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31/10/2019


FINADOS

Valério Mesquita*

Algo de especial na ordem do mundo são os mortos. O maior segredo da vida é a morte. Pode vir com naturalidade nos lábios de uma criança ou escondida nas incertezas da aventura humana. O elemento essencial segue aquele princípio aristotélico de que “tudo deve ter um começo, um meio e um fim”. Qualquer travessia neste mundo não é impune. Da morte não jazem apenas destroços, choros, lamentos, que incomodam a alma. Até porque é mistério incomunicável de Deus. No livro das memórias os falecidos podem ser esquecidos mas nunca os seus nomes. Meus olhos têm a fome da saudade. Porque na epifania eles serão lembrados, mesmo em andrajos saídos das urnas escuras do sono demente.
Em Macaíba, o velho cemitério de São Miguel, é o guardião triste da população e da anistia dos pecados. Lá sempre visito e revisito os meus mortos, parentes e amigos. Pelas alamedas leio as lápides, principalmente as antiquadas, para revolver na mente os vultos ancestrais habitando a cidade. Restituem-me as casas senhoriais, os hábitos, as roupas, os folguedos, as festas, tudo lírico, romântico, calmo e sem pressa. Auta de Souza tecendo versos ali perto do rio Jundiaí. Henrique Castriciano de fraque e gravata borboleta, à passos largos caminhando em direção ao cais para não perder a lancha com destino a Natal. Calçadas e ruas atravessadas pelas figuras solenes de Tavares de Lyra, João Chaves, Alberto Maranhão e Augusto Severo. As mulheres fortes, matronas, espartanas, Senhorinha de Manoel Amaro, Marocas e Joaninha, Ana Olindina, Cacilda Mesquita, Arcelina Fernandes, Nazaré Madruga, Teresa Gomes, Luiza e Sofia Curcio, Belita Ribeiro, Zebina Alecrim e tantas e tantas outras, que vêm como fantasmas bondosos.
Sim, o cemitério é um universo multifário de loucos e de líricos, de ricos e pobres, de santos e boêmios, de todos eles importam apenas as passadas perfórmances, na alegria ou na dor, no esporte ou no carnaval. Ah, os velhos atletas do campo santo: Passarinho, Caíco, Paulo Preto, Aguinaldo, Barbosinha, Loreto e muitos outros que ainda me fazem ouvir os gritos do último gol. Os carnavalescos Zé Batata, José Ludovico, José Jeep, Ailton Feitosa, jaziam na fria lousa do esquecimento sem ruídos de cuíca e tamborim. Vendo a morte assim tão perto é inevitável a ressurreição de lembranças, das marcas e dos passos que se foram. Dia de finados é seminário de desaparecidos, procissão de relembranças, obituário de fantasmas camaradas.
Finalmente cheguei ao túmulo dos meus pais, tios, tias, avós, irmão e filho. Algo esquisito percorreu-me o corpo. Todo aquele que é sensível, emocional, capta sinais. Ali em frente dormia os restos de minha mãe, a última a ser ali sepultada. Senti imensa e incontrolável comoção. Ao redor, todos cumpriam o mesmo ritual, a mesma liturgia, que só vai acabar com o mundo. Não somente preces, nada mais, restam aos mortos. Não apenas a solidão, inexprimível, incurável e eterna. O dia de finados, hoje, é mais para advertir aos vivos do que para lembrar os mortos. Se cada um que visitasse o cemitério repetisse a frase que “eu serei você amanhã”, o mundo seria melhor. Bem melhor. De volta à rua da Cruz, o último olhar para a casa de Joanete Moura como se ainda a ouvisse sentenciar sobre o toque plangente de finados vindo do sino da Matriz tangendo um enterro para o cemitério: “Quem terá sido o triste da pancada do sino?”.
 (*) Escritor.

