29/09/2020

 


Uma distopia?
Na querida Aliança Francesa de Natal, onde estudamos o idioma de Jules Verne (1828-1905), conversamos estes dias sobre as “cidades do futuro”. Tema importantíssimo, já que, segundo consta do nosso livro/curso, se no começo do século XIX apenas 2% da população mundial vivia em cidades, esse percentual será de 66% lá pelo ano 2050.
Mas como serão, então, essas cidades do amanhã? Segundo o nosso livro/curso, é possível apresentar quatro grandes tendências de evolução das cidades: (i) a criação de espaços verdes, inclusive para fins alimentares, integrados aos imóveis residenciais e comerciais; (ii) bairros ou cidades inteiras autossustentáveis energeticamente; (iii) uma mobilidade urbana muito mais diversificada e conectada; (iv) e, com o desenvolvimento galopante das tecnologias, a existência de um verdadeiro big data urbano. Até aí tudo bem. Parece um cenário positivo.
O problema é que os próprios especialistas estão preocupados com essa última tendência. As vantagens de uma cidade “inteligente” são inegáveis. Conforto e segurança serão dois pontos bem positivos. Mas isso pode cair no exagero. Numa videovigilância quase total. Pelo governo, por gigantescas empresas ou por um algoritmo qualquer. Uma sociedade pan-óptica. Um Big Brother. Em detrimento do cidadão e da democracia. Da privacidade e das liberdades civis.
E foi aí que a conversa caminhou para aquilo que eu mais gosto: a literatura. Por sugestão da própria professora, começamos a discutir o que os franceses chamam de “roman d’antecipation”, um tipo de ficção científica que “evoca as supostas realizações do futuro. Que se apoia no estado atual da ciência, da tecnologia e da sociedade, e imagina as suas consequências num futuro mais ou menos próximo”. E talvez seja Jules Verne, citado acima, o primeiro nome que nos vem à mente quando tratamos desse tipo de literatura.
Se não me engano, falamos de livros/distopias como “Admirável mundo novo” (“Brave New World”, 1932), de Aldous Huxley (1894-1963), que imagina, para a Londres do ano 2540, uma sociedade inflexível, condicionada física e emocionalmente, por critérios reprodutivos e de nascimento artificialmente estabelecidos. De “Fahrenheit 451” (1953), de Ray Bradbury (1920-2012), que descreve um futuro em que os livros são proibidos e queimados, o pensamento crítico e as opiniões próprias são vedadas. Uma América anti-intelectual, pode-se dizer, sem suspeitar qualquer paralelo com o estado atual das coisas por lá. E, claro, de “1984” (“Nineteen Eighty-Four”, 1949), de George Orwell (1903-1950), que mostra o cenário de uma sociedade totalitária futura, sob a dominação do “Partido”, em um mundo pós-guerra nuclear total. Um ambiente de total monitoramento, no qual o “Big Brother is watching you”.
Todavia, para mim, a coisa mais interessante se deu com a apresentação de um romance distópico que eu não conhecia: “Les Furtifs”, de Alain Damasio (1969-), lançado pelas Éditions La Volte, quase agora, em 2019. Novíssimo, portanto. E sem tradução para nosso português.
Basicamente, num futuro próximo, as cidades que hoje conhecemos foram adquiridas por multinacionais. Paris pela LVMH, Lyon pela Nestlé, Cannes pela Warner e por aí vai. Com todas as consequências disso decorrentes, como a expulsão dos habitantes de suas moradias, o super encarecimento destas, o fim da democracia comunal etc. Há quem ache bom. Mas há também quem resista. Na cidade de/a Orange, isso se dá. Há os “furtivos”, criaturas extraordinárias que, mimetizando animais, plantas e minerais, misturam-se ao ambiente e escondem-se da nossa visão. E há a história pessoal de um pai em busca da filha desaparecida, alegadamente sequestrada pelas tais criaturas quase invisíveis. O romance foi muito bem recebido. Vendeu bem, críticas positivas (em especial quanto à riqueza do vocabulário, certamente por isso sugerido no nosso curso de francês) e já recebeu alguns prêmios. Quero ler, sem dúvida.
Só uma coisa me encafifou: com essa ideia (de alguns) de privatizar de tudo e mais um pouco, será mesmo “Les Furtifs” apenas uma distopia?
Marcelo Alves Dias de Souza
Procurador Regional da República
Doutor em Direito (PhD in Law) pelo King’s College London – KCL

22/09/2020

 

gustavosobral

.com.br

Relíquias que contam a história, o Instituto Pro-Memória

 

Um homem e a sua obra

Patrimônio

 

Macaíba, 17 de setembro de 2020. O sol já ia alto e ventava em setembro como se ainda fosse agosto. Na entrada da cidade, obras na estrada, e o busto de Augusto Severo, impávido, como se estivesse como o aviador a ver o mundo de um balão, indiferente às mudanças.

