30/04/2019


A cidade de Shakespeare
Há teses – algumas verdadeiras “teorias da conspiração”, posso até dizer – sobre quem teria sido William Shakespeare (1564-1616). Ou melhor, sobre quem teria sido o verdadeiro autor das maravilhosas obras que atribuímos a um tal Shakespeare. Como já disse certa vez aqui (vide a crônica “Shakespeare anônimo”), antes de mais nada, algumas pessoas simplesmente não conseguem acreditar que um filho de artesão, comerciante de luvas, pudesse ter o conhecimento – do mundo clássico, da filosofia e do direito, apenas para ficar em algumas temáticas principais – que, naquelas obras, é transformado no mais puro ouro literário. Como teria um homem de origem simples adquirido todo esse conhecimento? Outras circunstâncias, como os chamados “lost years” (para os quais não se tem registro do paradeiro de Shakespeare) e a ausência de manuscritos autênticos, têm contribuído para a famosa controvérsia autoral. E, como alternativa, outros nomes têm sido apontados como o verdadeiro autor de “Othello” e de “Macbeth”. O grande filósofo e homem público Francis Bacon (1561-1626) é um dos mais fortes candidatos. Bagagem, a este, não faltava. Outro candidato badalado é William Stanley (1561-1642), o 6º Earl de Derby. E até mesmo o escritor Christopher Marlowe (1564-1593), contemporâneo de Shakespeare, é sugerido ao posto. Talento, não resta dúvida, ele tinha. E por aí vai.
De minha parte, seguidor da “Navalha” de Guilherme de Ockham (1285-1347), fico com a explicação mais simples. A oficial. Shakespeare foi William Shakespeare mesmo. Aquele cidadão nascido sob o reinado de Elizabeth I (que foi de 1558 a 1603) na aprazível Stratford-upon-Avon. Por isso, todas as vezes que pude, fui visitar essa comuna das “Midlands”, do coração da Inglaterra, distante cerca de 170 km (de automóvel) de Londres, que, já no tempo de Shakespeare, como registra “The Altlas of Literature” (editor geral Malcolm Bradbury, Greenwich Editions, 2001), era uma “market town” bem estabelecida e próspera. Hoje, para vocês terem uma ideia, Stratford-upon-Avon tem em torno de 30 mil habitantes. Mas recebe coisa de quase 3 milhões de turistas ao ano (bendito turismo!).
Shakespeare nasceu ali, afirmo, em 1564, na famosa casa da Henley Street. Foi depois trabalhar em Londres. Foi ator. Foi poeta e dramaturgo. Foi produtor e empresário. Gozou seu auge, por assim dizer, na grande capital do Reino. Mas Shakespeare voltou à sua terra natal. Em 1611, segundo se registra, já rico e famoso e com o seu brasão de armas. E foi viver em “New Place” até a sua morte.
Atualmente, a cidade Stratford-upon-Avon, claro, gira em torno da vida do grande poeta e dramaturgo que escreveu como nenhum outro – sobre amor e sexo, farsa e violência, direito e filosofia – na língua que costumamos chamar de sua, a inglesa. A única e honrosa exceção talvez seja a “Harvard House”, que foi o lar de uma tal Katherine Rogers, mãe de John Harvard (1607-1638), o instituidor da Harvard University, que, por razões plausíveis, é hoje a proprietária da casa.
