26/02/2019


Literatura reformista
Já defendi neste espaço, algumas vezes, o estudo do direito por intermédio da literatura (leia-se, aqui, ficcional). E dei várias razões para tanto. Uma delas é o papel que a literatura pode ter na reforma – para melhor, claro – do direito. Embora não seja papel dela explicar ou mesmo reformar o direito (ou qualquer outro conhecimento humano), sua contribuição nesse sentido, sobretudo a partir de interfaces com a antropologia e a sociologia, é inegável.
Como lembram André Karam Trindade e Roberta Magalhães Gubert (no texto “Direito e literatura: aproximações e perspectivas para se repensar o direito”, que faz parte do livro “Direito & literatura: reflexões teóricas”, publicado pela Livraria do Advogado Editora em 2008), “a literatura constitui uma espécie de repositório privilegiado através do qual se inferem informações e subsídios capazes de contribuir diretamente na compreensão das relações humanas que compõem o meio social, isto é, o caldo de cultura no qual, ao fim e ao cabo, opera o direito”. A literatura ficcional, portanto, muito nos auxilia na compreensão do direito e de seus fenômenos.
Some-se a isso o fato de que a literatura ficcional geralmente apresenta uma visão crítica do direito, desprovida ou para além das amarras de um legalismo que, muitas vezes, embaça a visão e tolhe a liberdade do jurista de profissão. A análise do direito por intermédio da ficção nos permite o descobrimento de outros dos seus sentidos, em regra bem mais próximos de um ideal de Justiça.
Assim, a literatura ficcional, ao mesmo tempo em que reproduz (além da concepção particular de seu autor) o direito posto e o imaginário popular acerca das diversas temáticas jusfilosóficas (tanto as ideias como as escolas), também influencia, em graus variados, a construção desse direito e, sobretudo, desse imaginário. Nesse ponto, como se dá com outras interfaces da literatura (com a religião, com os costumes, com a moda etc.), ela (a literatura) é subversiva, tanto para a filosofia do direito como para o direito positivo de dado país.
Diz-se haver sido Charles Dickens (1812-1870), com seus maravilhosos romances, um dos grandes reformadores do direito do seu tempo, marcado pelas mazelas dos primeiros anos da Revolução Industrial. Mas não foi o autor de “Oliver Twist” (1837) e “Great Expectations” (1961) que militou nesse sentido. Muitas personagens de romances foram críticos do direito em vigor. William P. MacNeil (no livro “Novel Judgements: Legal Theory as Fiction”, editora Routledge, 2012), levando em consideração a literatura em língua inglesa do século XIX, aponta algumas dessas personagens em Elizaberth Bennet (de “Pride and Prejudice”), Rebecca of York (“Ivanhoe”), Frankenstein's Monster (“Frankenstein”), Esther Summerson (“Bleak House”), Joe Gargery (“Great Expectations”), Sidney Carton (“A Tale of Two Cities”) e Holgrave (“The House of the Seven Gables”).
Vou dar aqui mais dois exemplos precisos do que estou falando, desta vez tirados de um livro que, coincidentemente, estou lendo por estes dias, “História do direito na Europa: da Idade Média à Idade Contemporânea” (edição da WMF Martins Fontes, 2014), de Antonio Padoa Schioppa: “Um primeiro setor de inovações legislativas diz respeito à família. Na França, a Restauração havia abolido o divórcio admitido no Código Napoleônico. A crescente consciência das consequências não raro dramáticas, sobretudo para a mulher, de uniões irremediavelmente viciadas – uma consciência exaltada com muita eficácia também pela literatura: pense-se em Madame Bovary de Flaubert ou em Anna Karenina de Tolstoi – levou em 1884, após longas batalhas parlamentares e de opinião, à reintrodução do divórcio na França, limitado contudo a poucas causas específicas (rapto, estupro, sevícias, condenação penal) e com a exclusão do consentimento mútuo como causa de dissolução do vínculo. Ainda na França, muito gradualmente se impôs também a proteção da mulher: à esposa é reconhecida uma pequena capacidade de agir, bem como o usufruto de uma parcela dos bens do cônjuge falecido, a mulher separada foi subtraída ao poder marital, concedeu-se à mulher trabalhadora a possibilidade de dispor livremente de seu salário”.
Como já disse certa vez, não é assim de causar espanto que esses “críticos” – autores e personagens – tenham antecipado boa parte das modernas teorias e tendências do direito (tais como o feminismo, a ética jurídica, o biodireito etc.). De fato, muitas das ideias inovadoras no direito, assim como boa parte das críticas à mentalidade jurídica consolidada, historicamente encontraram sua mais vívida expressão nesse popular e imaginativo meio de expressão, denominado por nós de romance, mas que, poeticamente, o mesmo William P. MacNeil chamou certa vez de “lex populi” (na obra “Lex Populi: The Jurisprudence of Popular Culture”, Stanford University Press, 2007). Se isso seu deu nos tempos de Dickens, de Gustave Flaubert (1821-1880) e de Leon Tolstói (1828-1910), também se dá no nosso. Podem confiar no que eu escrevo.
Por fim, dito tudo isso, vou agora esquecer o direito e as suas reformas. Vou até deixar de lado a tal “História do direito na Europa: da Idade Média à Idade Contemporânea”. E vou xeretar os meus exemplares de “Madame Bovary” (da Abril Cultural, 1971) e de “Ana Karênina” (da Nova Cultural, em dois volumes, 1995). Para o fim de semana, parece muito mais agradável.
Marcelo Alves Dias de Souza
Procurador Regional da República
Doutor em Direito (PhD in Law) pelo King’s College London – KCL
Mestre em Direito pela PUC/SP