 

 

A cidade caminhava um dia de semana, o comércio agitado, no centro.  A fachada da igrejinha e o prédio da prefeitura restavam como uma lembrança do passado até que, mais adiante, no fim de uma rua sem fim, uma pequena casa sem azulejo na fachada, portão de alumino ou vidraças, recebia o vento e a luz da manhã de sol.

 

 

À sombra da buganvília, a casa parava o tempo como no tempo que só ela existia e tudo aquilo era um descampado. A casa restou como coisa de dois séculos passados. A data está presente: 1856. É o Solar Caxangá, Instituto Pro-Memória de Macaíba.

 

 

As paredes, as portas, os vãos, os caibros, nada mudou e a casa está lá, e como tudo que fica no tempo exigiu os reparos necessários e o acompanhamento do arquiteto Ubirajara Galvão que, incrédulo, orientava o processo de recuperação e restauração, nos conta Olimpio Maciel, da porta, o homem que fez da casa um instituto e do instituto um memorial do Rio Grande do Norte.

 

 

É o Rio Grande do Norte e a sua Macaíba no retrato das velhas figuras, em bustos, no mobiliário que conta não só outros tempos, mas outros usos nos objetos de ontem como uma carteira escolar, um gramofone, uma máquina fotográfica, e tantas outras peças, sem contar os livros.

 

Tudo parece imóvel, indistinguível, estático, mas tudo ganha vida quando Olímpio Maciel deita um olhar sobre uma peça ou é indagado acerca disto ou daquilo que ali está. Então, os retratos ganham nome, lugar, data, as famílias recuperam os seus parentescos, os artistas revivem em suas obras, tudo ganha vida.

 

O instituto de Olimpio Maciel é um projeto inovador, pioneiro, único, de um homem que, não só como médico radiologista, salvou vidas ao diagnosticar os seus pacientes, mas que fez para Macaíba e para o Rio Grande do Norte o que cada município deveria ter, um santuário da sua vida cultural, das suas figuras, dos seus artistas, dos seus nomes, um espaço dedicado ao passado.

 

 

E, assim, o médico, no seu silencioso oficio de colecionador, construiu a sua obra. Salvou durante toda a sua vida a memória e a cultura do Rio Grande do Norte que hoje ele reúne no seu acervo e apresenta no seu museu. Um gesto que deveria não só ser copiado a torto e a direito mas que também deveria ser tombado como patrimônio cultural.

 