O ponto mais alto de qualquer visita a Stratford-upon-Avon é, seguramente, o local de nascimento de Shakespeare (“Shakespeare’s Birthplace”), na Henley Street. A casa de Shakespeare foi adquirida pelo poder público em 1847 e devidamente reformada para retornar ao estilo elisabetano original. Deu muito certo. E, como bem descreve o meu “The GreenGuide – Great Britain” (da famosa Michelin, 2014), hoje ela é “em parte museu (incluindo a exibição dos objetos mais valiosos da família do dramaturgo e uma edição do Primeiro Fólio de suas peças) e em parte santuário, outrora visitado por [gente como] Dickens, Keats, Scott e Hardy. As peças do poeta são encenadas pela própria trupe de atores profissionais da casa, com performances ao vivo todos os dias”.
Mas a romaria por Shakespeare não para por aí. Lembro-me muito bem da “Mary Arden’s Farm”, a casa da mãe de Shakespeare, da “Anne Hathaway’s Cottage”, a casa da família da mulher de Shakespeare, onde este, jovem, cortejou a amada e de “New Place & Nash’s House”, conjunto formado pela casa onde o poeta gozou seus anos de aposentadoria e pela casa de uma neta sua, hoje belamente restaurada.
De Stratford, recordo-me, também, com saudades, do passeio às margens do Avon, que empresta seu nome à cidade. Da travessia do rio através da bela e antiga “Clopton Bridge” (de 1497), o que, imagino, também deve ter sido feito pelo Bardo, muitas vezes, naquele seu tempo. Do moderno “Royal Shakespeare Theatre”, também às margens do rio. Da visita à “Holy Trinity Church”, ali pertinho, onde foi batizado e está enterrado o próprio William Shakespeare (muito embora essa bela Igreja mereça uma visita por si só). Da caminhada pela Henley Street, com suas muitas lojinhas de souvenires, indo e voltando da Brigde Street.
Finalmente, não sei o porquê, toda vez que penso em Stratford-upon-Avon, lembro-me insistentemente de dois estacionamentos (de carros) da cidade. Um fica (ficava, pelo menos, quando da minha última visita) perto de um cinema; o outro, da estação de trens. Eles não têm nada de especial. Mas são recorrentes, num tipo de associação qualquer, na minha lembrança da cidade de Shakespeare.
E o que isso quer dizer? Algum mistério entre o céu e a terra com que devo gastar a minha vã filosofia? Teria ele, Shakespeare, estado ali no passado? Deles – falo dos tais estacionamentos – emana alguma intuição sobre a verdadeira identidade do autor do “Hamlet” e do “King Lear”? Alguma outra teoria conspiratória qualquer?
Não. Nada disso. Talvez tenha sido apenas o esforço feito para guardar o local onde havia estacionado o carro recém-alugado. Talvez seja, inconscientemente, a lembrança da bela moça que estacionou ao meu lado, seguramente nem megera nem domada. Sei lá. Simplesmente a memória nos prega muitas peças. E, portanto, não façamos “muito barulho por nada”, como diria aquele que foi o maior conhecedor da alma humana.

