31/08/2020

 

Senciência
O que devemos levar em conta para atribuirmos aos animais não humanos direitos e proteção? Em 1789, quando da publicação do seu “An Introduction to the Principles of Morals and Legislation”, essa questão já inquietava Jeremy Bentham (1748-1832): “É possível que algum dia se reconheça que o número de pernas, a vilosidade da pele ou a terminação do osso sacro são motivos igualmente insuficientes para se abandonar um ser sensível ao mesmo destino [de torturas, a que eram submetidos, outrora, os homens de pele escura]. O que mais deveria traçar a linha insuperável? A faculdade da razão, ou, talvez, a capacidade de falar?”.
Bom, ao que tudo indica, a faculdade de raciocinar – raciocinar como nós, humanos – não é um critério adequado. Não funciona. Afinal, com já lembrava Benthan, “um cavalo ou um cão adultos são muito mais racionais, além de bem mais sociáveis, que um bebê de um dia, uma semana, ou até mesmo um mês”. Aliás, tornou-se clássica a observação de outro filósofo, Peter Singer (1946-), em seu “Animal Liberation” (1975): “Mesmo com o maior cuidado intensivo possível, alguns bebês gravemente retardados jamais poderão chegar ao nível de inteligência de um cão. (…). A única coisa que distingue o bebê do animal, aos olhos dos que alegam o ‘direito à vida’, é ele ser, biologicamente, um membro da espécie Homo sapiens, ao passo que os chimpanzés, os cães, os porcos não o são. Mas usar essa diferença como princípio para conceder direito à vida ao bebê e não a outros animais é puro especismo”.
A capacidade de linguagem/fala – embora isso nos constitua e nos diferencie dos outros animais, como sugeriram pensadores como Ludwig Wittgenstein (1889-1951) ou Jacques Lacan (1901-1981) – também não é suficiente. Bebês humanos, por exemplo, nada ou pouco dela a têm no nível sofisticado dos adultos. Por que, então, a linguagem seria capaz de gerar um discriminem dessa magnitude, separando os que merecem ou não respeito e proteção moral e legal? Singer dizia: “A linguagem pode ser necessária para o pensamento abstrato, ao menos em alguns níveis; mas estados como a dor são mais primitivos, nada tendo a ver com a linguagem”.
A resposta parece estar numa tal “senciência”, um conceito que, para os fins do direito (dos animais, em especial), tem de ir além do que nos é emprestado pelos dicionários. Capacidade de ter sentimentos, sensações, consciência, talvez seja um bom começo, mas não é um suficiente final. Talvez Bentham tenha razão mais uma vez: “A questão não é saber se são capazes de raciocinar, ou se conseguem falar, mas sim, se são passíveis de sofrimento”. Devemos dar conta da senciência dos animais no sentido de que, embora não tenham uma racionalidade igual à humana, eles não são assim tão diferentes (de nós) ao ponto de podermos negar as suas capacidades de sofrimento. Aqui podemos incluir não só as sensações de dor, mas também de ansiedade, medo e agonia. E devemos concluir que todos os animais vertebrados ou dotados de um sistema nervoso central são sencientes (embora haja quem vá mais longe e atribua a característica a todo o reino animal).
Essa proteção aos sencientes eu também extraio de disposições da “Declaração Universal dos Direitos dos Animais”, proclamada pela UNESCO em 1978: “todos os animais têm direito ao respeito e à proteção do homem; nenhum animal deve ser maltratado; o animal que o homem escolher como companheiro não deve ser nunca abandonado; nenhum animal deve ser usado em experiências que lhe causem dor; os direitos dos animais devem ser defendidos por lei”.
De toda sorte, é importante ser dito que alguns criticam o próprio critério da senciência. Segundo li na maravilhosa “Encyclopedia of Animal Rights and Animal Welfare” (Greenwood Press, 2010), editada por Marc Bekoff (1945-), esse critério denotaria “uma atitude que arbitrariamente favorece os seres sencientes sobre os não-sencientes”. Ele condenaria “toda a criação não-senciente, incluindo os animais inferiores, na melhor das hipóteses, a um status bem inferior… ou, na pior, a um status sem qualquer proteção”.
Faz certo sentido. O problema é que a senciência é hoje o melhor critério que nós temos.
Marcelo Alves Dias de Souza
Procurador Regional da República
Doutor em Direito (PhD in Law) pelo King’s College London – KCL
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27/08/2020

 

Usado em vão o nome de Cristo

Tomislav R. FemenickMestre em economia, com extensão em sociologia e história

 

Um caso que chegou ao TSE, pedindo a cassação do mandato de uma vereadora goiana, por ter praticado abuso de poder religioso durante a campanha, trouxe à discussão a não tão estranha relação das religiões com o poder. Basta lembrar que, desde as mais antigas civilizações, há uma simbiose entre as partes, da qual ambas tiram proveito. Foi assim na Mesopotâmia, no Egito, na China, na Índia, na América pré-colombiana e nas tribos da Terra Brasilis.