30/10/2019


A hora da prisão

Já defendi aqui, mais de uma vez, no âmbito do nosso processo e direito penal, por não enxergar ofensa ao princípio constitucional da presunção da inocência, o início da execução da pena imposta após a confirmação da sentença condenatória em segundo grau.
Eu não mudei de opinião, digo logo.
Continuo achando que o princípio da inocência é muito mitigado com a sentença penal condenatória e, com a confirmação desta em segundo grau, ele deixa mesmo de existir. Fio-me no próprio texto constitucional que, no seu art. 5º, inciso LVII, aduz “ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória”, chamando a atenção para o conceito/termo “sentença”, que, como sabemos, é pronunciamento por meio do qual o juiz de primeiro grau põe fim à fase cognitiva do procedimento penal em sua jurisdição. A Constituição Federal não fala em trânsito em julgado de “acórdão”, que é o julgamento colegiado proferido pelos tribunais. Ora, a sentença “transita em julgado” quando decidida sua apelação em segundo grau. O acórdão aí proferido é que ainda poderá ser objeto de recurso (especial e/ou extraordinário). Assim, pelo próprio texto constitucional, quando transitada em julgado a sentença, com a decisão confirmatória em segundo grau, temos uma verdadeira presunção de culpabilidade.
O argumento de se evitar dano irreparável à liberdade do cidadão também não me é intransponível. É claro que muitos, sobretudo os réus em iminência de prisão e os seus advogados, com base nesse argumento, se levantarão – legitimamente, frise-se – contra o que digo aqui. Entretanto, afirmo: para evitar dano irreparável à liberdade do cidadão e equívocos de outra sorte, existirão as medidas cautelares (em recurso especial e em recurso extraordinário) e, sobretudo, o habeas corpus, que é o instrumento por excelência para esse fim. E estes, medidas cautelares e habeas corpus, deverão ser julgados com total prioridade.
Rezando para não parecer populista – tenho verdadeira repulsa ao populismo judicial –, penso que, afastada qualquer inconstitucionalidade na execução da pena condenatória após a confirmação em segundo grau, estamos diante de uma questão de opção. No Brasil de hoje, um processo penal comum pode percorrer, via recursos variados, quatro graus de jurisdição: juiz de primeiro grau, tribunal de apelação, Superior Tribunal de Justiça e mesmo o Supremo Tribunal Federal. Isso sobrecarrega o Judiciário. Torna morosa a Justiça, eternizando os litígios penais, praticamente impedindo a execução da pena reiteradamente imposta, que fica sendo postergada num processo quase sem fim. Pelo que sei, em país nenhum do mundo, depois de cumprido o duplo grau de jurisdição, com a decisão condenatória do tribunal de apelação, a execução da condenação fica suspensa, “pairando no ar”, aguardando tanto tempo pela confirmação da sua Corte Suprema. É isso que queremos manter no Brasil?
Eu sei que o Supremo está decidindo, pela “enésima” vez, essa questão. Já foi e voltou, na sua jurisprudência, algumas vezes, como até já mostrei aqui em outra oportunidade. E isso é péssimo. Mas respeitarei, como sempre respeitei, a nova orientação do Supremo Tribunal Federal. Antes de mais nada, não tenho, nem espero nunca ter, a pretensão de ser dono da verdade. E também respeito essa instituição contramajoritária e pilar fundamental do nosso estado democrático de direito (e aqui friso a expressão “de direito”).
Para falar a verdade, eu acho que o Supremo Tribunal Federal, se deseja proteger esse direito fundamental de todos nós, que é a liberdade, deveria, sim, preocupar-se com o uso abusivo das prisões provisórias. As temporárias, que tomaram o lugar das conduções coercitivas, uma vez proibidas estas pelo próprio STF, contornando os juízes, abusivamente, a decisão do Tribunal. E as preventivas – as longuíssimas prisões preventivas, de meses ou anos, sem julgamento –, que, somadas ao sufocamento das famílias dos investigados, são utilizadas, muitas vezes, também abusivamente, apenas para forçar uma colaboração premiada (“nas torturas toda carne se trai”, já dizia o nosso Zé Ramalho). A prisão preventiva, entre nós, está virando cumprimento antecipado da pena. E acho que, vedada a execução da pena após a confirmação da sentença condenatória em segundo grau, a coisa pode até piorar. Tornar-se-ão mais frequentes as prisões preventivas, contornando-se indevidamente a decisão do Supremo Tribunal Federal (lembrem-se do que aconteceu com a proibição da condução coercitiva), para antecipar o cumprimento de uma suposta pena que só viria a ser executada Deus sabe lá quando. Isso pode até satisfazer o desejo de justiçamento das redes sociais. Mas é isso o que queremos? Uma “justiça” sem sequer condenação? Uma “justiça” populista? Isso é mais do que péssimo!


Marcelo Alves Dias de Souza
Procurador Regional da República
Doutor em Direito (PhD in Law) pelo King’s College London – KCL
Mestre em Direito pela PUC/SP

26/10/2019


BARALHO E TAVOLAGEM

Valério Mesquita*
Mesquita.valerio@gmail.com

Macaíba possuiu muitas casas de jogos. Da proibida roletagem ao jogo de baralho. Esse último pontifica até os dias de hoje, em pequenas casas freqüentadas por modestos aficcionados, principalmente nas travessas que dão acesso a Rua Dr. Francisco da Cruz (Cinco Bocas). O “jogo de bicho”, por exemplo, está representado por Cabecinha e Pirralha, remanescentes de antigos cambistas como Zé Leiteiro, Lupicinio Araújo, José Solon, Pedro Pixilinga, entre outros. Mas, a banca freqüentada pelos “endinheirados” de Macaíba dos anos cinqüenta aos oitenta era a de Manoel Samuel de Araújo, localizada à rua João Pessoa onde residiu Jorge Leite da Costa, proprietário de um bar (hoje Panificadora Industrial do comerciante José Nilson). Nesse local também funcionou uma importante “casa de jogo de tavolagem e baralho”, habitada por políticos, comerciantes, funcionários públicos e até Delegados de Policia. Era uma casa globalizada de ansiosos poliglotas.
A de Samuel foi a que mais durou sem esquecer a primeira que operava nos fundos do antigo bar de Zé Distinto, o famoso Zé Fradinha. A casa de jogo do Samuca, figura simpática e respeitada, era uma verdadeira Arca de Noé. Lá “baixaram” as mais polivalentes personalidades que buscavam no carteado os momentos de lazer e de ilusão que a mística do baralho oferecia sem nunca enriquecer ninguém. Leonel Mesquita, Alfredo Mesquita, Magno da Fonseca Tinôco, João Justino Filho, Luiz Tomaz do Nascimento, Severino Tavares, Pedro Cascudo, Omar Vilar de Queiroz, Francisco Falcão Freire, Chicaca e Tião (marchantes), José Álvares, Pedro Álvares (Pedroca), Genésio Rocha, Pedro Luis de Araújo (Mestre Pedro), Sinval Azevedo (gerente da Nóbrega & Dantas), Francisco Pereira dos Santos (Chico Cobra), Belchior, todos servidos pelos garçons Luis Bicho Feio e Tota Passarinho.
Essa atividade refletia uma situação econômica e social que Macaíba viveu em mais de três décadas. Depois, houve um declínio. Samuel adoeceu e quando veio a falecer com ele viajou todo aquele mundo de diversão, de encontros e desencontros. Até porque, antes, foram desaparecendo paulatinamente os seus fiéis habitantes, o que enfraquecia sobremaneira o quadro social da casa, o fluxo e o contrafluxo dos investimentos da sorte.
Na memória guardo a fisionomia e os gestos de todos os náufragos desse rio que passou pelos olhos de minha vida de menino e adolescente. Até alguns fatos hilários guardei como relicário de espertezas, cacoetes e sortilégios dos seus humaníssimos protagonistas.