Marcelo Alves Dias de Souza
Procurador Regional da República
Doutor em Direito (PhD in Law) pelo King’s College London – KCL
Mestre em Direito pela PUC/SP

24/04/2019

A noite dos museus
Em 2007, quando passei uma temporada de estudos na Espanha (Madrid e Barcelona, sobretudo), como bolsista do programa “Aula Iberoamericana del Consejo General del Poder Judicial Español”, tive a oportunidade de curtir, na capital do país, uma “Noche em Blanco”. Esclareço logo: é um evento cultural que ocorre anualmente em cidades da Europa (primeiramente em Paris, desde 2002) em que museus, casas de cultura e outras instituições locais importantes, espaços públicos ou privados, abrem suas portas, gratuitamente, durante toda a noite, para o público em geral. Paralelamente, outras atividades culturais e artísticas – shows, concertos, essas coisas – são realizadas dentro e ao derredor dos prédios mui iluminados. E você sai a pé, pulando de local em local, de show em show, mui amimadamente. Se não me engano, aquele ano, 2007, era o primeiro ou o segundo em Madrid. E foi tudo excelente.
Passados tantos anos, tive a oportunidade de repetir a experiência, agora em Buenos Aires, no que eles chamam, os portenhos, de “La Noche de los Museos”. Foi no dia 10 de novembro de 2018. Nesse dia, a partir das 20 horas, segundo informava o próprio Chefe de Governo da Cidade Autônoma de Buenos Aires, 280 espaços culturais abririam “suas portas à noite e gratuitamente para que os moradores [e os turistas, como era o meu caso] desfrutassem da arte que se respira em cada bairro da Cidade”. Haveria “atividades e exposições para todas as idades e gostos”. E, nessa edição, “as obras falariam do futuro, incorporando as novas tecnologias e abordando debates centrais para os anos vindouros, como o papel da mulher, o cuidado com o meio ambiente e a integração entre os povos”.
E já tem quinze anos que esse tipo de evento é realizado na capital argentina, segundo registra a brochura que guardei comigo (cronista precavido é assim!). Eu não sabia.
Foi bom (muito) e foi ruim (um pouquinho). E, quem leu a minha crônica da semana retrasada, já deve intuir o porquê. Nesse fatídico 10 de novembro, choveu aos cântaros em Buenos Aires. Não tanto à noite como choveu de dia, é verdade. Mas chuva é chuva.
De toda sorte, aproveitamos bastante. Começamos nossa perambulação coisa de 21 horas. Concentramos a aventura numa tal Área 1 (a cidade estava dividida em cinco regiões), em torno dos bairros de Monserrat, de San Telmo e do Microcentro, tudo muito perto do pequenino Two Hotel Buenos Aires (Calle Moreno, 785), onde estávamos hospedados. Fizemos tudo a pé. Mui animadamente, quase sempre. Voltamos pela enésima vez ao interessantíssimo “Museo Histórico Nacional del Cabido de Buenos Aires e de la Revolución de Mayo” (Boliviar, 65). Minha mulher já não aguenta mais. Visitamos a gigantesca sede do “Banco de la Nación Argentina”, onde funciona um museu histórico e numismático. Belíssima. E uma apresentação de coral de música sacra me encantou deveras. Fomos a um tal “Museo de Minerales” (Julio A. Roca, 651). O show de rock na porta, regado a uma cervejinha, nos interessou mais do que o acervo. Fomos ao prédio da “Legislatura de la Ciudad Autónoma de Buenos Aires” (Julio A. Roca, 575). Também belíssimo. Talvez mais do que isso. E visitamos a sede e a editora do “Consejo de la Magistratura de la Ciudad Autónoma de Buenos Aires”. Ganhei um bocado de livros. Gostei mais do que muito. E esses são apenas alguns dos prédios públicos dos quais lembro termos visitado.
Tivemos algumas frustrações, claro. A “Casa Rosada” (Calle Balcarce 50, dominando a Plaza de Mayo) foi uma delas. Não me lembro de já haver visitado o badalado palácio presidencial. Era uma ótima oportunidade. Entramos na fila, ainda pequena. Mas choveu. Minha mulher desistiu. Falou algo do cabelo, acho. Mais uma vez ela não acompanhou o que eu chamo de minha resiliência (na ocasião, ela chamou de outra coisa, iradamente). Teremos outra oportunidade, seguramente.
Mas a maior das decepções foi nos ter sido vedado o acesso a certas áreas de uma tal “Manzana de las Luces” (Calle Perú, 272), ao belo claustro jesuítico e aos famosos túneis, em especial. Segundo retrata o meu “Guia Visual Folha de São Paulo – Top 10 – Buenos Aires” (PubliFolha, 2010), no “coração histórico da cidade, a Manzana de las Luces é um complexo de edifícios governamentais e jesuíticos que datam de meados do século 17. Entre eles, está a Igreja de San Ignacio, a mais antiga da cidade, construída em 1668, o claustro do antigo Colégio dos Jesuítas, a Sala de Representantes e o Colégio de Buenos Aires. Sob os prédios correm os túneis construídos na década de 1690 para ligar o local à Plaza de Mayo”. Já é bem a terceira vez que vamos a Buenos Aires, e eu me programo, tento, mas não consigo conhecer certas partes da velha “manzana”. Simplesmente, virou uma questão de honra. Tomamos mais chuva. E nada. Fomos barrados a certa altura. Não sei se foi o cabelo ou se não gostaram do meu – digamos, impuro – castelhano de Salamanca.
Por sorte, terminamos a noite, já entrando pela madrugada, ali pertinho, na “Librería de Ávila” (Calle Adolfo Alsina, 500), sobre a qual eu já escrevi nas crônicas “Minhas livrarias em Buenos Aires (I) e (II)”. Um comércio de livros cheio de história, que ocupa o local onde outrora funcionou a famosa “Librería del Colegio”, oficialmente aberta em 1830 e tida como a primeira livraria da cidade. Com a sua atmosfera propositadamente decadente, declarada “Lugar Histórico Nacional”, a “Librería del Colegio/de Ávila” é realmente imperdível.
E ali enfrentei, com a minha velha resiliência, uma certa frustração, a chuva e, sobretudo, o cabelo e a ira da minha mulher.