25/02/2019

MAIS UM AMIGO QUE PARTIU



Há poucos dias o estimado colega Berilo de Castro, regozijava-se com os 80 anos de ELACIR e na oportunidade fez a seguinte crônica:
"ELACIR, 80
 Por: BERILO DE CASTRO

Elacir Freitas da Rocha nasceu em Natal, no dia 25 de janeiro de 1939. Filho de Ormando Nobre da Rocha e Maria de Lourdes Freitas da Rocha.
Eu o conheci no final da década de 1950, quando residia na localidade do Baldo, na divisa dos bairros do Alecrim com o Centro da cidade. Nesta época e na mesma região, já prestava assessoria administrativa no Posto de gasolina São José, de propriedade do seu Ormando; ofício que lhe rendeu a prática de lidar com rapidez e muita precisão com o manuseio do  dinheiro.
Nos finais de semana, tinha a missão esportiva amadora de defender com muita pompa o gol da equipe do Real Madrid  do Baldo, usando o seu invejável uniforme negro, só usado pelo melhor goleiro do mundo — Lev Yashin, o Aranha Negra (1929-1990), da seleção Russa. Atuou também em vários outros times de várzeas, participando de jogos pelo interior do Estado.
Na era do Estádio Juvenal Lamartine (JL), no ano de 1955, teve uma rápida passagem pela equipe rubro-negra do Clube Atlético Potiguar (CAP), do nosso querido e imortal presidente João Machado, de Brígido Ferreira, do treinador Coqueiro, do seu auxiliar Arlindo e do boxeador/massagista Kid Passo.
No final da década de 1950, quando o Futebol de Salão (hoje Futsal) chegou empolgando a cidade, Elacir reaparece defendendo com destaque o gol do bom time do ABC, onde conseguiu levantar dois títulos.
Aposentado do futebol de salão, integrou-se definitivamente ao nosso grupo de peladeiros, chegando a participar por mais de 50 anos da nossa parceria recreativa nas tardes dos sábados. Chegando a impressionar nas suas últimas participações, com belíssimas, empolgantes e arrojadas defesas, quando já passava dos seus 70 anos.
Em 1973, já casado com Maria da Conceição de Araújo Rocha e com 4 filhos pequenos, foi diplomado em Direito pela UFRN.
No ano de 1975, assumiu o cargo de Auditor Fiscal do Ministério do Trabalho, onde permaneceu até a sua aposentaria como Delegado do Trabalho da Região.
Hoje, 27 de janeiro do ano de 2019, domingo de belo verão, reúne os seus fraternos amigos, os seus queridos familiares para comemorar os seus 80 anos de vida. Uma dádiva, uma história vencedora, de muito brilho, de muita união e muito amor.
Que a BÊNÇÃO e a PAZ do Senhor continuem a iluminar e a guiar a sua tão bonita e rica trajetória de vida.