(*) Escritor.

25/10/2019


O vaqueiro Chicão
Tomislav R. Femenick – Jornalista e historiador
           
Nas minhas memórias há duas figuras de vaqueiros. Vaqueiros daquele de antigamente, que usavam chapéu, parapeito, gibão, perneiras, meia luva e alpercatas de couro; não por enfeite, mas por necessidade de trabalho. Os dois eram Francisco. O primeiro era seu Chico Bem, o vaqueiro de meu avô na Fazenda Rio Morto em Mossoró. Um dia, por causa de um pouco mais ou nada, brigaram e acabaram com a amizade; mais eu continuei seu amigo. Homem danado de tinhoso, de muito poucas palavras, caladão mesmo. O outro era Chicão, lá do Canto Grande, no Município de Alto do Rodrigues, na margem direita do Rio Assu. Era o contrário do seu xará mossoroense. Soube de muitas desavenças em que ele se envolveu, mas nunca soube que tivesse apartado a amizade com seus desafetos. Sorridente por tudo, conversador inveterado, sorria mais e conversava mais quando acompanhado por um gole de pinga ou de conhaque ou, ainda, de uns copos de cerveja; que dizia não gostar, mas tomava todos.
            Ambos usavam a vestimenta de vaqueiro para trabalhar, principalmente quando iam campear gado, enfrentando a caatinga ou mesmo o mato ralo do semiárido, com seus espinhos e surpresas. Essa verdadeira couraça é feita de couro curtido, sem pelo, flexível, macio e de uma cor entre marrom claro e vermelho escuro.  O gibão, ou jaleco, era enfeitado com pespontos e fechado com cordões de couro. O parapeito, preso no pescoço por uma tira de couro, era de um couro mais fino, porém resistente. As perneiras, presas na cintura também por tiras de couro, formavam uma espécie de calça, que ia da virilha até os pés. Nas mãos usavam luvas, sem dedos e sem cobertura nas palmas. Nos pés, alpercatas fechadas na frente. Porém o mais importante era o chapéu, feito de couro forte, que os protegia dos galhos dos “pés de pau” e do sol. Para completar o aparato, tinham esporas nos pés e uma chibata na mão.
Eu fui mais amigo do Chicão, pois tínhamos idade mais próxima; ele era mais velho cinco ou dez anos. Sou até padrinho de um de seus filhos, padrinho de fogueira de São João, que no seu dizer vale mais. A sua fazenda era vizinha à do meu sogro, com quem tinha uma pendenga por causa da localização de uma cerca e alguns palmos de terra. Mas conversavam, trocavam ideias sobre o inverno, sobre a data certa para fazer o plantio ou a colheita de algodão. Tudo só como preâmbulo para fazer negócio com gado. Nesses dias as discussões eram brabas, com xingamento e acusações de roubo feitas por ambas as partes, tudo dito cara-a-cara e tudo esquecido com uma xícara de café trazida pela velha Berréia, café feito na hora; nem requentado, nem de garrafa térmica. Vezes havia em que demoravam horas ou dias nas idas e vindas das negociações. Terminadas os ajustes, Chicão ia à sua casa e, invariavelmente, trazia um presente para seu vizinho: um queijo de coalho. Era quase que um ritual, estabelecido desde muito tempo antes de que eu os conhecesse.
            A vida de Chicão era mais negociar que criar gado. E não trabalhava para ninguém, só para ele mesmo. Saia de casa ia com seus auxiliares para Carnaubais, Ipanguaçu, Upanema, Afonso Bezerra, Angicos, Santana do Mato ou outras direções, para comprar algumas cabeças de gado aos seus fregueses de sempre. Gado que vendia a outros fregueses ou diretamente aos matadouros de algumas cidades. Fazia a viagem de ida e de volta a cavalo. Levava dias, semanas, mas, dizia, tinha o prazer de na volta vir tangendo a boiada pelas estradas, veredas e caminhos que somente ele conhecia. Isso tudo para fazer a viagem menor, para não maltratar os animais. Às vezes tinha de percorrer trilhas na caatinga; mesmo assim dificilmente perdia alguma rês. Só tinha receio de se encontrar com caravanas de ciganos.
Diziam que, certa vez, um cigano tentou atirar em Chicão. Ele nunca tinha me falado desse caso. Uma noite estávamos jogando conversa fora e eu lhe perguntei se a história era verdadeira. Ele deu uma daquelas suas risadinhas e mudou de assunto. Chamou minha atenção para o perfume suave que as plantas de aguapé exalavam de uma lagoa próxima e a conversa andou por outros caminhos. Quando estava de saída, voltou-se para mim e disse: “Sobre a sua pergunta. Eu estou vivo; mas não garanto que ele esteja”.