Marcelo Alves Dias de Souza
Procurador Regional da República
Doutor em Direito (PhD in Law) pelo King’s College London – KCL
Mestre em Direito pela PUC/SP

22/04/2019



CINQUENTENÁRIO DE FALECIMENTO

Valério Mesquita*
Mesquita.valerio@gmail.com

Dia 12 de abril passado fez cinquenta anos do desaparecimento do maior líder político municipal da terra de Auta de Souza. Uma vida pública exercida ao longo de mais de quarenta anos impossível ser memorizada de uma ou duas vezes. Quase sempre fatos isolados ou esquecidos emergem e são lembrados, aqui e acolá, por mentes privilegiadas que ajudam a moldar o perfil de quem já se foi, mas que deixou inesquecíveis lições de vida. Assim foi Alfredo Mesquita Filho, ex-prefeito de Macaíba (três vezes) e ex-deputado Estadual, também por três legislaturas, que nasceu em 23 de maio de 1901.
O traço predominante de sua personalidade era o despreendimento, o despojamento de bens materiais ou vantagens que lhes fossem, porventura, oferecidas. Esse legado grandiloquente de sua vida tive poucas chances de narrá-lo em várias notas biográficas que produzi, principalmente por ocasião do seu centenário de nascimento.
01) Integrava uma prole de seis irmãos herdeiros de um rico patrimônio em fazendas, rebanhos, lojas de tecidos e dinheiro quando sobreveio a morte do seu pai. Como não poderia deixar de ser, ocorreram inúmeras discussões e disputas entre os irmãos pelo espólio. Ao receber o seu quinhão percebeu que dois dos seus irmãos litigavam pessoalmente e na justiça, insatisfeitos pelo que lhes coubera. Numa atitude inusitada, ofereceu “de mão beijada” a sua parte na Loja Natal Modelo aos dois contendores e com isso sepultou a dissensão dos manos José e Vicente Mesquita.
02) De outra feita, lá pelo final dos anos quarenta, presenciou a firma Santos e Cia Ltda, pertencente ao seu grande amigo José dos Santos, atravessar seriíssimas dificuldades de crédito, além de outros problemas que inviabilizavam a organização. Desfrutando de excepcional prestígio político e pessoal nos governos pessedistas de José Varela, no Rio Grande do Norte, e de Eurico Gaspar Dutra, Presidente, através de Georgino Avelino e João Câmara, conseguiu no Rio de Janeiro, capital da República, a recuperação econômica da empresa, tornando-se credor da gratidão e do profundo reconhecimento da família Santos. Seu José, português, homem honrado e líder do grupo, convidou Mesquita para ser sócio da firma. “Não posso ser sócio se não tenho capital nem ações para tal objetivo”, foi a sua resposta.  “O que você fez é bem mais do que todos esses papéis”, retrucou o velho José dos Santos. “Mas não posso aceitar”, concluiu Alfredo Mesquita e encerrou o assunto. Creio que Geraldo Ramos dos Santos e José dos Santos Filho conhecem o episódio.
03) No plano político, menores não foram os exemplos do seu desapego às ofertas ou benesses que pudessem lhe trazer vantagens ou significar se curvar aos poderosos. Lembro-me que no governo de Aluízio Alves, em 1965, recebeu uma missão chefiada pelo economista Roosevelt Garcia com o fito de oferecer-me um cargo de fiscal de rendas, em troca do abrandamento de sua atuação política no município para beneficiar a candidatura do Monsenhor Walfredo Gurgel. A resposta só não foi truculenta em respeito ao emissário, que era um dos seus sobrinhos prediletos. E assim perdi a missão de arrecadar tributos.
Testemunhei todos os percalços do seu itinerário político. Presenciei traições, acompanhei revoltas mas nunca vi seus olhos marejados indicando sofrimento. Vi uma vez, duas lágrimas escorregando no seu rosto. Foi em 1964. Quando criminosamente ousaram derrubar a casa onde havia nascido Auta de Souza. Era como se visse um pedaço do seu passado jogado no lamaçal da história.
Neste dia comecei a ver nos olhos de “seu” Mesquita, um mundo novo que invadiu o meu destino. E que ensinava Jesus Cristo: “os olhos são as janelas da alma”.
Naquele dia meu pai abriu uma nova janela que hoje possui o nome de gratidão e o sobrenome de saudades.