Entretanto, foi na Idade Média e nos anos que lhe seguiram que essa situação aflorou, dando lugar a inúmeras crises religiosas. Considere-se que o homem europeu típico dessa época era um místico por excelência, quereduzia à religião tudo quanto concernia às condições de vida, quer fossem políticas e materiais, quer morais(CORVISIER, s.d.).

Nesse período histórico, a Igreja Católica tinha enorme poder temporal. Se uma parte considerável do clero se preocupava com a vida espiritual e declarava votos de pobreza, uma outra se dedicava inteiramente às lides mundanas. A igreja era uma grande proprietária de bens materiais, o Papa era um príncipe que tinha exércitos e dirigia pessoalmente suas guerras; e reinava sobre os reis.

O ponto inicial do movimento contra a presença da Igreja na vida temporal foram as obras de Erasmo de Rotterdam, principalmente seu livroElogio da Loucura”, editado em 1511, onde dizia: “Sua Santidade glorificada possui terras, cidades, domínios e recebe impostos e taxas. E é sobretudo para defender e conservar essa rica aquisição que os pontífices romanos costumam condenar as almas (...) e, sem piedade, empregam o ferro e o fogo para sustentar as suas razões(ROTTERDAM, 1971). Todavia, sua obra crítica foi mais além e condenou o comportamento da sociedade como um todo. Erasmo, que era filho de um padre, foi ele mesmo padre, secretário de bispo, professor particular e reitor; rejeitou ser cardeal. Apesar de criticar a Igreja, ele não deu seu apoio aos reformistas; na sua opinião bárbaros e fanáticos.

Os movimentos de confrontação com o poder da igreja viriam principalmente com Lutero, Calvino e a Igreja Anglicana, todos eles desposando ideias coincidentes com o pensamento de Erasmo.

Martinho Lutero, padre e doutor em teologia, iniciou o seu confronto com Roma, em 1517. Suas pregações visavam a criação de uma igreja nacional, autônoma, a supressão do celibato, do luxo e da usura. Advogava a manutenção da hierarquia social e eclesiástica. O movimento progrediu nos Estados alemães, conquistou a Suécia, a Dinamarca e parte da Suíça, e penetrou na Boêmia, na Hungria, na Transilvânia e na Lituânia. Porém o movimento se subdividiu, aparecendo as correntes dos “sacramentários”, “anabatistas e “menonitas”.

Calvino (Jean Calvin), francês e doutor em Direito, deu início ao seu movimento em Genebra, na Suíça, em 1541. Para ele, o destino de cada pessoa era previamente traçado por Deus. A riqueza seria uma dessas demonstrações. E quanto maior fosse a riqueza maior a graça divina. Suas ideias se propagaram nos Países-Baixos, na Alemanha renana, na Boêmia, na Hungria, na Polônia, na Inglaterra e na Escócia. Entretanto, seu campo mais fértil foi a França.

A reforma inglesa teve várias facetas. A Igreja Católica, além de possuir grandes domínios, impunha à Inglaterra um pesado imposto, o anatas. Apesar disso, a reforma luterana não encontrou ali apoio expressivo. As constantes mudanças de orientação religiosa do reino só se estabilizam em 1563, com a adoção pela Igreja Anglicana de uma hierarquia e culto de aparência católica e um dogma próximo ao calvinismo.

Uma das características da época foi a intolerância religiosa. Todos perseguiam e matavam seus contestadores. E não nos esquecemos da Inquisição. E todos usavam em vão o nome de Cristo. Que isso nos sirva de exemplo a não ser seguido.

 


26/08/2020

 

 

SOMBRAS DA CIDADE

Valério Mesquita*
mesquita.valerio@gmail.com


O progresso é um cárcere privado, muitas vezes, ominoso e fatal para os telúricos, os proustianos como eu. Nasci na antiga rua do Comércio, depois João Pessoa e hoje Nair Mesquita, em Macaíba. O local era um sobrado que não preserva mais a sua estrutura física original numa artéria de casarões destruídos ou desfigurados. Assim ocorreu com os sobrados onde nasceram na mesma rua: Auta de Souza, Henrique Castriciano, Augusto Severo e Alberto Maranhão.