Tribuna do Norte. Natal, 24 out. 2019 

22/10/2019



21/10/2019


A partir de quando?

Dia desses, no Habeas Corpus (HC) 166373, o Plenário do Supremo Tribunal Federal decidiu, por maioria (7 x 4), que, em ações penais com réus colaboradores e delatados, é direito destes apresentarem suas alegações finais depois dos réus que firmaram acordo de colaboração. Venceu o entendimento de que, com os interesses conflitantes, apenas a concessão de prazos sucessivos, possibilitando que os delatados falem por último, garante o direito fundamental da ampla defesa e do contraditório.
Tudo bem. Pensando direitinho, isso parece ser o correto.
Entretanto, não se havia pensado nisso, nem mesmo no STF, até bem pouco tempo. E, durante alguns anos, esse procedimento, de prazos sucessivos para as alegações finais, não era o adotado nos juízos e tribunais do país afora.
E aí surgiu um outro problema, gravíssimo, aliás: essa decisão no Habeas Corpus (HC) 166373 pode ter repercussão em diversos processos concluídos ou em tramitação pelo país, agora sujeitos a uma potencial nulidade. Assim, os ministros terão de apresentar, para garantir um mínimo de segurança jurídica, uma tese/solução para orientar as outras instâncias judiciais eventualmente envolvidas.
A solução, espera-se, passará por algum tipo de aplicação prospectiva da decisão que anunciou a nova regra. Numa aplicação prospectiva clássica, o novo precedente, decidindo/disciplinando o caso em julgamento, passará a disciplinar apenas os fatos ocorridos depois do seu estabelecimento. Não retroage para os fatos já ocorridos e os casos já julgados. Tem efeitos apenas ex nunc, como se diz.
A razão da existência da aplicação prospectiva está na necessidade de manutenção da confiança nos precedentes judiciais anteriormente estabelecidos, pois as pessoas e órgãos do Estado agem – ou, pelo menos, deveriam agir – com base e em confiança nas regras até então existentes, incluindo-se as regras elaboradas pelos juízes, em especial aqueles da sua Corte Suprema.
No processo penal, como é o caso do dilema que o STF enfrenta agora, isso é bem sensível, claro. Temos muitos direitos fundamentais em jogo, em especial a liberdade. Mas há boas justificativas para a aplicação prospectiva do novo precedente nessa área do direito. Victoria Sesma, em “El precedente en el common law” (editora Civitas, 1995), levando em consideração a prática judicial dos Estados Unidos da América, oferece-nos pelo menos duas boas razões para aplicar um novo precedente revogador apenas prospectivamente, derivadas da ideia de manutenção da confiança nas decisões judiciais: “a) a justificativa mais usada tem sido a confiança nas decisões judiciais. (...). Um tipo de confiança diferente tem sido alegado por parte de policiais e membros do Ministério Público quando enfrentaram um tribunal que coloca em xeque os procedimentos que se devem seguir em uma investigação criminal. Não é justo, dizem, penalizar a persecução por errar no cumprimento de regras que não tinham sido estabelecidas antes da investigação acontecer. A Corte Suprema dos EUA aceitou este ponto de vista como um dos fundamentos para limitar o efeito de Miranda v. Arizona 384 U.S. 436 (1966); b) uma segunda justificativa assinala que o que motiva o tribunal a revogar um precedente é o desejo de pôr em prática uma nova política, mas uma política que não necessita ter efeito retroativo. Em Mapp v. Ohio, a Corte Suprema dos EUA decidiu que a prova descoberta em um determinado procedimento considerado ilegal não podia ser utilizada em juízo. Em Linkletter v. Walker 381 U.S. 618 (1965), o tribunal decidiu que a regra Mapp era só prospectiva. Disse que a nova regra foi proposta para dissuadir procedimentos ilegais, e que era demasiado tarde para dissuadir aqueles procedimentos que já tinham acontecido. Portanto, não podia ganhar-se nada dando a Mapp efeito retroativo”.
Acho que a coisa vai caminhar por aí – algum tipo de aplicação prospectiva – para a decisão proferida no Habeas Corpus (HC) 166373. Até porque, como disse o Ministro Luiz Fux dia desses, segundo publicação do ConJur de 16 de setembro de 2019, o STF “tem muita preocupação com a segurança jurídica. A segurança jurídica, por vezes, leva o Supremo a modular suas decisões. Quer dizer, as decisões passam a valer de um determinado momento para frente, para não nulificar tudo o que já foi praticado”. Ainda acredito que ele está certo.
Apenas, talvez, com algumas exceções retroativas para corrigir prejuízos efetivamente demonstrados, em processos já julgados, como aquelas sugeridas pelo Ministro Presidente Dias Toffoli: “1) em todos os procedimentos penais é direito do acusado delatado apresentar as alegações finais após o acusado delator que, nos termos da Lei 12.850, de 2013, tenha celebrado acordo de colaboração premiada devidamente homologado, sob pena de nulidade processual, desde que arguido até a fase do artigo 403 do CPP ou o equivalente na legislação especial, e reiterado nas fases recursais subsequentes; 2) para os processos já sentenciados, é necessária ainda a demonstração do prejuízo, que deverá ser aferida no caso concreto pelas instâncias competentes” (site do Conjur de 2 de outubro de 2019).
Bom, aguardemos o nosso Supremo.