17/04/2019


PRAIEIRA (96 ANOS)

Valério Mesquita*
Mesquita.valerio@gmail.com

Muitos já cantaram e falaram sobre “Serenata do Pescador”, composição imortal de Othoniel Menezes e musicada por Eduardo Medeiros que atravessou o tempo e o vento com a mesma beleza sonora e poética. A pesquisadora Leide Câmara reuniu a melhor geração de intérpretes norte-riograndenses que gravaram a composição, uma estrofe cada um, pela primeira vez em estúdio. Se os estilos de cantar de cada um são distintos, pelo timbre de voz, a inflexão, a entonação dos versos, é inegável a intensidade e a paixão de todos na interpretação, como se estivessem vivendo a fascinação do pescador ante o permanente e o efêmero da aventura marítima.
Esse poema musicado de 1923 alcançou a força de uma obra prima e se tornou hoje a canção tradicional de Natal pelo paladar do povo. Nem precisaria a eficácia de um decreto oficial. Lembro a noite de lançamento que se realizou no Palácio da Cultura (80 anos), onde a confrade Leide Câmara, fiel porta-estandarte da música potiguar, reuniu centenas de natalenses de boa vontade que não deixam cair a bandeira, a riqueza e a beleza do talento dos nossos músicos e intérpretes. O disco teve a capa do imortal Dorian Gray e a apresentação de vários expoentes da nossa cultura. Fui presente e me senti feliz por prestigiar o evento, passageiro do batel naquela noite de navegação e delicadeza aquática.
Tratou-se de um acontecimento que fala a alma e o coração de Natal e precisava repercutir por que não é fugaz e frívolo como o carnatal. Vivemos numa cidade que lança livros que não se lêem, línguas que não se aprendem (exceção para aquelas ferinas), amor que não se dá, a não ser aqueles movidos à álcool e as drogas, próprios da folia doidivana onde tudo depois é esquecido. Província que desfila vaidade nas crônicas e só veste abadás nas passarelas. Natal precisa saber quem é e a que veio. Carnatal não é cultura. Mas, sim dinheiro, ganância, transitoriedade e consumo de carne. Por que não prestigiar o autor, o músico, a música e o cantor norte-rio-grandense? Só pensam em lucro fácil e fáctil. Todo folião que se despedaça no carnatal não retorna mais inteiro. Perdem a identidade assim como Natal perde, a cada ano, a sua cara e a própria identidade cultural.
Por isso cultuo o “pão cotidiano” das coisas nossas sem deixar de me preocupar com o poente apagado do Potengi amado, outrora tão aceso e contemplado por Câmara Cascudo que sempre valorizou os temas, as criações, os autores e o patrimônio da cultura do Rio Grande do Norte. O mundo ainda não acabou por causa de dez por cento de cristãos de fé e penitência de todas as religiões do planeta. E a música potiguar brasileira não se exauriu ainda por que existem figuras como Leide Câmara e todos os doze intérpretes de Praieira, além dos seis músicos, somados às dezenas de outros profissionais espalhados pelo Rio Grande do Norte que vivificam o labor diário de compor e cantar a música genuína de nossas origens e vertentes. Ouçamos Fernando Pessoa:  “a vida é breve, a arte é longa”.

(*) Escritor.