Da ponte sobre o rio Jundiaí, até a igreja matriz em frente a antiga prefeitura, na avenida Nossa Senhora da Conceição, da rua Pedro Velho so Barro Vermelho - berço histórico, social e cultural da cidade - todo o passado está sepultado sobre o asfalto e edificações novas em nome do progresso. É um visual que choca, punge, frustra. E como são falsas e hipócritas as coisas novas. Esse trecho parece com o bairro do Alecrim, burguês, atrofiado, tumultuado e disforme. Macaíba perdeu a elegância clássica, altiva, portentosa, de cidade antiga nascida às margens do rio. Cidade dormitório, super povoada, crescimento desordenado, são outras chagas doloridas de sua deformação permanente. No centro, investiram no seu futuro matando o antigo, o passado, o histórico, como se não valessem. Destruíram a sua identidade. Não conheço mais a minha cidade, porque baniram as antigas tardes silenciosas e as manhãs contemplativas das velhas figuras da cidade que tanto encantavam os meus olhos de menino: Olimpio Maciel, Euclides Ribeiro, Emídio Pereira, Manoel Alves, Severino Aleixo, Francisco Moura, Isbelo Vieira, Alfredo de Almeida, José Benevides Campos, Luiz Cúrcio Marinho, Magno Tinôco, José Augusto Costa, Agnaldo Ferreira, João Fagundes, Luiz Marinho de Carvalho, sem esquecer as folclóricas: Maria Cabral, Pachêco, Cabeção, Sérgio Cabeceiro, Sabiá, Luiz Bicho Feio, Manoel Dedo Melado, Zé Distinto e tantos outros.

Vivo e convivo com todos esses fantasmas da cidade na minha mente. São sombras que não se desfazem com o tempo porque viveram momentos profundos, densos e intensos. Por mais que Macaíba desintegre a sua configuração urbana elas estão impregnadas nas paredes e refletem no chão dos antepassados, tudo o que já foi. Ninguém pense que sou contra o progresso. Não. Espero que entendam o meu sentimento. Registro o fato emocionalmente como quem fotografa um instante, um instante triste, de um universo perdido de sonhos e ilusões. Uma canção ligeira em louvor de tantos - simples e sábios - hoje, sombras, nada mais.



(*) Escritor.


21/08/2020

 



Caatinga, o nosso bioma

Tomislav R. Femenick – Mestre em economia

 

O termo bioma identifica o conjunto das condições ecológicas de uma determinada região, com paisagem e diversidade próprias de flora e fauna. O Brasil tem seis biomas diferentes:  o Amazônia (o maior de todos), o Pantanal, o Cerrado, o Pampa, a Mata Atlântica e a Caatinga. Este último é o que nos interessa.

A caatinga (do tupi-guarani: caa, planta + tinga, branco, cinzento claro = planta cinzenta) se faz presente em toda região semiárida (que tem precipitação pluviométrica inferior a 1000 mm/ano) do Nordeste brasileiro; aí incluídos os Estados do Piauí, Ceará, Rio Grande do Norte, Paraíba, Pernambuco, Alagoas, Sergipe e Bahia, bem como o norte de Minas Gerais. É o único bioma existente somente em nosso país. Em nenhum outro lugar do mundo há o seu conjunto de características.

Em alguns trabalhos acadêmicos, e outros de agências governamentais, há uma tentativa de identificar a caatinga brasileira com a “savana-estépica”, um tipo de vegetação existente no Norte do continente africano e, também, na Península Arábica. Esse termo foi criado pelo naturalista francês J. L. Trochain em seu trabalho “Nomenclature et classification des milieux vegetaux en Afrique noire française” (Paris: Annés de Biologie, 1955).

O bioma da caatinga é diferente, tem um tipo peculiar de vegetação, comumente formada por arbustos de pequena altura, espinhosa e com aparência lenhosa, que perde as folhas no curso das estações secas. Quando há, as folhas são pequenas. As arvores têm grande ramificação desde a parte inferior dos troncos, o que lhes dá uma aparência arbustiva, frequentemente espinhenta. Cactos, bromeliáceas e outras xerófilas ocorrem de forma paralela, dando lugar a uma paisagem de grande contraste entre as épocas secas e as chuvosas. Ali se tem o pereiro, o faveleiro, a baraúna, a aroeira, o angico, a quixabeira, a oiticica, o juazeiro, o pau-ferro, o mandacaru, o facheiro, o xiquexique, a coroa-de-frade, a macambira e a palma. No meio dessa aridez, rondando as várzeas do rio, dos riachos, das lagoas ou nas proximidades dos açudes, vez por outra, desponta um ipê, o pau-d’arco, roxo ou amarelo, que vem quebrar a monotonia das cores pálidas.