PARABÉNS, AMIGO ELÁ!"
______
Hoje amargamos a saudade, que partiu há 7 dias.
Restaram as lembranças e a profunda saudade da família e dos amigos. DESCANSE EM PAZ.

22/02/2019

MILTINHO



MILTON SANTOS DE ALMEIDA

Valério Mesquita*

Sempre que me encontro com minha irmã Nídia Mesquita vivemos reminiscências. Conversas soltas, assuntos de ontem, e de hoje que reabastecem as gastas baterias do viver. Aqui e acolá mergulhamos nas lembranças de Macaíba, da fazenda Uberaba do nosso pai, onde vivemos momentos intensos de infância e juventude. Daí, foi um pulo retornar aos álbuns antigos de fotos, “à la recherce du temps perdu”. Desta vez, ao nosso lado, Marlene Freire de Ó, amiga de Nídia desde a Escola Doméstica, que reside hoje em São Paulo e que revisita Natal. Composto o trio, o importante era reviver e reatar os elos perdidos dos momentos felizes da anfitriã.
A ansiedade dos olhos e da mente comandava os impulsos das mãos, ora paginando, ora trocando impressões sobre lugares e pessoas. Ai me detive numa foto tirada em Natal, de vinte anos passados. Nela, figuravam o embaixador Ney Marinho, Nídia, Onfália Tinôco e o inexcedível Milton Santos de Almeida que visitava Natal numa temporada de reencontro e apresentações artísticas. Sobre ele já disseram que “canta samba tão bem que a metade já seria suficiente”. Trata-se de um valor definido dentro da arte musical brasileira e dono de uma voz personalíssima. Ali estava, é claro, mais jovem, vitaminado, como diria a crônica paroquial, atraído por Ney que pertenceu ao trade boêmio e acolhedor da cidade na arte de recepcionar iguais e gloriosos nomes da música popular brasileira, tais como, Silvio Caldas, Orlando Silva, entre outros. O parceiro inseparável de Neizinho nesse mister foi Raimundo do Cartório.
Mas, o leitor, adivinho, já me pergunta: quem diacho é Milton Santos de Almeida? Não poderia ser outro que não Miltinho, aquele que tinha balanço todo pessoal, agudo senso rítmico e timbre vocal inusitado. Diferente e comunicativo na interpretação mas, acima de tudo, de profunda honestidade artística. Perturbei a atenção das duas para falar suas músicas: Mulher de Trinta, Recado, Lamento, Cheiro de Saudade, Formosa, Boneca de Pano, Fita Amarela, Agora é Cinza, todos com o seu timbre inconfundível e estilo inimitável. Para chegar ao podium da consagração nacional, Miltinho enfrentou árdua jornada desde o tempo dos conjuntos vocais Namorados da Lua, Anjos do Inferno e Quatro Azes e um Coringa. Temperado  no sereno de muitas madrugadas daquele tempo, explodiu para o sucesso com a composição de Luis Antônio “Poema do Adeus” em 1960 e daí em diante para outros grandes êxitos que marcaram sua carreira.
Dele tenho em CD com as principais músicas do seu variável repertório. Curto-o no meu carro como valor autentico, irretocável e justo. Pensei: por onde anda Miltinho. Será que ainda se apresenta, ou até, chego a pensar o pior – no falecimento. Descobrir que faleceu no Rio, com quase 80 anos. Fiz ver a Nídia e Marlene que Miltinho pertence ao patrimônio emocional de minhas doces recordações. E juntos, testemunhamos nossas eternas preferências musicais de ontem e de hoje: Isaurinha Garcia, Dalva de Oliveira, Elizete Cardoso, Alcides Gerardi, Luiz Gonzaga e Nelson Gonçalves, além de muitos outros. A tarde descia preguiçosa pelos morros do Tirol. Uma brisa carpideira soprava pelas janelas do apartamento. Fechamos os álbuns e nos despedimos. Saí assobiando Miltinho sentindo intensamente irresistível cheiro de saudade...
(*) Escritor.