Marcelo Alves Dias de Souza
Procurador Regional da República
Doutor em Direito (PhD in Law) pelo King’s College London – KCL
Mestre em Direito pela PUC/SP

14/10/2019


A cana de Graça (II)

Lemos Britto (1886-1963), em seu “O crime e os criminosos na literatura brasileira” (Livraria José Olympio Editora, 1946), disse: “copiando a vida, em todos os seus aspectos, e em todos os seus meandros, por mais recônditos, os romancistas e novelistas não podiam esquecer os cárceres onde os que transgridem as leis penais são recolhidos para cumprimento de suas penas”.
Graciliano Ramos (1892-1953) não transgrediu lei penal alguma, pelo menos não para os fins da prisão, injusta e política, que lhe foi infligida, em 1936, pelo Governo de Getúlio Vargas (1882-1954). Embora um dos maiores escritores do país – lembremos que ele já havia publicado “Caetés” (1933) e “São Bernardo” (1934) –, Graciliano foi simplesmente jogado entre criminosos comuns, entre assassinos, ladrões e estupradores, sem motivo e sem culpa, jamais ouvido ou formalmente acusado, até porque não haveria crime que lhe fosse possível, honestamente, atribuir. Teve a cabeça raspada, como qualquer gatuno, e foi submetido às demais humilhações por que passavam os condenados de então (a coisa parece não haver mudado muito de lá para cá). Tudo feito propositalmente. E se algo de positivo pode ser retirado dessa barbaridade com o “Velho Graça”, a única coisa possível, foram as suas “Memórias do Cárcere”, publicadas, já postumamente, em 1953.
O livro – refiro-me às “Memórias do Cárcere” –, portanto, é um “depoimento”. Conta a história de uma prisão arbitrária, as aventuras e os dramas do prisioneiro e de seus companheiros, pelos presídios do país e, sobretudo, descreve um período da nossa história. E ninguém poderia prestar esse depoimento tão bem quanto aquele que foi ao mesmo tempo acusado, testemunha e, sobretudo, vítima dessa tremenda arbitrariedade jurídico-política. Muito embora tenha Graciliano escrito – e, sobretudo, publicado – as suas “Memórias” anos após o acontecido, quando até já declinava fisicamente (ele faleceu em 1953, ano da publicação do livro), vítima das sobrecargas do tempo e da doença (um câncer), das dores e das amarguras da vida.
O livro também é um “libelo”. E, dada a injustiça praticada, não poderia deixar de sê-lo, como bem lembra Nélson Werneck Sodré (1911-1999), em prefácio à edição de “Memórias do Cárcere” que possuo (publicação da Record e da Livraria Martins Editora, de 1975, em dois volumes). Um “J'accuse” à brasileira e em causa própria. De toda sorte, nesse sentido, ganhamos “com a objetividade, com a clareza, com a minúcia e com a exatidão, – porque, sendo uma acusação, não pretendeu jamais ser neutro ou dar, indiscriminadamente, relevo a alguma coisa que não o merecesse”.
Ademais – e é o mesmo Nélson Werneck Sodré que anota isso –, “só o mestre de Angústia [romance publicado por Graciliano em 1936, quando achava-se preso pelo Governo Vargas] poderia realizar a tarefa com a grandeza necessária”. E, aqui, aproveito a deixa para fazer a relação entre Fiódor Dostoiévski (1821-1881) e Graciliano Ramos, como, de resto, fiz no artigo anterior, sobre Oscar Wilde (1854-1900).
Na estória do triângulo amoroso entre o ressentido Luís da Silva, o rico Julião Tavares e a disputada Marina, de viés existencialista, trabalhado por meio de um “fluxo de consciência” joyciano, há mesmo algo, talvez muito, de Dostoiévski e de “Crime e Castigo” (1866). Em especial, as angústias, os arrependimentos e o medo (de ser pego), sentimentos que o crime praticado desperta no seu autor (no caso, o Luís da Silva), que estão presentes no dois romances. Com a diferença de que, em “Crime e Castigo”, o delito é o ponto de partida para a trama; no livro de Graciliano, o crime é o seu quase “finale”, numa mistura dúbia de realização pessoal com angústia que dá título à obra. Graciliano leu “Crime e Castigo”, isso é certo. Era um apreciador da literatura russa e de Dostoiévski em particular. Mas, em vida, relutou em aceitar as comparações entre a sua “Angústia” e “Crime e Castigo”. Não achava seu livro à altura da obra-prima russa. Parte modéstia, parte honesta autocrítica.
E o mais importante: quem lê ou ouve falar de “Memórias do Cárcere” certamente se lembrará de Dostoiévski e de suas “Recordações (ou Memórias) da Casa dos Mortos”, de 1862. Aqui, sem dúvida, no gênero dos “romances prisionais” (se é que esse gênero existe), Graciliano Ramos foi o nosso Dostoiévski. E, como anota Nélson Werneck Sodré, ele “realizou a tarefa como desejávamos todos: sua história aparece como um dos grandes livros brasileiros, talvez o maior. Não se surpreendam, – amanhã, quando a vida de hoje estiver esquecida, esta obra nos representará. Será, para os brasileiros que vierem depois de nós, muito mais do que Os Sertões, muito mais do que o melhor Machado de Assis [talvez tenhamos um certo exagero aqui, vá lá]. E foi por isso que escrevemos que Graciliano honrou o seu tempo”.
Bom, dito isso, só nos resta agora ler ou reler as “Memórias do Cárcere”. Mesmo que com toda a angústia do mundo.