A Caatinga é a floração característica e natural da maior parte do Rio Grande do Norte que, nesse cenário vegetal, conta com a presença da carnaubeira, uma planta que lhe é natural, e dela falei em artigo recente. Imponente e esbelta, ela faz parte do cenário físico e afetivo dos habitantes da terra. Os carnaubais nativos ocorrem mais acentuadamente nos vales dos rios e riachos que cortam a região da caatinga, pois a planta tem preferência por solos argilosos e aluviais, embora resista a elevado teor de salinidade e a longos períodos não chuvosos. Sua presença na caatinga ribeirinha do rio Mossoró (Lins & Andrade, 1960) cria como que um corredor de folhas verde vivo em um palco de cores tênues. 

Segundo um Relatório Técnico do Serviço Florestal Nacional, a Caatinga (no documento chamada de Savana-Estépica) representa cerca de 91% das áreas de florestas do RN (cerca de 20.000 Km2). Para se ter um comparativo da devastação da caatinga potiguar, até bem pouco tempo, o Município de Mossoró possuía 21,10 Km2 de área de catinga, dos quais, 9,5 km2 já foram devastados.

            Em algumas regiões do Estado existem variações de tipos vegetais. A Chapada do Apodi, que abriga os Municípios de Felipe Guerra, Apodi, Governador Dix-Sept Rosado e Caraúbas, integra a bacia hidrográfica do rio Apodi-Mossoró. Contraditoriamente, ela apresenta espécies vegetais de baixos, formando uma caatinga arbórea-arbustiva, lenhosa, cujo caule emite ramificações muito próximas do solo, típicos de regiões baixas e abertas,

A vida estéril na caatinga foi magnificamente retratada por Graciliano Ramos, em seu famoso romance “Vidas Secas”. Por sua vez, Euclides da Cunha, em “Os Sertões”, embora a tenha chamada de “terra ignota”, indeterminado, ignorada, reconhece que seu habitante natural, o sertanejo, “é antes de tudo um forte”.

 

             

 


 

Para quem?
A pandemia me leva a retomar um assunto que já abordei em outras ocasiões: as doações. Com a crise humanitária atual, isso se tornou um tema importantíssimo, tanto sob o ponto de vista prático (o que devemos fazer aqui e agora), como pelo prisma teórico, que envolve o estudo dos aspectos morais e utilitários da doação.
Desta feita, entretanto, quero ir além da discussão sobre as alternativas de doação individual às pessoas nas ruas ou de doação através de organizações humanitárias. Embora eu não seja contra as doações indivíduo a indivíduo – e o faça muitas vezes –, já defendi, seguindo a visão utilitarista do filósofo Peter Singer (1946-), em “Quanto Custa Salvar Uma Vida? – Agindo agora para eliminar a pobreza mundial” (2009), que as doações se deem sobretudo de forma ampla e sistematizada, através de organizações encarregadas para tanto. Além de evitar (ou minorar) um certo tipo de dependência nas ruas, é altruisticamente mais eficaz doarmos de modo sistemático, através dessas entidades especializadas, para ajudar as pessoas em situação de vulnerabilidade, estejam elas perto de nós ou mesmo mundo afora.
Hoje vou tratar de outro aspecto polêmico do tema: a doação para alimentação, abrigo ou tratamento de animais não humanos. Há quem olhe enviesado para esse tipo de doação. Alguns por simples falta de empatia, já que carecem de contato afetivo com os animais (e isso tende a mudar quando estabelecido esse contato). Outros – talvez a maioria – têm a tendência de olhar sempre para o que está mais próximo de si. A família, os amigos, a comunidade e, claro, a própria espécie. “A caridade começa em casa”, diz o ditado. A presença de uma criança faminta certamente é mais tocante que o caso de um animal nas mesmas condições de tempo e lugar. Mas há aí, podem ter certeza, muito do tal “especismo”, que está arraigado na nossa formação, sobretudo moral. Por fim, há aqueles que, reclamando de tudo, não doam para ninguém. Não é por falta de dinheiro. Muitos que não o têm, mais que doam, dividem. Os “não doadores universais” acreditam (ou fingem acreditar) numa “máfia dos mendigos” (e aqui falamos de gente). Têm visão política predefinida e preconceitos mil. Ou são simplesmente egoístas.
Devo reconhecer que os sentimentos humanos em relação aos animais são contraditórios. Há crueldade e indiferença. Mas há também respeito, admiração, deleite e até amor. E sabemos que há, apenas para dar como exemplo, uma imensa população de cães e gatos, desassistida, vagando pelas nossas cidades. Se eles não são capazes de raciocinar (como nós), ou se não conseguem falar, eles são, sim, passíveis de sofrimento. Muito sofrimento. Eles são “sencientes”.
Penso que todos os animais têm direito à vida e, sobretudo, direito ao respeito e à proteção do homem. Disse Arthur Schopenhauer (1788-1860), em “Sobre o Fundamento da Moral” (1840): “A compaixão pelos animais está intimamente ligada à bondade de caráter, e quem é cruel com os animais não pode ser um bom homem”. Acho que temos uma responsabilidade para com os animais. Somos os seres mais evoluídos. Somos a única espécie capaz de mudar ecossistemas. E já os mudamos bastante. Temos uma responsabilidade cósmica. E há até quem diga, com plausibilidade, que a humanidade, em alguns anos, olhará para o tratamento hoje dado aos animais (não humanos) com o mesmo asco com que hoje olhamos para o tratamento que um dia demos ao fenômeno da escravidão.
Mas não me tomem como um radical. Nem como dono de conclusões definitivas. Defendo abordagens razoáveis tanto para os humanos como para os animais (não humanos). Doar, em si, é um ato bom. Positivo. Faz bem também para quem doa. Fazer o bem enche nossos corações de alegria, já pregava Sidarta Gautama (563a.C.-483a.C.), o Buda.
E se a pergunta desta crônica é “para quem doar?”, há soluções razoáveis. Existem ONGs como a “Moradores de rua e seus cães”. De São Paulo, ela está também em Natal e Recife. E, assim, você ajuda os dois: humanos e animais. Sem especismo. Não há mais desculpas.
Marcelo Alves Dias de Souza
Procurador Regional da República
Doutor em Direito (PhD in Law) pelo King’s College London – KCL