19/02/2019


O crime na literatura brasileira

Não faz muito tempo, eu escrevi aqui sobre Enrico Ferri (1856-1929) e o seu livro “Os criminosos na arte e na literatura” (publicado entre nós por Ricardo Lenz Editor, em 2001). Hoje vou tratar do que posso chamar seu “congênere” brasileiro, Lemos Britto (1886-1963), e do seu “O crime e os criminosos na literatura brasileira”, livro cuja edição que possuo, velhinha mas em bom estado, é de 1946, da outrora retumbante Livraria José Olympio Editora.
José Gabriel de Lemos Britto foi um político, professor, historiador, economista, jurista e criminalista nascido no estado da Bahia. De caráter reformador, Lemos Britto foi, sem dúvida, um dos grandes penalistas brasileiros no começo do século XX, sobretudo no campo da criminologia (onde misturava história, medicina, psicologia e direito) e do direito prisional. Foi autor de muitos livros. Eu mesmo fui à caça da sua bibliografia e achei, na página do WorldCat (catálogo que é gerido pela Online Computer Library Center, organização sem fins lucrativos, considerada a maior cooperativa de bibliotecas online do mundo), títulos tão variados como “Nossa independência: páginas escriptas para as crianças brasileiras” (1922), “A neutralidade do Brasil em face do direito internacional” (1925), “Psychologia do adultério” (1933), “A gloriosa sotaina do Primeiro Império: Frei Caneca” (1937), “Pontos de partida para a história econômica do Brasil” (1939) e por aí vai.
Dentre esses tantos livros, para nós, amantes da mistura direito e literatura, avulta o citado “O crime e os criminosos na literatura brasileira”. Um ensaio que, segundo o seu autor, “não é obra de arte ou de crítica literária; não é, tão pouco, tratado de psicologia criminal. Não procura imitar o conhecido livro de Ferri, I Delinque nell´Arte, nem o magistral trabalho de Giovanni Lombardi, intitulado Arte e Delinqueza. Difere de todos eles e não se propõe atingir uma tal altitude no domínio espiritual. O campo em que estas e outras obras de seu porte situam as reações da literatura à criminalidade é, apesar de surpreendente pela beleza, de notável pela acuidade de seus autores, e de seu caráter ou feitio internacional, restrito, limitado: a filosofia e a arte aí se encontram com o Direito, mas apenas determinados escritores e poetas, marcantes por seu gênio em várias épocas, nalguns países, são chamados à fala e estudados como precursores de ideias que deveriam mais tarde sombrancear as raias da criminologia e da psiquiatria. São livros de visada universal, ao passo que este é de caráter nacional, só se fazendo, nele, referência a escritores ou juristas estrangeiros para elucidar pontos omissos, ilustrar afirmações ou estabelecer confrontos úteis”.
Não estou muito certo dessas dessemelhanças alegadas por Lemos Britto. Não conheço o livro de Lombardi (o citado “Arte e Delinquenza”). Mas já escrevi sobre o livro de Ferri e vejo mais semelhanças de propósitos do que diferenças de conteúdo entre os livros. E, afinal, a própria necessidade de referência aos títulos no primeiro parágrafo da sua “Introdução” denuncia o contrário do que ele diz.