15/04/2019


A cidade dos livros
No ano de 2002, acho que era fins de março, passei uma temporada no Corpus Christi College, na Oxford University. Fui bolsista do British Council (bendito Conselho!), como representante brasileiro, para participar do curso “Tackling Corruption and Establishing Standards in Public Life”. Nesses dias, assistimos a muitas palestras do tipo: “Por que os sistemas produzem corrupção?”, “Por que o financiamento eleitoral é uma grande fonte de corrupção?” e “Como nós podemos expor a corrupção – ideias de um informante”. E participamos de vários outros seminários e de trabalhos em grupo.
Já faz tanto tempo, agora me dou conta. Estou ficando (…) experiente.
De toda sorte, como passei coisa de dois meses nessa temporada de estudos e pesquisas no Reino Unido – matriculei-me também numa escola de inglês em Oxford e ainda dei umas palestras como professor visitante na University of Northumbria at Newcastle (mas isso é outra história) –, tive tempo e oportunidade de viajar, nos finais de semana, pelo interior da Ilha Britânica.
Uma das viagens mais interessantes que fiz, partindo de Oxford, de carro, dirigindo na mão inglesa (Deus nos protege!), foi até a cidadezinha de Hay-on-Wye, a “cidade dos livros” (“The Town of Books”, no idioma da Ilha), já no País de Gales.
No caminho, recordo-me, passei uma tarde inteira na belíssima Stratford-upon-Avon, a cidade natal de Shakespeare (1564-1616). Mas isso, em se tratando da vida do autor do Hamlet, merece uma outra – e exclusiva – crônica. E pernoitei em Ross-on-Wye, uma pequena cidade mercado das “midlands” inglesas, postada em um penhasco sobre o tal rio Wye, que reivindica ter sido o berço, em meados do século 18, da indústria turística na Ilha Britânica. Não sei se é verdade. Mas topei com um “bed and breakfeast” bom e barato e ali pernoitei. Como eu gosto. Valeu a pena: Ross-on-Wye é também belíssima.
Cheguei a Hay-on-Wye – a “cidade dos livros” – no dia seguinte. Ela é simplesmente minúscula. Coisa de menos de 2 mil habitantes permanentes. E sua relação com os livros retroage à década de 1960, quando uma livraria foi aberta ali por um tal Richard Booth (1938-), que, vivendo no Hay Castle, uma mansão construída no terreno do antigo castelo local, ainda hoje detém o título honorífico de “Rei da Hay Independente”. Portanto, para os padrões britânicos, essa relação da cidadezinha com os livros nem é tão antiga assim.
Mas, como constava do meu já muito usado “Guia Visual Folha de São Paulo – Inglaterra Escócia e País de Gales” (PubliFolha, 1998), essa “belíssima cidade fronteiriça nas Black Mountains [precisamente nos limites do Brecon Beacons National Park] recebe amantes da literatura do mundo todo. Hay-on-Wye tem mais de 25 lojas de livros usados com milhões de títulos. No começo do verão, a cidade promove um festival de literatura de muito prestígio [o ‘Hay Festival of Literature and the Art’]”. É isso mesmo.
De minha parte, adorei Hay-on-Wye. Pelo que me recordo, cheguei um pouquinho antes do tal “Hay Festival of Literature and the Art”, que, de fins de maio para o começo de junho, por dez dias, reúne, na minúscula cidade, coisa de 100 mil amantes de livros (e a cada ano, desde 1988, vem crescendo mais). A coisa já estava bem movimentada. Livros, livreiros e leitores por todo canto. Em prédios, casas, carros e na rua. Muito colorido e divertido. Tudo fervilhando. Mas limpo e organizado (na medida do possível, em se tratando de livros). Um mundo à parte. Quase um parque temático (de livros!). Lindo. E confirmei que Hay-on-Wye faz mesmo jus ao seu posto de mais famoso centro literário/livresco britânico, em virtude do seu festival e desses seus muitos (para lá de três dezenas, hoje, com certeza) comércios de livros, tanto novos como usados, alguns até, para os cultores da bibliofilia (o que não é bem o meu caso), raros e muito valiosos.
Tempos depois, ao adquirir o meu precioso “The Oxford Guide to Literary Britain & Ireland” (Oxford University Press, 2008), descobri que não estou só nessa minha ótima impressão de Hay-on-Wye. Li nesse livrão – quase quatrocentas páginas, em formato grande, com muitos textos e fotos – que o ex-Presidente dos Estados Unidos da América, Bill Clinton (1946-), considerou o “Hay Festival of Literature and the Art” como o “Woodstock da mente”. Dizem que ele entende dessas coisas.
E me lembro, por fim, que essa minha visita a Hay-on-Wye foi, também, muito útil. Comprei ali o que, para mim, foi um achado: “Public Law and Public Administration” (F. E. Peacock Publishers, 2000), de Phillip J. Cooper. Um livro do qual, embora sobre direito público, retirei, reinterpretando-o, boa parte de um capítulo, versando sobre filosofia do direito, da minha dissertação de mestrado. Foi no dia 5 de maio de 2002. Ele custou 22.50 libras. E agora registro, com certeza, a data da minha visita a Hay-on-Wye, pois está anotado na folha de rosto do dito cujo.
Bom, um dia eu ainda volto lá (morar já seria demais). À cidade dos livros.
Marcelo Alves Dias de Souza
Procurador Regional da República
Doutor em Direito (PhD in Law) pelo King’s College London – KCL
Mestre em Direito pela PUC/SP