 

RELEMBRANDO ANTONIO ANDRADE DE LIMA

Valério Mesquita
mesquita.valerio@gmail.com


Já escrevi que silenciar a memória de um homem é a maior revelação de nossa covardia. Às vezes, fico a pensar que Macaíba, em vez de reverenciar, pune os seus mortos. Ainda menino, quando passava pela rua Dr. Pedro Velho, gostava de me quedar à distância, na contemplação imaginosa do Solar do Caxangá. Procurava adivinhar os mistérios circunstantes daquele casarão, desde as frondosas copas das árvores ao seu interior, as suas criaturas, envoltas em um passado distante que me trazia a mente, o rosto, a silhueta, os passos, a voz, de um homem que não conheci: o Major Andrade. As diferenças políticas mantinham os limites. Mas, a curiosidade de menino e de adolescente eram ilimitados. Cresci nesse ambiente de ressurreição. 

O Major Andrade foi chefe político e prefeito nos períodos conturbado dos anos vinte, trinta. Era uma figura patriarcal, proprietário de vastas terras que representavam quase dois terços da Cidade de Macaíba, atualmente. A Capela São José, de 1882, ao lado do Solar, é o testemunho eloquente da nobreza familiar. Era a época em que as famílias abastadas edificavam nos seus domínios os templos da religião de sua devoção. O Major Andrade viveu nos tempos áureos de Macaíba burguesa, onde do seu Caxangá as notas musicais dos pianos povoavam a noite aristocrática da cidade. Líder da Oposição, no inicio, ao lado dos Mesquita contra os republicanos do Cel. Mauricio Freire, o Major Andrade, devotado seguidor do famoso José da Penha, salientou-se também como industrial e proprietário da Fábrica de Cigarros 15 de Novembro. Outro aspecto digno de menção, era a sua banda de música que confrontava com outra, do mesmo gênero, mas do partido político da situação.

Voltei a contemplar o Solar em 1966, no seu silêncio, na solidão própria e digna do que tinha sido, e, numa noite, decidi entrar à convite, para conhecer D. Segunda, mulher espartana, de forte temperamento. O Major Andrade já havia desaparecido mas a sua presença se fazia sentir naquela sala de móveis sisudos e clássicos e até os seus passos eram por mim imaginados e reconstituídos no corredor de abajur lilás.

Relembrar tudo isso significa não apenas resgatar-lhe a memória mas acima de tudo dizer, que toda construção preservada é a sombra projetada de um homem na posteridade. A minha homenagem a todos os seus descendentes.

Os seus descendentes diretos: D. Inah (Matriarca das famílias Andrade de Lima e Cordeiro), Dr. Vicente Andrade de 
Lima e D. Consuelo, ambos já falecidos.

12/08/2020

 


ALFREDO MESQUITA, MAÇOM

Valério Mesquita
mesquita.valerio@gmail.com


Na multiplicidade das atividades de homem público e agropecuarista desenvolvidas por Alfredo Mesquita Filho ao longo de sua vida, desponta a de maçom da Loja Filhos da Fé em Natal. No ensejo do transcurso do seu nascimento (23/05/1901), torna-se necessário enfatizar esse perfil desconhecido por muitos talvez até pelas próprias Lojas Co-irmãs. 

