O direito contado (I)
Na introdução a “Imaginar la ley: El derecho en la literatura”
(publicado na Argentina, em 2015, pela Editorial Jusbaires, com o apoio
do Poder Judicial de la Ciudad de Buenos Aires/Consejo de la
Magistratura), os organizadores desse excelente livro, Antoine Garapon e
Denis Salas, afirmam: “A literatura cria personagens que dão ao direito
figura humana. A consciência jurídica do comum dos mortais não se forja
em consulta aos manuais de direito, mas na leitura de obras, em
aparência, muito pouco jurídicas”.
Concordo em altíssimo grau
com os citados autores. E registro que isso – a construção de uma
“consciência jurídica” a partir de textos não jurídicos – se dá com
quase todos nós desde muito cedo, a partir, por exemplo, daqueles contos
que nos são narrados quando crianças, quase todos eles enaltecendo o
valor da Justiça. E é assim desde tempos imemoriais, bastando para tanto
lembrar o exemplo da Bíblia, texto teológico e literário dotado de
desiderato normativo tanto expresso como implícito, que se mostrou
determinante na evolução da história mundial – incluindo a história do
direito ocidental –, dado o seu papel fundamental não só na organização e
no desenvolvimento da Igreja Católica e das demais religiões cristãs,
mas também na própria consolidação, através dos séculos, de uma moral
cristã quase global.
Sem dúvida, como anotam André Karam
Trindade e Roberta Magalhães Gubert (no texto “Direito e literatura:
aproximações e perspectivas para se repensar o direito”, que faz parte
do livro “Direito & literatura: reflexões teóricas”, publicado pela
Livraria do Advogado Editora em 2008): “a literatura pode servir como
importante instrumento mediante o qual ocorre o registro – histórico e
temporal, evidentemente – dos valores de um determinado lugar ou época –
dentre os quais se inscreve a representação do sistema jurídico, do
poder, da justiça, das leis, das funções jurisdicionais, etc. – no
interior do imaginário coletivo e social”. A literatura, lembram os
mesmos autores, “constitui uma espécie de repositório privilegiado
através do qual se inferem informações e subsídios capazes de contribuir
diretamente na compreensão das relações humanas que compõem o meio
social, isto é, o caldo de cultura no qual, ao fim e ao cabo, opera o
direito”.
Some-se a isso o fato de que algumas obras literárias,
sobretudo os clássicos da literatura, apresentam e resolvem
satisfatoriamente problemas jurídicos intrincados. Os grandes livros,
com suas belas estórias, enfrentando temas jusfilosóficos universais,
tratando de questões políticas controversas, relatando acontecimentos
jurídicos cruciais, retratando a casuística das prisões, da vida forense
ou dos escritórios de advocacia, tudo em linguagem bem mais elegante e
acessível que a linguagem técnico-jurídica, são frequentemente
excelentes aulas de direito. O relato literário, com sua dramaticidade,
muitas vezes é bem mais elucidativo do que a objetiva descrição técnica
do mesmo fato, processo ou instituição. Através de “Medida por medida”
(1604), de William Shakespeare (1564-1616), por exemplo, certamente se
compreenderá bem melhor a necessária relatividade da Justiça dos homens
do que pela leitura de um enfadonho tratado de filosofia do direito.
E pode-se ainda seguramente dizer que a ficção jurídica, ao mesmo
tempo em que reproduz o direito posto e o imaginário popular acerca das
diversas temáticas jurídicas, também influencia, em graus variados, a
construção desse direito e, sobretudo, desse imaginário. No Brasil,
aliás, especificamente, isso se dá em altíssimo grau com a ficção
jurídica produzida para a televisão, dado o grau de popularidade desta.
Neste ponto, como se dá com outras interfaces da literatura (para o caso
do Brasil, incluo aquela literatura produzida para a televisão) – por
exemplo, com a religião, com os costumes, com a moda e por aí vai –, ela
(a literatura) é subversiva, tanto para o direito positivo em si como
para a “mentalidade” jurídica de modo mais abrangente. Não causa assim
espanto que essa literatura mais “subversiva” (a telenovela, por
exemplo, no caso do Brasil) tenha antecipado muito das modernas teorias e
tendências do direito, tais como o ambientalismo, o biodireito, o
feminismo, a transexualidade etc. De fato, muitas das ideias inovadoras
no direito, assim como boa parte das críticas à mentalidade jurídica
consolidada, historicamente encontraram sua mais vívida expressão na
ficção – seja através de romances, do teatro, do cinema etc. –, esse
meio de expressão que William P. MacNeil certa vez chamou, poeticamente,
de “lex populi” (em “Lex Populi: The Jurisprudence of Popular Culture”
(Stanford University Press, 2007).
Mas tudo isso é sempre bom?
Ou pode ter, como quase tudo na vida, o seu lado ruim? Isso é o que
veremos nas semanas vindouras, analisando um pouco mais uma tal “teoria
do direito contado”.
Marcelo Alves Dias de Souza
Procurador Regional da República
Doutor em Direito (PhD in Law) pelo King’s College London – KCL
Mestre em Direito pela PUC/SP