12/04/2019


A CONSERVAÇÃO COMO NECESSIDADE PERMANENTE

Valério Mesquita

O exercício perene da conservação deve ser revelada em todos os seguimentos da atividade humana. Seja pública ou privada. Como navegar – conservar é preciso. A conservação dos bens administrativos, culturais, patrimoniais, econômicos, morais, de uma sociedade dignifica a própria condição de humanidade. Os ativismos do processo da atual gestão pública de muitos prefeitos e governadores, tem induzido manter a estrutura urbana e suburbana das cidades em completo descaso e predação incessantes. É raro o gestor público que recupera obra herdada do seu antecessor. O prejuízo é contundente para a família e a comunidade. Seria inveja mórbida? Monocratismo perverso, porque não está ali refletido o seu ego?
O ser humano está em constante evolução como tudo no planeta e no universo. Mas, o que existe de bom e de bem, em favor da sociedade, e ainda de belo, de amor à vida, não pode ser desdenhado. Tapar buracos em ruas e estradas; conservar as escolas e os hospitais, deixando-os aptos a prestar os seus serviços; conservar as ruas limpas, iluminadas, abastecidas com água e gás; conservar, restaurando o patrimônio histórico da cidadania popular dos seus casarões; conservar a conquista da ética, dos direitos individuais, lembrando o passado com gratidão, alegrando-se com o presente e encarando o futuro sem medo; conservar as crenças principalmente aquelas nascidas do Novo Testamento; conservar a natureza, as praças e os jardins que os outros construíram é sempre preferível essa conduta do que o mito administrativo de ser único.
Não sou conservador, nem tradicionalista. A conservação que me refiro não é hostil às inovações políticas ou sociais. Mas àquelas que propugnam resguardar de danos, decadência, deterioração, prejuízo, etc., os prédios do domínio da união, estado e municípios constituídos de edificações tombadas pelo patrimônio histórico ou não. Observe o caro leitor, a situação das repartições oficiais hoje, frente, fundo, verso e inverso. São construções de vinte, trinta, quarenta anos passados. Compare com as de outros entes federativos. Natal armazena em suas ruas, praças e logradouros, lixo, fezes, fedentina, drogas, violência e corrupção. Conservação, por conseguinte, invertida da que se espera e se propõe.
Por fim, tudo é relativo. Tem causa e efeito. O orçamento estadual é hoje refém do colossal tamanho da máquina funcional, verdadeiro monstro Leviatã do qual falou o teórico político filosofo inglês Thomas Hobbes no século XVII. Sem comentar os desperdícios do estuário caudaloso da má gestão explícita e implícita que sempre atormentaram os governantes de todos os níveis (de federal à municipal), depreende-se que é difícil e distante o conserto ou reparo da máquina. O arcabouço legalista que gerou todo esse emaranhado é um “nó de jabá” indesatável, catimbado, mijado em cima porque foi criação do homem, pelo homem para o homem. Fisiológico, pantagruélico, corporativo, elitista, fome zero.

(*) Escritor.


INSTITUTO HISTÓRICO E GEOGRÁFICO DO RN IHGRN <ihgrn.comunicacao2017@gmail.com>


Caro sócio(a),

Ocorreu ontem o lançamento do livro "Meu amigo Bartolomeu Correia de Melo" de autoria do presidente Ormuz Barbalho Simonetti, que DOOU toda a sua tiragem para ajudar o Instituto Histórico e Geográfico do Rio Grande do Norte.
Os sócios que não puderam comparecer ao evento, poderão adquiri-lo na sede do IHGRN, como uma forma de contribuir com esta Casa da Memória, para minimizar os seus grandes problemas financeiros.
Os que quiserem adquirir o livro e não tiverem condições de comparecer à nossa sede, que efetuem o depósito bancário da quantia de R$ 30,00 (trinta reais) por cada livro, na conta 35247-0 da Agência 022-1 do Banco do Brasil, envie o comprovante do depósito e nós mandaremos entregar o livro no endereço fornecido.
Esperando a sua colaboração,

ASSESSORIA DE COMUNICAÇÃO