O seu ingresso na Loja foi proposto em 06 de agosto de 1926 e aceito em 12 de setembro do mesmo ano, com idade, portanto, de 26 anos. Iniciado no mesmo mês, tornou-se aprendiz em outubro, companheiro em janeiro de 1927 e mestre em fevereiro. Em 04 de maio de 1927, evoluiu para o grau 18, chegando a grau 30 (Cavalheiro de Cadoche) em 21 de março de 1939.

Nos anos vinte e trinta conviveram com Alfredo Mesquita na loja 21 de Março os seguintes macaibense ilustres: Luiz Curcio Marinho, comerciante e posteriormente prefeito de Macaíba; Torquato Justino de Souza, comerciante; Olimpio José Maciel, empresário e comerciante, figura respeitável e querida da cidade; Almir Freire, ex-prefeito de Macaíba e filho do líder político Manoel Mauricio Freire; José Jorge Maciel, filho de Olimpio, médico e futuro çrefeito de Macaíba nos anos cinquenta. Posteriormente, outros destacados macaibenses passaram igualmente pela Loja 21 de Março; José Pinto Freire, Asteclides Xavier Marinho, João Leiros Filho, Jose Lira da Silva, Cornélio Leite Filho, João Santiago de Oliveira, Pedro Cavalcante Sobrinho e Salustiano Cacho Neto.

Segundo Apolônio Lima, que conviveu longo tempo com o meu pai, no seu depoimento “Recordação de Um Grande Amigo” para o meu livro “Macaíba de Seu Mesquita - 1981” (Editora Clima) se referiu ao amigo como maçom realçando-o através da seguinte citação: “Era maçom, grau 30º da Loja “21 de Março”. “Ninguém, amigos ou adversários políticos procurou-o na hora da necessidade, sem que, na medida do possível, fossem satisfeitas as suas pretensões, sem cobrar nada pelo favor prestado. “O verdadeiro benfeitor é aquele que na hora da desgraça, vem, ajuda e passa”. Este episódio, eu me lembro como se houvesse acontecido hoje”.

“Havia um homem chamado Jesuíno que falava às escondidas de Mesquita um dia ele precisou de um grande favor do mesmo e se acanhou de falar-lhe pessoalmente e o fez por intermédio de Manoel Alves da Costa. Mesquita mandou dizer ao mesmo que viesse a ele que seria satisfeita a sua pretensão. Depois de fazer o que o mesmo pediu, este desmanchou-se em oferecimentos e agradecimentos. Mesquita lhe disse: “Pediria apenas isso. Não quero nada, a não ser que o senhor fale de mim se houver razão”.

Esse era o traço principal de sua personalidade: a caridade. E ele, ao lado de outros maçons, socorreram muitos lares pobres colocando, anonimamente, envelopes por baixo das portas, quando sabiam que uma família passava privações. Gesto raro. Difícil hoje em dia. O lado maçônico que não podia ficar oculto, revela-se hoje porque ele também predominou em todas as outra atividades que exerceu.



 