Para mais informações, navegue: http://www.institutojosejorgemaciel.org.br/

Para ler este e outros inscritos, acesse: gustavosobral.com.br

Marcelo Alvest
A tricolor
Faz muitos anos, estudando em Cambridge, fui a Londres assistir a “Cats”, o musical. Encantado com a música de Andrew Lloyd Webber (1948-) e com os versos de T. S. Eliot (1888-1965), já na semana seguinte, fui assistir uma segunda vez, numa excursão da escola de línguas em que eu estudava. Lembro-me muito bem.
Meu encantamento era como aquele narrado por Annette Y. Kirk, na edição que possuo de “A era de T. S. Eliot: a imaginação moral do século XX” (Realizações Editora, 2011), de Russell Kirk (1918-1994), “com a dança e a música dos felinos, bem como com a graça e a sagacidade de Resmungato, Velho Deuteronômio, Mister Mistfelino, Macário, o Gato Misterioso e todo o bando do Livro do Velho Gambá sobre Gatos Travessos”. Para mim, também, talvez o mais tocante do musical tenha sido “Grazibela cantando ‘Memories’, uma canção que nos desperta a atenção para o páthos da vida humana. Sua morte e ascensão expressam o profundo anseio pela vida eterna, tema sempre presente nos poemas, nas peças teatrais e na prosa eliotianos”.
De 1939, musicados por Lloyd Webber em 1981, é provável que T. S. Eliot nunca tenha imaginado que, dramatizados, os seus “poemas sobre gatos fossem atingir um público muito maior que a soma de todas as pessoas que assistiram às suas peças” ou mesmo a soma dos que, durante a sua vida, “compraram seus livros”. Mas atingiram até este nordestino aqui. Em cheio.
O fato é que eu também me envolvi com uma colônia de gatos ao estilo “eliotiano”. Só que gatos de verdade, que observei e alimentei, todos os dias, encantado, durante mais de cinco meses desta pandemia. A colônia habita uma pracinha, ladeada de uma mata, quase em frente ao meu apartamento. Era minha respirada de ar, nos fins de tarde, nestes tempos tão difíceis.
Tinha a velha gata preta, mansíssima, que está ali há séculos. A gata branca e pintada, mãe de duas ninhadas, que foi adotada, junto com os filhotes pequeninos. Os dois jovens gatinhos irmãos, da primeira ninhada, quase idênticos, só diferenciados pelos focinhos branco e preto. A gatinha-irmã tricolor, a mais arisca e assanhada do bando, que suspeitei até estar grávida, em seguida dado cria, o que atrapalhou nossa programação de castrá-la. O gato branco velho, que vai e volta, e suponho ser o pai de todos os jovens. E, claro, tinha os gatos ocasionais: o frajola que tratamos da pata machucada, o rajado que comia embaixo, um amarelo furtivo, um branco do rabo escuro que só aparecia à noite e por aí vai. E eu me sentia o gato “Manda-Chuva” (o “Top Cat”), do velho desenho de Hanna-Barbera. Aliás, me sentia o Guarda Belo. Apesar das trapalhadas, no final, tudo dava mais ou menos certo na nossa colônia.
Até o dia em que a bela gatinha tricolor sumiu. Procuramos bastante. Até achamos, sem querer, o corpo de um outro gatinho, rajado, visitante ocasional do lugar. Encontramos o corpo da tricolor já bem deteriorado, num matinho, próximo a pista. Contam que ela foi atropelada. Deixou o seu lugar e o seu bando. Talvez uma escapada em busca de uma alimentação mais fina. Talvez a volta de uma namoradela. Quase como a Grazibela, glamourosa, na sua juventude. E foi colhida por um carro, como a Iracema do nosso Adoniran Barbosa (1910-1982).
A gatinha tricolor não vai mais voltar para o seu bando, como fez a Grazibela de “Cats”, já velha e sarnenta, apenas uma lembrança dos tempos de gata jovem e glamourosa. Não vai cantar “Memory” para os seus companheiros de tribo, inclusive eu. Tenho certeza de que seria bem-vinda. E o seu desaparecimento definitivo, desbotando as tardes, me deixou muito triste.
A única coisa que me conforta é que a tricolor morreu como viveu. Arisca, assanhada, bela. Fazendo o que queria. E instantaneamente, suponho. Morreu dignamente, dizem alguns. É o que todos nós queremos um dia, gatos e humanos, acredito. E é a única coisa que me conforta.
Marcelo Alves Dias de Souza
Procurador Regional da República
Doutor em Direito (PhD in Law) pelo King’s College London – KCL
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21/09/2020

 A 5ª DIMENSÃO DO ESTRESSE


Valério Mesquita
mesquita.valerio@gmail.com


Tudo incomoda o vivente. O sobrevivente. Provar a sensação amarga da guerra perdida. Contemplar do alto do edifício urbano as maiorias fúteis impondo iniquidades sobre Natal. O ter que habituar-se com a visão torta e vesga dos poderosos de plantão que impõem suas regras pela mídia. Natal sem becos, sem esquinas boêmias, sem praças, sem preces, povoadas de vultos inexpressivos que não serão falados amanhã. Extraviaram a noção de história. Os anos inaugurais do século XXI, não têm o glamour dos fatos e das figuras do século passado. O homem coisificou-se. Perdeu a densidade, a identidade, a musculatura dos gestos e dos passos que fazem história.

Na política, não temos mais líderes como antigamente: os neófitos já significam  os náufragos que irão morrer amanhã. A paisagem é deserta. As instituições se burocratizaram em blocos de ferro e cimento armado. Não têm mais lume nem leme. “Igrejinhas” tão somente. Não sei se há esperança. Não sei se há salvação. A única ameaça à ordem constituída continua a ser o câncer de próstata. Muitos acreditam que é o maior desafio ainda não enfrentado pelo Ministério Público.