Marcelo Alves Dias de Souza
Procurador Regional da República
Doutor em Direito (PhD in Law) pelo King’s College London – KCL
Mestre em Direito pela PUC/SP

11/10/2019



REVISITANDO UM MITO

Valério Mesquita*
Mesquita.valerio@gmail.com

A simplicidade de Oscar Niemeyer era contagiante. Fez-me pegar a caneta como eu gosto e me habituei e passar a escrever ao sabor da emoção. Ateu, mas tão socialista na oferta como Francisco de Assis. Agnóstico, mas tão sábio quanto Agostinho. Reconhecido mundialmente no traço e no poder do concreto quanto Paulo nas planetárias epistolas: lógico e conciso. Tão comunista quanto cristão na concepção arquitetônica de igrejas e capelas pelo Brasil afora. Humilde, acessível e carismático tanto quanto João Paulo II na arte de conquistar o povo de Deus pelo olhar de plenitude e fragilidade. Niemeyer foi maior que qualquer rei do rock, do rap, dos ricaços de qualquer conglomerado empresarial neste país. Isso tudo porque foi um simples, que viveu, amou, se divertiu e se deu a respeito. Nunca ninguém leu o seu nome envolvido em falcatruas em meio a tantas criações e obras em governos mil.
Limpo e feliz, criativo e dedicado, suavizou o concreto e até a morte, nunca dela falando, mesmo a vida se esvaindo. Inspirou-se no mestre Le Corbusier. Brasília, de parceria com Lúcio Costa, ele foi o cara e o coroa quando expirou aos 104 anos. Postava- se tímido, fumante (vejam só), gostava do romance, mas na arquitetura era instintivo. Falava em Deus, mas não acreditava em religião. Já li esse fato em entrevista que concedeu. Claro que foi maior que sua arte. Falava em céu, firmamento, estrelas, tudo criado pelo Supremo Arquiteto do Universo, enquanto ele era “o maior arquiteto do Brasil e um dos melhores do mundo”. Neste último conceito o seu estilo foi inimitável, único e incomparável.
Oscar Niemeyer possuía o dom de viver, daí a longevidade: sem ostensividade, vaidade ou vã glória. Laureado em todo o mundo, mas avesso às homenagens. Quando se sentiu ameaçado no regime militar autoexilou-se em Paris. Não conspirou, não ameaçou nem foi terrorista. Apenas, confiava no comunismo como na sua arquitetura. Ficará conhecido e perenizado pela arte e não pela crença política. Mesmo assim, dava-se a respeito, mais do que muitos que a professaram. Sua morte foi lamentada em todo mundo. Nos Estados Unidos, Inglaterra, França, Israel, Espanha entre outros países, ele deixou um legado de obras cativantes, admiradas pela tipicidade e a “curva livre e sensual das suas linhas”.
Mas, a chama inapagável de Niemeyer não se notabilizou tão somente no milagre que esculpiu com a linha reta embelezando as curvas de tantas edificações. Embora centenas, todavia, dezenas de suas criações ao vivo ou a cores pela TV e fotos eu já admirava. Fui, exatamente, me emocionar com a simplicidade cósmica desse personagem. Famoso, rico honestamente – frise-se – no entanto, pacífico, modesto, recatado, ciente de sua transitoriedade. Enfim, um cristão sem reza, oração, igreja ou templo. Um pintor de arcos voltaicos, de auroras boreais, de crepúsculos planaltinos, de galáxias estelares, com um pincel singelo, a pobreza de um proletário, revolucionário, vidente, vermelho mas suave no canto e na voz. Uma personalidade marcante para não ser esquecida que tinha no crayon o sentimento do mundo, apesar da “vida ser um sopro”, como dizia.