Ficção de pandemia
Dos romances sobre epidemias, talvez o mais badalado seja “A Peste” (1947), de Albert Camus (1913-1960). O título ajuda bastante, é verdade. É impactante. Mas o conteúdo é também excepcional. Em 1940, substituindo os horrores da 2ª Guerra Mundial, uma peste bubônica devasta a cidade de Oran, na costa argelina. A verdadeira Oran foi outrora tomada por outras pragas, a bubônica e a cólera entre elas, mas a narrativa de Camus supera os fatos. Namora com o absurdo. Romance existencialista, é a crônica de uma luta, a dos habitantes da cidade, subjugados pela natureza humana e pelo destino, contra a doença que se torna cada dia mais assustadora. E, claro, há o prestígio do autor. Camus, argelino, órfão de pai, crescido entre o mar e o sol, resistente francês, diretor da revista Combat, filósofo e ficcionista, prêmio Nobel de literatura em 1957 e falecido muito jovem, em 1960, em um acidente de carro tão absurdo como foi sua própria vida. Tudo isso junto faz de “A peste” um clássico das letras francesa e universal.
De toda sorte, essa veia da literatura – falo de obras de ficção sobre epidemias e pandemias – é pródiga. O assunto, com seu toque mórbido, atrai. E, assim, cada qual com a sua morbidez, caminha a nossa triste humanidade. Por exemplo, quando estourou a atual pandemia, muito se falou de um livro de Stephen King (1947-), “A dança da morte” (1978), uma estória sobre o fim dos tempos, na qual, por um erro dos sistemas de computação dos militares americanos, um vírus é liberado, causando uma cadeia quase infinita de mortes. E o mundo, claro, nunca mais seria o mesmo. O autor até se desculpou de haver previsto tal pandemia. De minha parte, ele está desculpado. Sei que seu livro é ficção. E a Terra não é plana.
Na verdade, por estes dias, eu já vi pelo menos duas listas de livros – e confesso que gosto dessa moda de listas – que contam histórias e estórias sobre epidemias/pandemias. Uma foi na deliciosa revista Bula, cujas publicações eu acompanho e reproduzo no Twitter. A outra foi na BBC inglesa. Para quem não lê (ou prefere não ler) em inglês, vi depois que a matéria já foi traduzida, pela BBC Brasil, para o nosso querido português. Não sei se na íntegra. Mas é suficiente. Nada melhor do que ler no nosso idioma, mesmo que se tenha de conviver com traduções do tipo “testou positivo para a leitura”.
Nas listas da Bula e da BBC, por óbvio, está “A peste”. E estão também outros títulos maravilhosos, desde “Um diário do ano da peste” (1722), de Daniel Defoe (1660-1731), passando por “O amor nos tempos do cólera” (1985), de Gabriel García Márquez (1927-2014) e “Ensaio sobre a cegueira” (1995), de José Saramago (1922-2010), até a trilogia mais atual de Margaret Atwood (1939-), com “Oryx e Crake” (2003), “O ano do dilúvio” (2009) e “Maddadão” (2013). E por aí vai.
Esta semana, eu mesmo me aventurei nessa ficção de pandemia. Algo leve. Assisti ao filme “Inferno” (2016), direção de Ron Howard (1954-) e roteiro de David Koepp (1963-), com Tom Hanks (1956-) no papel do professor Robert Langdon e Felicy Jones (1983-) fazendo as vezes de uma bela vilã. O filme é baseado no livro homônimo de Dan Brown (1964-), que é de 2013. Basicamente, um milionário e um grupo de fanáticos desenvolveram uma praga biológica, tipo um vírus, que matará grande parte da população mundial, com o intuito supostamente altruísta de salvar a Terra da superpopulação. Péssima ideia, a deles, nem precisaria dizer. E os heróis, incluindo a diretora-geral da OMS, precisam intervir para nos salvar. Recomendo demais. O tratamento do tema, como já dito, é leve. Aprendemos sobre Dante Alighieri (1265-1321). Viajamos por Florença, Veneza e Constantinopla/Istambul (que saudade de viajar!). Tudo é muito movimentado. E o melhor é que temos um final feliz (e como estamos precisando disso!).
Por fim, é importante dizer que isso de um milionário e alguns fanáticos lutando a favor do vírus deve ser ficção. Eu acho.
Marcelo Alves Dias de Souza
Procurador Regional da República
Doutor em Direito (PhD in Law) pelo King’s College London – KCL

 

08/08/2020

 

O ANIVERSARIANTE DO DIA É O ESTADO DO RIO GRANDE DO NORTE.

 

 

Neste dia 7, o Rio Grande do Norte completa 519 anos. A data oficial foi criada por meio da Lei 7.831 de 30 de maio no ano 2000, em alusão ao Marco de Touros, que foi colocado (chantado) nesse dia, no ano de 1501 e é um dos símbolos da colonização portuguesa. É o monumento mais antigo deixado no litoral brasileiro pelas caravelas comandadas por André Gonçalves e Gaspar de Lemos, trazendo na comitiva o cosmógrafo Américo Vespúcio.

De acordo com dados do acervo do Memorial do Legislativo do RN, foi com base nos estudos e exaustiva pesquisa que o então deputado Valério Mesquita, ao receber correspondência do historiador Marcus César Cavalcanti, propôs o projeto de lei instituindo o dia 7 de agosto como data do aniversário do Rio Grande do Norte. A lei 7.831 foi aprovada no dia 30 de maio de 2000, sancionada no dia seguinte pelo então governador Garibaldi Alves Filho.

Do ponto de vista jurídico, o Brasil nasceu ali, 7 de agosto de 1501. O marco do descobrimento que existe no centro de Porto Seguro, na Bahia, veio de Portugal entre 1503, dois anos depois.

O levantamento realizado por Marcus Cesar inclui pesquisas de Câmara Cascudo, Oswaldo Câmara e Olavo Medeiros. Já não cabiam mais dúvidas sobre a verdade histórica do Marco de Touros. O próprio Cascudo já havia dito que o Marco Colonial de Touros muda a rota do descobrimento. Do ponto de vista jurídico, o Brasil nasceu na costa do RN, no antigo Arraial de Touros, hoje Praia do Marco, município de Pedra Grande.