Por outro lado, Natal a cada dia, fica mais insuportável com a quantidade de veículos. De motos. Principalmente aquelas que cortam o seu carro pela direita. Mas, assim caminham as capitais, as metrópoles para o futuro enganoso oferecido pelas imobiliárias. O ensino público e privado mercadejou-se tanto quanto o turismo sexual. Perdeu a qualidade. E viva a quantidade.

Fortunas repentinas arremetem-se para o alto iguais ao crescimento vertical da cidade. Não há explicação. Não há investigação. Tudo é volátil e volante. Expresso em arcos voltaicos celebrados na crônica social. É aí que se deduz que toda celebridade quando não é célere, é celerada. Ou fazem de cômicas todas as autoridades.

Saio de mim para penetrar na imponderabilidade do oceano que assiste, lá fora, a decomposição humana. A visão misteriosa do oceano pacifica e beatifica o pecador solerte, já dizia o décimo terceiro apóstolo de Cristo, perdido no tempo e no espaço, ainda acreditando na grandeza do último milagre. Mas, estresse é coisa séria. Pode ser trágico, para não dizer cômico. Não há como escapar de suas ilações, reações adversas e efeitos colaterais. Mas, que Natal está chata e irreconhecível infelizmente é verdade.

Tenho ultimamente pensado muito em Lucrécia. As duas. A Bórgia e a do Oeste. São pontos de fuga. Estações de tratamento para os dias. Os mesmos dias.

18/09/2020

 A 5ª DIMENSÃO DO ESTRESSE


Valério Mesquita
mesquita.valerio@gmail.com


Tudo incomoda o vivente. O sobrevivente. Provar a sensação amarga da guerra perdida. Contemplar do alto do edifício urbano as maiorias fúteis impondo iniquidades sobre Natal. O ter que habituar-se com a visão torta e vesga dos poderosos de plantão que impõem suas regras pela mídia. Natal sem becos, sem esquinas boêmias, sem praças, sem preces, povoadas de vultos inexpressivos que não serão falados amanhã. Extraviaram a noção de história. Os anos inaugurais do século XXI, não têm o glamour dos fatos e das figuras do século passado. O homem coisificou-se. Perdeu a densidade, a identidade, a musculatura dos gestos e dos passos que fazem história.

Na política, não temos mais líderes como antigamente: os neófitos já significam  os náufragos que irão morrer amanhã. A paisagem é deserta. As instituições se burocratizaram em blocos de ferro e cimento armado. Não têm mais lume nem leme. “Igrejinhas” tão somente. Não sei se há esperança. Não sei se há salvação. A única ameaça à ordem constituída continua a ser o câncer de próstata. Muitos acreditam que é o maior desafio ainda não enfrentado pelo Ministério Público.

Por outro lado, Natal a cada dia, fica mais insuportável com a quantidade de veículos. De motos. Principalmente aquelas que cortam o seu carro pela direita. Mas, assim caminham as capitais, as metrópoles para o futuro enganoso oferecido pelas imobiliárias. O ensino público e privado mercadejou-se tanto quanto o turismo sexual. Perdeu a qualidade. E viva a quantidade.

Fortunas repentinas arremetem-se para o alto iguais ao crescimento vertical da cidade. Não há explicação. Não há investigação. Tudo é volátil e volante. Expresso em arcos voltaicos celebrados na crônica social. É aí que se deduz que toda celebridade quando não é célere, é celerada. Ou fazem de cômicas todas as autoridades.

Saio de mim para penetrar na imponderabilidade do oceano que assiste, lá fora, a decomposição humana. A visão misteriosa do oceano pacifica e beatifica o pecador solerte, já dizia o décimo terceiro apóstolo de Cristo, perdido no tempo e no espaço, ainda acreditando na grandeza do último milagre. Mas, estresse é coisa séria. Pode ser trágico, para não dizer cômico. Não há como escapar de suas ilações, reações adversas e efeitos colaterais. Mas, que Natal está chata e irreconhecível infelizmente é verdade.

Tenho ultimamente pensado muito em Lucrécia. As duas. A Bórgia e a do Oeste. São pontos de fuga. Estações de tratamento para os dias. Os mesmos dias.