(*) Escritor

REVISITANDO UM MITO

Valério Mesquita*
Mesquita.valerio@gmail.com

A simplicidade de Oscar Niemeyer era contagiante. Fez-me pegar a caneta como eu gosto e me habituei e passar a escrever ao sabor da emoção. Ateu, mas tão socialista na oferta como Francisco de Assis. Agnóstico, mas tão sábio quanto Agostinho. Reconhecido mundialmente no traço e no poder do concreto quanto Paulo nas planetárias epistolas: lógico e conciso. Tão comunista quanto cristão na concepção arquitetônica de igrejas e capelas pelo Brasil afora. Humilde, acessível e carismático tanto quanto João Paulo II na arte de conquistar o povo de Deus pelo olhar de plenitude e fragilidade. Niemeyer foi maior que qualquer rei do rock, do rap, dos ricaços de qualquer conglomerado empresarial neste país. Isso tudo porque foi um simples, que viveu, amou, se divertiu e se deu a respeito. Nunca ninguém leu o seu nome envolvido em falcatruas em meio a tantas criações e obras em governos mil.
Limpo e feliz, criativo e dedicado, suavizou o concreto e até a morte, nunca dela falando, mesmo a vida se esvaindo. Inspirou-se no mestre Le Corbusier. Brasília, de parceria com Lúcio Costa, ele foi o cara e o coroa quando expirou aos 104 anos. Postava- se tímido, fumante (vejam só), gostava do romance, mas na arquitetura era instintivo. Falava em Deus, mas não acreditava em religião. Já li esse fato em entrevista que concedeu. Claro que foi maior que sua arte. Falava em céu, firmamento, estrelas, tudo criado pelo Supremo Arquiteto do Universo, enquanto ele era “o maior arquiteto do Brasil e um dos melhores do mundo”. Neste último conceito o seu estilo foi inimitável, único e incomparável.
Oscar Niemeyer possuía o dom de viver, daí a longevidade: sem ostensividade, vaidade ou vã glória. Laureado em todo o mundo, mas avesso às homenagens. Quando se sentiu ameaçado no regime militar autoexilou-se em Paris. Não conspirou, não ameaçou nem foi terrorista. Apenas, confiava no comunismo como na sua arquitetura. Ficará conhecido e perenizado pela arte e não pela crença política. Mesmo assim, dava-se a respeito, mais do que muitos que a professaram. Sua morte foi lamentada em todo mundo. Nos Estados Unidos, Inglaterra, França, Israel, Espanha entre outros países, ele deixou um legado de obras cativantes, admiradas pela tipicidade e a “curva livre e sensual das suas linhas”.
Mas, a chama inapagável de Niemeyer não se notabilizou tão somente no milagre que esculpiu com a linha reta embelezando as curvas de tantas edificações. Embora centenas, todavia, dezenas de suas criações ao vivo ou a cores pela TV e fotos eu já admirava. Fui, exatamente, me emocionar com a simplicidade cósmica desse personagem. Famoso, rico honestamente – frise-se – no entanto, pacífico, modesto, recatado, ciente de sua transitoriedade. Enfim, um cristão sem reza, oração, igreja ou templo. Um pintor de arcos voltaicos, de auroras boreais, de crepúsculos planaltinos, de galáxias estelares, com um pincel singelo, a pobreza de um proletário, revolucionário, vidente, vermelho mas suave no canto e na voz. Uma personalidade marcante para não ser esquecida que tinha no crayon o sentimento do mundo, apesar da “vida ser um sopro”, como dizia.

(*) Escritor

08/10/2019


A cana de Graça (I)