De toda sorte, como disse o próprio autor, “crime é velho como a própria humanidade. (…), e a literatura, que é expressão da vida humana no que ela oferece de belo e de feio, de bom e de mau, de refalsado ou verdadeiro, de virtuoso ou de maligno, não podia deixar de reproduzir as maldades humanas”, em que pese a admoestação um bocado ingênua do grande Platão (427-347 a.C.) contra a arte imitativa da mentira, do vício, da paixão e do delito, que apenas glamorizaria o que há de pior nos instintos humanos. Assim, não poderia ser diferente com a literatura brasileira, embora talvez em menor grau, como entende o próprio Lemos Britto. Também temos crimes e criminosos em nossos romances, novelas, contos e poesia. E, graças a Deus, tivemos esse criminalista baiano para nos apontar essa maravilhosa literatura e os seus autores.
Se em “Os criminosos na arte e na literatura”, Ferri trata de gente como William Shakespeare (1564-1616), Friedrich Schiller (1759-1805), Émile Gaboriau (1832-1873), Victor Hugo (1802-1885), Émile Zola (1840-1902), Fiódor Dostoiévski (1821-1881), Leon Tolstói (1828-1910), Henrik Ibsen (1828-1906) e Gabrielle D’Annuzio (1863-1938), entre outros, em “O crime e os criminosos na literatura brasileira”, Lemos Britto cuida dos gigantes das nossas letras. Nas palavras do próprio autor, “de par com os mais altos espíritos de nossas letras, os Rui, os Machado de Assis, os Gonçalves Dias, os Sílvio Romero, os Castro Alves, o leitor encontrará, sem linhas divisórias preestabelecidas, os romancistas e poetas de hoje, os José Lins do Rego, os Lúcio Cardoso, os Abguar Bastos, os Catulo da Paixão Cearense. E de braço dado com José Veríssimo, Lúcio de Mendonça, Bilac, Cruz e Souza, os Jorge Amado, os Jorge de Lima, os Orígenes Lessa, os Phocion Serpa. Finalmente, na maior intimidade de Coelho Neto, Aluísio Azevedo, Graça Aranha, Afonso Arinos, José de Alencar, Taunay e Afrânio Peixoto, os José Américo, os Afonso Schmidt, os Augusto dos Anjos, os Octávio de Faria e os Roberto Gil”. E aqui, curiosamente, afirma Lemos Britto acerca dos nossos luminares: “Não me preocupam as ideias que professam, as crenças que têm, os credos políticos a que se filiam. Esta obra estaria completamente desfigurada se entrasse nos domínios do sectarismo literário, filosófico, religioso, político”.
Bom, também não estou muito certo da completa isenção ideológica do autor. Ninguém consegue ser livre de todos os seus preconceitos. Ninguém. Os analistas posteriores de “O crime e os criminosos na literatura brasileira”, aliás, apontam a obra como de claro pendor lombrosiano. Certamente, histórias e estórias relacionadas a sexo e raça, como causa ou sintoma da criminalidade, têm destaque no livro de Lemos Britto. E isso é mais que controverso. Mas já é grande coisa, no Brasil de hoje, em que tudo tem um viés ideológico, quase patológico, profundamente marcado pela ignorância, que possamos ler alguém que procura – e acredito na sinceridade dele – ser “isento”. Mesmo que esse alguém tenha escrito há coisa de oitenta anos atrás.