15/09/2020

 

Os Monomotapas

Tomislav R. Femenick - Historiador

 

O e-mail era lacônico: “O que sabe do gd Zimbábue?”. Respondi sucinto: “É assunto do meu livro Os Escravos”. Recebi de volta: “Então escreva um artigo”. Aqui está ele:

Entre os anos 300 e 850 d.C. povos chonas (shonas), vindos de terras próximas ao lago Taganica, chegaram à região onde hoje se localizam as repúblicas de Zimbábue, Zâmbia e Malaui. Anos depois, iniciaram as primeiras edificações de pedra que integram um dos mais intrigantes monumentos da história da raça negra e uma das maiores e mais notáveis construções da Idade do Ferro: o “Grande Zimbábue”. Os primeiros prédios teriam sido erigidos por volta do ano 1100 e as grandes muralhas entre os anos 1350 e 1400. Esse conjunto (e outros de menor grandeza) localiza-se entre os rios Zambeze e Limpopo, em um platô com altitude que vai de mil a dois mil metros.

Hoje o Grande Zimbábue é reconhecidamente um dos mais importantes sítios arqueológicos da África Negra. Acredita-se que tenha sido a corte real e um centro de rituais religiosos. É uma construção feita com pedras de tamanho quase igual, que se encaixam de maneira precisa e uniforme, em fileiras contínuas e curvilíneas, sem qualquer argamassa para fixação. Na parte superior da muralha há várias torres circulares, algumas medindo até quatro metros de altura, separadas por intervalos iguais, com desenhos decorativos em monólitos de granito ou de pedra-sabão. No seu interior há outros muros menores.

Ao serem redescobertas, em 1905, alguns estudiosos elaboraram a teoria de que eram realizações de um povo perdido ou teriam sido os árabes que haviam projetado as grandes construções de pedra. Hoje não há dúvidas; esta é uma realização dos chonas.

No princípio do século XV, eles se tornaram um império, conhecido como Monomotapa (ou Monomopata); como os portugueses o denominaram. Esse Estado emergiu de um processo de competição entre pequenos reinos antes existentes e, também, como resultado de um conjunto de condições econômicas objetivas, que tinham como fim controlar a produção de ouro.

A atividade econômica mais comum entre os povos da Grande Zimbábue era a criação de bovinos e a agricultura. Como as suas terras não eram propícias à formação de pastagens durante todo o ano, desenvolveram o sistema de transumância, deslocando o gado da planície para o planalto, na estação de seca, e do planalto para a planície, nas estações chuvosas. Dedicavam-se, também, à metalurgia de ouro, à extração de pedras preciosas, à mineração de ferro, estanho e cobre, bem como ao comércio de marfim e escravos. Seus mercados eram o Egito, outros países africanos, a China e, possivelmente, a Índia.

Em meados e até perto do final do século XV, o Império atingiu o seu apogeu. Foi nesse período que Vasco da Gama aportou na ilha de Moçambique, então um enclave árabe na terra dos chonas. Os relatos de seus diários de bordo fazem referência à riqueza e cultura desse povo da costa oriental africana. Antes de partir, o navegador luso mandou bombardear a cidade. Na sua chegada a Lisboa, recebe “honrarias e mercês”, entre outros motivos por ter localizado as minas de ouro dos monomotapas.  

Em 1501, Pedro Alvares Cabral, de regresso das Índias (para onde foi após ter descoberto o Brasil), enviou um emissário à “terra do ouro”, objetivando trocar tecidos de algodão e miçangas pelo metal precioso. No ano seguinte Vasco da Gama voltou à região e iniciou os estudos para a construção de uma fortaleza e uma feitoria.

O mito, a verdade, o simbolismo e o fascínio do ouro dos monomotapas, contagiaram muitos europeus. Até Luís de Camões, em seu grandiloquentíssimo poema laudatório dos feitos e conquistas portuguesas, baseado em viagem que Vasco da Gama empreendeu à Índia, caiu pelo encanto desse ouro. Sofala é citada em pelo menos três vezes. “...as ondas navegamos, de Quíloa, de Mumbaça e Sofala [...], donde a rica Sofala o ouro manda [...]. Olha a casa dos negros [...], qual bando espesso e negro de estorninhos, combaterá em Sofala a fortaleza Nhaia com destreza” (Os Lusíadas; Primeiro Canto, verso 54; Quinto Canto, verso 73, e Décimo Canto, verso 94, respectivamente).

 

Tribuna do Norte. Natal, 11 set. 2020.

