visavam a criação de uma igreja nacional, autônoma, a supressão do celibato, do luxo e da usura. Advogava a manutenção da hierarquia social e eclesiástica. O movimento progrediu nos Estados alemães, conquistou a Suécia, a Dinamarca e parte da Suíça, e penetrou na Boêmia, na Hungria, na Transilvânia e na Lituânia. Porém o movimento se subdividiu, aparecendo as correntes dos “sacramentários”, “anabatistas e “menonitas”.

Calvino (Jean Calvin), francês e doutor em Direito, deu início ao seu movimento em Genebra, na Suíça, em 1541. Para ele, o destino de cada pessoa era previamente traçado por Deus. A riqueza seria uma dessas demonstrações. E quanto maior fosse a riqueza maior a graça divina. Suas ideias se propagaram nos Países-Baixos, na Alemanha renana, na Boêmia, na Hungria, na Polônia, na Inglaterra e na Escócia. Entretanto, seu campo mais fértil foi a França.

A reforma inglesa teve várias facetas. A Igreja Católica, além de possuir grandes domínios, impunha à Inglaterra um pesado imposto, o anatas. Apesar disso, a reforma luterana não encontrou ali apoio expressivo. As constantes mudanças de orientação religiosa do reino só se estabilizam em 1563, com a adoção pela Igreja Anglicana de uma hierarquia e culto de aparência católica e um dogma próximo ao calvinismo.

Uma das características da época foi a intolerância religiosa. Todos perseguiam e matavam seus contestadores. E não nos esquecemos da Inquisição. E todos usavam em vão o nome de Cristo. Que isso nos sirva de exemplo a não ser seguido.

 


26/08/2020

 

 

SOMBRAS DA CIDADE

Valério Mesquita*
mesquita.valerio@gmail.com


O progresso é um cárcere privado, muitas vezes, ominoso e fatal para os telúricos, os proustianos como eu. Nasci na antiga rua do Comércio, depois João Pessoa e hoje Nair Mesquita, em Macaíba. O local era um sobrado que não preserva mais a sua estrutura física original numa artéria de casarões destruídos ou desfigurados. Assim ocorreu com os sobrados onde nasceram na mesma rua: Auta de Souza, Henrique Castriciano, Augusto Severo e Alberto Maranhão.

Da ponte sobre o rio Jundiaí, até a igreja matriz em frente a antiga prefeitura, na avenida Nossa Senhora da Conceição, da rua Pedro Velho so Barro Vermelho - berço histórico, social e cultural da cidade - todo o passado está sepultado sobre o asfalto e edificações novas em nome do progresso. É um visual que choca, punge, frustra. E como são falsas e hipócritas as coisas novas. Esse trecho parece com o bairro do Alecrim, burguês, atrofiado, tumultuado e disforme. Macaíba perdeu a elegância clássica, altiva, portentosa, de cidade antiga nascida às margens do rio. Cidade dormitório, super povoada, crescimento desordenado, são outras chagas doloridas de sua deformação permanente. No centro, investiram no seu futuro matando o antigo, o passado, o histórico, como se não valessem. Destruíram a sua identidade. Não conheço mais a minha cidade, porque baniram as antigas tardes silenciosas e as manhãs contemplativas das velhas figuras da cidade que tanto encantavam os meus olhos de menino: Olimpio Maciel, Euclides Ribeiro, Emídio Pereira, Manoel Alves, Severino Aleixo, Francisco Moura, Isbelo Vieira, Alfredo de Almeida, José Benevides Campos, Luiz Cúrcio Marinho, Magno Tinôco, José Augusto Costa, Agnaldo Ferreira, João Fagundes, Luiz Marinho de Carvalho, sem esquecer as folclóricas: Maria Cabral, Pachêco, Cabeção, Sérgio Cabeceiro, Sabiá, Luiz Bicho Feio, Manoel Dedo Melado, Zé Distinto e tantos outros.

Vivo e convivo com todos esses fantasmas da cidade na minha mente. São sombras que não se desfazem com o tempo porque viveram momentos profundos, densos e intensos. Por mais que Macaíba desintegre a sua configuração urbana elas estão impregnadas nas paredes e refletem no chão dos antepassados, tudo o que já foi. Ninguém pense que sou contra o progresso. Não. Espero que entendam o meu sentimento. Registro o fato emocionalmente como quem fotografa um instante, um instante triste, de um universo perdido de sonhos e ilusões. Uma canção ligeira em louvor de tantos - simples e sábios - hoje, sombras, nada mais.



(*) Escritor.