O ex-deputado Valério Mesquita, que também é escritor e sócio efetivo do Instituto Histórico e Geográfico do RN, aproveitou o III Encontro Regional dos Institutos Históricos do Nordeste Brasileiro, realizado em Natal, em maio de 2000, para divulgar aquela iniciativa parlamentar, na presença de destacadas autoridades, como o ministro da Cultura Francisco Welfort, do ex-ministro Almino Affonso e dos presidentes dos Institutos Históricos do Ceará, Paraíba, Pernambuco, Alagoas, Sergipe e Bahia.

 

FONTE: Memorial da Cultura e do Legislativo Potiguar.

Colaboração de Valério Mesquita, escritor.

04/08/2020



Do Éden ao coronavírus
Tomislav R. Femenick – Jornalista

No começo era o nada. Depois fez-se a luz e o universo. E nele, o nosso planeta, o sol, a lua, os cometas e as estrelas. Mas Deus queria mais, criou a terra, a água, o fogo e o vento; criou o dia e a noite. E, para coroar sua criação, criou o homem à sua imagem e semelhança. Mas era insuficiente. Criou a mulher e os colocou para morar no Éden. É pouco: não ter que trabalhar, morar no Paraíso sem ter que pagar IPTU nem taxa de condomínio e, além de tudo, ser casado e não ter sogra. É... o ser humano era o centro de todo o universo; uma espécie de antropocentrismo capenga, uma velada contraposição ao teocentrismo, que sempre põe Deus no lugar supremo. Essa é a história contada por várias religiões, para explicar a criação do cosmos e do ser humano.
O primeiro percalço foi aquele da cobra e da maçã. Pura sacanagem. A cobra levou Eva na conversa e essa sussurrou baixinho no cangote de Adão e deu no que deu: foram defenestrados e o jardim do Éden ficou guardado por querubins, armados com espadas flamejantes.
Mesmo despejado e tendo que trabalhar para ganhar o seu sustento, o homem continuava no centro de tudo, pois a sua casa natural, o planeta Terra, ficava no centro do Universo e em seu entorno giravam todos os outros corpos celestes. Aristóteles e Ptolomeu – o primeiro um dos maiores filósofos, e o segundo o maior astrônomo de então – estavam aí para garantir essa firme posição, o geocentrismo, aceito e sacramentado pela Igreja de Roma.
Estava tudo bem assentado e aceito, até que no século XVI o castelo começou a cair.  Galileu Galilei (um físico, matemático, astrônomo e filósofo italiano) e Nicolau Copérnico (um cônego da Igreja Católica, astrônomo, matemático, administrador, jurista e médico polonês) desenvolveram, paralelamente, a teoria heliocêntrica, isso é, de que o sol é que era o centro de tudo. O geocentrismo cedia o lugar ao heliocentrismo, agora com resistência da igreja. Todas essas teorias tinham duas coisas em comum: a primeira, explícita, a concepção fechada e finita do Universo; e a segunda, implícita, a relevância do ser humano.
Esse “estado da ciência” permaneceu por um bom tempo, com pequenas diferenças de entendimento, até que estourou a bomba: o sol é apenas uma estrela de quinta categoria, e como a Terra, há outros sete planetas: Mercúrio, Vênus, Marte, Júpiter, Saturno, Urano e Netuno; além de “Plutão que já foi planeta”, mas foi excluído. Quando a humanidade começou a se acostumar com o seu rebaixamento de categoria, outra bomba explodiu: o sistema solar inteiro é apenas um pequeno ponto na periferia da nossa Galáxia, a Via Láctea. O sol é apenas uma das cem bilhões de nebulosas, aglomerados, estrelas, poeira e gás do sistema galáctico.
Eita porrada certeira na moleira do ser criado à imagem e semelhança de Deus; agora reduzido a pó de titica de pulga de barata; a insignificância absoluta. Um detalhe a mais, existem bilhões de galáxias no Universo.  
Depois de humilhado no sentido macro e esmagado pela grandeza do Universo, finito ou não (mas essa é outra conversa), agora a raça humana está sendo desafiada e devorada por um ser minúsculo, pequenininho, invisível a olho nu, o novo coronavírus. Somente microscópios potentes, como o existente no Instituto Oswaldo Cruz (IOC/Fiocruz), do Rio de Janeiro, mostra, em detalhe, a configuração do vírus e o momento exato em que uma célula é infectada pelo novo coveiro da humanidade. O estrago tem sido feio. Dezenas de milhares de pessoas morrem todos os dias, infectadas pelo “maledetto”, a economia do mundo está em frangalhos, a qualidade e o nível de vida dos mais pobres está em declínio crescente.
Enquanto isso, muitos se julgam infectáveis pelo vírus, igual àquele desembargador lá de São Paulo. O pior é que esses intocáveis colocam em risco a vida das outras pessoas com quem convivem – e até a de quem eles nem conhecem.