 




07/09/2020

 

tSiuulcaprgdod
Um estágio
Estes dias, pela Internet, andei comprando umas belezuras na Livraria Cultura. Tudo com 90% de desconto (e quem me conhece sabe que adoro descontos). Entre elas estava um tal “Confronting Animal Abuse: Law, Criminology, and Human-Animal Relationships” (Rowman & Littlefield Publishers, 2009), de Piers Beirne. E desse dito cujo eu tirei a ideia desta crônica.
Em “Confronting Animal Abuse” há um capítulo intitulado: “Is there a Progression from Animal Abuse to Interhuman Violence?” (“Existe uma progressão dos maus-tratos a animais para a violência para com humanos?”). O tema não me era desconhecido, claro. Já tinha lido sobre essa progressão em livros e produções acadêmicas e, nos últimos meses, em artigos de jornal. Mas achei a abordagem de Beirne, histórica e imparcial, deveras interessante.
De início, lembra o autor de “Confronting Animal Abuse” que a relação entre abuso animal e violência para com os humanos é uma “proposição com um antigo e impressionante pedigree. Afirmações acaloradas sobre sua veracidade podem ser encontradas em pensadores tão diversos como Pitágoras, São Tomás de Aquino, Montaigne, Kant, Mary Wollstonecraft, Gandhi e Margareth Mead. Exposta pelos seus defensores num alto nível de abstração, ela é hoje frequentemente disseminada no bordão, quase mantra, denominado ‘o link’. É principalmente defendida e estudada por feministas e por membros de agências governamentais e organizações filantrópicas que trabalham com famílias em situação de risco. Ela também implicitamente aparece em escritos de filosofia moral sobre bem-estar animal e direitos dos animais”.
Com base no que já li sobre o tema, incluindo agora “Confronting Animal Abuse”, acho que posso dividir essa temática em quatro eixos ou relações: (i) maus-tratos de animais e violência familiar; (ii) maus-tratos de animais na infância e o futuro da criança; (iii) vida pregressa de adultos violentos e maus-tratos de animais; e (iv) a progressão da crueldade individual para o abuso institucionalizado de animais. São essas as minhas sacadas de hoje.
Embora ainda careçamos de informações oficiais no Brasil, pelos dados já existentes e analisados (aqui e, em especial, nos EUA), acredita-se existir uma clara relação entre a violência familiar e os maus-tratos de animais de companhia. Nos EUA, entre veterinários, instituições de controle e abrigo de animais, defensores dos direitos das mulheres e a própria polícia, pela experiência diária e pelos números, há um consenso sobre como o abuso de animais e a violência familiar andam juntos. Tudo misturado, familiares violentos tendem a ser agressivos também com os animais de casa. E até primeiramente com estes, para, só em momento posterior, o serem com os outros membros humanos da família. Os números assustam.
Uma outra relação é entre os maus-tratos de animais na infância e o futuro da criança. Segundo o autor de “Confronting Animal Abuse”, crianças que apreendem a ter compaixão pelos animais têm maior probabilidade de se tornarem adultos sensíveis e gentis. Doutra banda, crianças que são abusivas para com os animais – a maioria, por sinal, meninos e com notável comportamento antissocial – tendem ou tenderão a ser abusivos e violentos quando adultos, contra animais e humanos. Mais uma vez, os dados coletados mostram isso. Podem pesquisar.
Aliás, é aqui que chegamos ao terceiro link, que deve ser entendido de forma regressiva. Quando se investiga a vida de adultos violentos, frequentemente se descobre um indivíduo, já na infância ou adolescência, violento para com os animais. Há até relatos – e já não sei dizer se é mito – de serial killers que, no passado, estiveram metidos em maus-tratos de animais. Pode haver uma certa mitificação desses indivíduos. Mas não deixa de ser um dado a considerar.
E há a progressão da crueldade individual para o abuso institucionalizado de animais. Os circos romanos, os nossos velhos circos, as caçadas, as rinhas de galos e de cães, a tourada, a vaquejada etc., todas essas coisas são adoradas por indivíduos insensíveis ao sofrimentos animal. Homens violentos, muitos deles. Do indivíduo, da soma ou agrupamento destes, chega-se a esse tipo de abuso naturalizado e institucionalizado. Acredito que nossa sociedade está em progresso contra isso, ainda lento, mas constante. Um dia, com a ajuda do direito, chegaremos lá.
Bom, eu poderia fechar este riscado apenas lembrando que estou na companhia dos grandes pensadores citados acima. Entretanto, serei mais pedagógico e dramático. Recomendo uma espiada na gravura “First Stage of Cruelty” (1751), do grande William Hogarth (1697-1764). Afinal, uma imagem vale mais do que mil palavras (minhas).
Marcelo Alves Dias de Souza
Procurador Regional da República
Doutor em Direito (PhD in Law) pelo King’s College London – KCL