Marcelo Alves Dias de Souza
Procurador Regional da República
Doutor em Direito (PhD in Law) pelo King’s College London – KCL
Mestre em Direito pela PUC/SP

15/02/2019




MACAÍBA E PARNAMIRIM: CIDADES DOS MIGRANTES

Valério Mesquita*

Marcadamente, desde o século XIX, Macaíba, antes Coité, recebeu caudalosas correntes migratórias de dois pólos emissores do Nordeste: Paraíba e Pernambuco. Recentemente a TV Globo esteve lá e em Parnamirim a fim de pesquisar e registrar esse fenômeno que ocorre na área metropolitana de Natal. O fato de chegar a preocupar uma emissora desse porte ao ponto de incluir no “JN no Ar” os dois municípios no nível de uma investigação social reveste-se se singular importância: saber a razão e o porquê do que está atraindo brasileiros de outras regiões para cá. A reportagem apurou que hoje, nas “vizinhanças de Natal condomínios brotam mais rápido do que o mandacaru no sertão”.
Vê-se que a expansão imobiliária é um dos motivos para isso, somado a estatística de que, nos arredores de Natal, quatro cidades recebem em média vinte e oito novos moradores por dia. Investimentos públicos e privados têm abastecido a locomotiva de aumento da população. Até a indústria petrolífera, segundo a reportagem global, que gera trinta e sete mil empregos no estado, muitos escolhem as proximidades da capital para residir, apesar do engarrafamento do transito e a superpopulação da região metropolitana. Macaíba – vocacionada há dois séculos para o comércio e a indústria – as ruas centrais mais parecem um “mercado persa” ou uma Babilônia de transeuntes, automóveis e motos. As residências que conheci em um passado recente, foram transformadas em pontos de comércio, até nas calçadas, impondo-se aí a descaracterização física de sessenta, cinquenta anos atrás.
Quando visito a minha terra eu não me revejo mais. O “capitalismo” emergente transformou-a numa legião estrangeira. Ninguém conhece ninguém. São raras as fisionomias e olhos que refletem a cidade que vivi. Daí me preocupar com a preservação de sua memória histórica para que não venha perder a sua identidade. Todavia, entendo que é o preço alto da proximidade das cidades com a capital. Progresso desgovernado. Tudo começou, assinaladamente, com Fabrício Gomes Pedroza, fundador da cidade de Macaíba, em 27 de outubro de 1877. Antes, se chamava Coité (outra palmeira). Era o reduto da aristocracia rural fincada pelo coronel Estevão Moura no Engenho do Ferreiro Torto. Ocorreu aí o choque inevitável da atividade comercial chantada pelo pernambucano Fabrício no monte dos Guarapes e o latifúndio rural dos Moura que abrangia São Gonçalo e Macaíba.  Comércio levou a melhor. Estava decretada a sua vocação econômica.
Daí para frente, todas famílias que escreveram a sua história na vida municipal, os pioneiros vieram da Paraíba e de Pernambuco. Os Albuquerque Maranhão, os Castriciano de Souza, os Freire, os Mesquita, os Tavares de Lyra, os Chaves, os Garcia, os Maciel, os Alecrim, os Leiros, os Curcio, os Meira Lima, os Andrade e por aí, centenas delas que ingressaram na lide comercial, industrial, cultural, política e jurídica. Todos os macaibenses que se tornaram ilustres depois provieram dessas origens migratórias patriarcais. No século XX, da segunda metade em diante, dezenas de macaibenses originários dos citados troncos hereditários, igualmente geraram filhos ilustres, principalmente, no ramo do comércio. Até na política, Macaíba é um eldorado de correntes migratórias. Quem souber, pode, de per si, declinar quantos prefeitos e vereadores oriundos de outras plagas já comandaram o poder público local, o que reflete o caráter volúvel e também migratório do seu eleitorado.
(*) Escritor.

11/02/2019



Tem, mas tá faltando
Vivemos – ou viveremos nos próximos meses – tempos de reformas do Brasil: a reforma da previdência, o “projeto Moro” de combate à criminalidade, uma possível reforma tributária, a recorrente reforma política e por aí vai.
Essas reformas aí são mais que urgentes, concordo plenamente.
Mas será devemos reformar tanto o nosso direito? Será que devemos reformá-lo como um todo? Será que nos falta tudo?
Outro dia, conversando com um grupo de ex-alunos, com o qual topei por acaso, fiquei quase convencido de que este é o sentimento geral. E me bateu uma tristeza, sobretudo porque esse sentimento de insatisfação com a Justiça era dirigido especialmente ao nosso Supremo Tribunal Federal, órgão mais importante e vitrine do nosso aparelho judicial.
A opinião era quase unânime. Por exemplo, uma aluna, muito jovem e bela, me disse, na lata: “professor, no STF falta tudo. Falta, de logo, estabilidade. E um direito estável é salutar para qualquer país. A instabilidade, com regras jurídicas constantemente reformuladas e aplicadas de maneira inconsistente, prejudica muito a confiabilidade no nosso sistema. Infelizmente, a instabilidade do direito parece já fazer parte da tradição brasileira, sofrendo o nosso sistema jurídico, e o nosso STF num grau altíssimo, desse problema”. Calado estava, mudo fiquei.
“Por isso”, disse outra aluna, já não tão jovem, contudo ainda mais bonita, “falta previsibilidade. Essa instabilidade de entendimento, em casos semelhantes, torna simplesmente imprevisível qual será a solução aplicada à mesma situação se vier acontecer novamente alguma querela judicial. Os indivíduos e as pessoas jurídicas não conseguem assim ordenar suas condutas e seus negócios, e os advogados, em sendo o caso, não podem antecipadamente aconselhar seus clientes, pois não há uma previsão segura de como as questões serão resolvidas judicialmente”. Calei-me duplamente.
“E falta até mesmo igualdade, professor. A igualdade perante a lei deve implicar igualdade na interpretação e aplicação dessa mesma lei. Mas a jurisprudência do nosso STF é cheia de distinções ilógicas, para dizer o mínimo. Nada mais justo que casos semelhantes sejam resolvidos de modo semelhante; ao revés, nada mais injusto que esses casos (semelhantes) sejam decididos, arbitrariamente, de modos diversos. Dar e garantir decisões semelhantes para casos semelhantes, de sorte a evitar qualquer desigualdade arbitrária em prejuízo do jurisdicionado e da própria administração da justiça, é uma das principais obrigações daquele que foi alçado a guardião da Constituição”. Foi mais ou menos o que disse um dos rapazes, inteligentemente, criando coragem em cima do meu silêncio eloquente.
“Aliás, relacionado à igualdade, temos a questão da celeridade. O acesso rápido à justiça é um norte perseguido pelo direito hoje em dia. Basta consultar a Constituição e as mais recentes leis processuais para constatar isso. Considerando tanto a ótica do jurisdicionado como da própria administração da Justiça, num processo civil ou penal de resultados, não haverá um verdadeiro acesso à justiça se a prestação jurisdicional for dada tardiamente. Para o bem desse jurisdicionado e do próprio Estado, o processo deve encerrar-se o mais rapidamente possível. O problema, no STF, é que, para alguns, essa celeridade não falta. Mas, para a grande maioria, o que abunda é a morosidade”. Foi assim que voltou à carga, com um olhar que dizia mais do que devia, a mais bela do grupo. Me fiz de doido.
“Isso sem falar na pomposidade do STF, professor. Com cada um ali querendo vaidosamente ‘legislar’ mais do que o outro, acaba faltando precisão e simplicidade às decisões do Tribunal. Substitui-se indevidamente o legislador. Perde-se o prêmio que é dar um passo da generalidade da lei em direção à concretude da vida. Perde-se a oportunidade de criar um princípio nascido de um caso concreto, com alto grau de precisão no regramento dos fatos e dos negócios da vida das pessoas. Com a mistura de papéis, tudo se torna muito complexo. E, hoje em dia, não se enxerga, naqueles que estão ali, qualquer intenção de minimizar essa falta de, digamos, transparência”, disse o mais gaiato da turma, de modo empolado, imitando um dos ministros do que ele chamou, cheio de ironia, de Pretório Excelso. Foi uma gargalhada geral. Eu apenas sorri discretamente.
Bom, eu quis muito defender o nosso direito e o nosso Supremo Tribunal Federal. De críticas infundadas, de reformas desnecessárias. Quis dizer que possuímos isso e que temos aquilo. Mas, por alguma razão, senti-me intimidado. Não sei bem dizer o que foi. A beleza, às vezes, causa essas coisas. A juventude aguerrida também. Mas talvez eu tenha apenas ficado com medo de receber um “tem, mas tá faltando”.
Marcelo Alves Dias de Souza
Procurador Regional da República
Doutor em Direito (PhD in Law) pelo King’s College London – KCL
Mestre em Direito pela PUC/SP

10/02/2019


O VELHO ATHENEU: LEMBRANÇA QUE O TEMPO NÃO DESFEZ 

Valério Mesquita* Mesquita.valerio@gmail.com 

     Naquele tempo, o nosso mundo começava no Atheneu, um nome bonito, sonoro, poético. Era o tempo da felicidade na sua forma mais simples; dos primeiros alumbramentos; dos gestos inaugurais dos amores clandestinos.

     Falar sobre o Atheneu dos idos 50 e 60 é caminhar numa procissão de relembranças. "Seu Babau, quantas declinações existem no Latim". "Sei não, professor". "Sente, zero. Nominativo, genitivo, dativo, acusativo, vocativo e ablativo". 

     Era o Cônego Luiz Wanderley arguindo Raimundo Torquato, apelidado de Babu mas o padre declinava no acusativo: "Babau". Vascaíno fanático, havia um jeito da turma se livrar da terrível chamada oral de latim da segunda-feira: elogiar o Vasco e comentar a sua vitória. No caso de derrota: "delenda est Babau!". 

      Sem nenhum demérito aos atuais mestres do Atheneu norte-rio-grandense de hoje, mas será que o tempo poderia restituir essa seleção de ouro? 

   Floriano Cavalcante (que ensinava história proferindo discurso); Protásio Melo (que nos influenciou o interesse pelos autores ingleses e americanos); Esmeraldo Siqueira professor de francês (com o seu indefectível charuto, cuja fumaça desenhava no ar os perfis de Hugo, de Daudet, de Vigny, de Balzac, de Gide, etc); Álvaro Tavares (modesto, simples, erudito); Cônego Luiz Wanderley (grande orador sacro e latinista), para citar aqueles que nos ensinavam diretamente. 

     Nesse universo perdido havia outras figuras inesquecíveis que não travaram contato conosco mas povoaram a mesma amorável galáxia que vai ficar na memória e na moldura do século que terminou.

     Mensurar o quanto a intelectualidade do Rio Grande do Norte deve ao Atheneu é uma tarefa impossível. Desde o tempo do inexcedível Professor Celestino Pimentel, de Alvamar Furtado (o Clark Gable dessa Hollywood Potiguar), Câmara Cascudo (o mais sedutor dos mestres), e toda uma plêiade de professores quase todos absorvidos mais tarde pela Universidade Federal, nos faz deduzir que o Atheneu não foi, apenas, uma usina preparatória e educadora de gerações mas também de mestres que ajudaram a erigir o edifício de um novo tempo: uma instituição de ensino superior. 
     O velho Atheneu tem o dom da dimensão entre o efêmero e o eterno. Nele algo mais para se sentir do que para se dizer. 

     O Atheneu é a história de uma que se fez realidade. Concebido pelo arrojo arquitetônico extra época, insignes diretores deram vida e estabilidade definitivas ao idealismo renovador do ex-governador Sylvio Piza Pedroza. "Ver bem não é ver tudo, é ver os que os outros não vêem". 
     Nessa frase perfeita de José Américo, Sylvio Pedroza, quem sabe não estaria enxergando longe o embrião da futura Universidade? 

    Só sei que o tempo respeitou o que nele construiu para depois os próprios mestres, ao longo do tempo, se encarregarem da materialização do seu sonho. Isso porque, é na própria criação que o homem faz descobertas. 

    O mestre Protásio Melo que teve uma vida inteira consagrada ao ensino de gerações, hoje nada "tendo nas mãos que foram pródigas", não viu a hora do silêncio e nem se calou. Abriu as asas de sua pesquisa sobre a história do Atheneu, a história de todos nós. 

     E entardecia para que se pudesse resgatar esse acervo rico de humanismo e tradição. Protásio mesmo, que cresceu nas ervas de Walt Whytm para hoje, neste milênio, nos respingar da água benta de uma aurora, onde foi um dos protagonistas dos mistérios circundantes. 

(*) Escritor