O título parece engraçado. E foi proposital, apenas para tentar suavizar uma página trágica da nossa história política e literária, que, na esteira dos artigos das semanas anteriores (“Dostoiévski e o seu cárcere” e “Wilde no cárcere”), conto agora: a prisão de Graciliano Ramos (1892-1953).
Graciliano nasceu na pequenina Quebrangulo, no estado de Alagoas, em 1892. O pai era comerciante, classe média nordestina, e Graciliano era o primeiro de mais de uma dezena de irmãos. Jovem, perambulou pelo Nordeste. Foi parar no Rio de Janeiro, onde ingressou no jornalismo. Voltou às Alagoas. Em 1927, foi eleito prefeito de Palmeira dos Índios. Dizem que não foi um bom administrador. Renunciou em 1930. Foi morar em Maceió, capital do estado. Foi preso – injustamente, registre-se logo – em 1936. Um ano de cárcere. Depois do padecimento da prisão, nunca mais voltou à sua terra natal. Além de jornalismo e política (até como militante comunista), fez muita literatura. Crônicas, contos, memórias e romances. De fato, ele foi um dos mais importantes contadores de estórias dessa terra boa, mas sofrida, que chamamos de Nordeste, ao lado de gente como José Américo de Almeida (1887-1980), José Lins do Rego (1901-1957), Raquel de Queiroz (1910-2003) e Jorge Amado (1912-2001). “Caetés” (1933), “São Bernardo” (1934), “Angústia” (1936) e “Vidas Secas” (1938), esta talvez sua mais badalada obra, estão aí para comprovar. Graciliano faleceu no Rio de Janeiro, com 60 anos de idade. O ano era 1953.
Como já dito acima, Graciliano Ramos foi “em cana” em 1935. Uma prisão gratuita e, claro, injusta. As tais “atividades extremistas”, alegadas como motivos para a sua prisão, pelo governo de Getúlio Vargas (1882-1954), nunca existiram. Como relata Dênis de Moraes, na excelente biografia “Velho Graça: uma biografia de Graciliano Ramos” (originalmente de 1992, editora José Olympio), à época, sequer comunista Graciliano era. E ele até criticou o levante de então, a tal Intentona Comunista de 1935. Na verdade, ele foi preso sem processo, sem uma culpa formada e sem sequer ser previamente ouvido.
Nem mesmo foi Graciliano vítima de um erro, com queriam fazer acreditar alguns, para minimizar a culpa de outros ou as suas próprias. Como diz Nélson Werneck Sodré, em prefácio à edição de “Memórias do Cárcere” que possuo (uma publicação da Record e da Livraria Martins Editora, de 1975, em dois volumes), “é falso o que sustentam alguns, que Graciliano Ramos foi submetido a tudo isso em virtude de um tremendo, de um profundo, de um lamentável equívoco. Nada disso. Era a ele mesmo que se pretendia ferir. Desde o primeiro ato do drama que foi forçado a viver, tudo foi cuidadosamente pensado, premeditado, claro e absolutamente intencional: a prisão arbitrária, a promiscuidade com os ladrões e assassinos, a viagem no porão, a ida para a Colônia Correicional, a ausência de processo”.
Coincidentemente, por estes dias, numa surrada revista que guardei – não sei o porquê, e certamente não foi para escrever este artigo 27 anos depois –, achei uma excelente definição do acontecido. “A carta: política & informação”, semanário que se dizia “a revista do Nordeste”. Certamente não mais circula. Mas na edição que tenho, de 24 de outubro de 1992, ano VII, nº 299, que comemorava o centenário do nascimento de Graciliano, lê-se: “Foi uma prisão gratuita, apenas com o sentido de perseguir um homem de ideias liberais que pregava contra os desmandos do governo de então. Suas ‘atividades extremistas’ não passavam de uma posição contrária ao governo de Vargas, que na sua opinião não se coadunava com as necessidades do povo brasileiro nem tomava o caminho de uma política condizente com o Brasil de então. Foi preso quando exercia o cargo de diretor da Instrução Pública e não se tinha nenhum conhecimento de atividades subversivas de sua parte. Mesmo assim, (…), foi encarcerado junto a marginais que se misturavam com políticos, literatos e homens públicos, presos apenas pelo crime de não rezarem pela cartilha do governo”.
Graciliano foi, sim, vítima de perseguição política e de ignomínia do poder de então. Foi quase um ano de infortúnio, de abandono e de angústia, largado em masmorras como se uma fera fosse. Mas ele não perdeu a sensibilidade, mesmo em meio àquela gente bruta, mil vezes mais bruta que a gente do sertão de “Vidas Secas”. Assim como a cachorra Baleia, desse que é o mais famoso dos romances de Graciliano, mesmo ao ser “sacrificado”, por suspeita de subversão, Graciliano ainda enxergava o “céu dos cachorros, cheio de preás”.
E foi ainda “em cana” que o grande alagoano imaginou as suas “Memórias do Cárcere”, para narrar as aventuras e os dramas, as suas e as de seus companheiros, pelos presídios do Brasil afora. E haveria Graciliano, como ninguém mais na história da nossa literatura, de penetrar na alma desses companheiros, “de sentir suas dores, admirar-lhes a relativa grandeza, enxergar nos seus defeitos a sombra dos meus defeitos”, segundo ele mesmo diz. “Memórias do Cárcere”, entretanto, só foi concluído anos depois. E restou como obra póstuma, publicada no ano de 1953, na Rio de Janeiro de sua adoção.
Sobre essas “Memórias”, especificamente, nós conversaremos na semana que vem. Rogo apenas um tico de paciência.

Marcelo Alves Dias de Souza
Procurador Regional da República
Doutor em Direito (PhD in Law) pelo King’s College London – KCL
Mestre em Direito pela PUC/SP


03/10/2019


Marcelo Alves
ublicado antes de ontem, dia 29 de setembro de 2019, no jornal Tribuna do Norte (de Natal/RN):
Wilde no cárcere
Na semana passada, conversamos aqui sobre a experiência pessoal e literária de Fiódor Dostoiévski (1821-1881) com o cárcere. Esse tipo de experiência e de posterior narrativa, entretanto, não é uma exclusividade do grande romancista russo. Pondo angústia e sofrimento no papel, outros grandes escritores também se permitiram retratar a realidade das masmorras, em seus aspectos visíveis e recônditos, nas quais são recolhidos, para cumprimento de duras penas, os que supostamente afrontam as leis penais.
Um desses grandes escritores, dos mais badalados, foi o irlandês Oscar Wilde (1854-1900), o autor do romance “The Picture of Dorian Gray” (1890) e da série de comédias teatrais “Lady Windermere’s Fan” (1892), “A Woman of No Importance” (1893), “An Ideal Husband” (1895) e “The Importance of Being Earnest” (1895).
Por mais incrível que isso pareça hoje – pelo menos para nós, minimamente civilizados –, Oscar Wilde foi processado e condenado, em 1895, na Inglaterra, pelo “crime” de homossexualismo. Wilde mantinha, desde pelo menos 1891, uma relação homossexual com Lord Alfred Douglas, o Bosie, alegadamente o grande amor de sua vida, apesar do seu casamento com Constance Lloyd, com quem teve dois filhos. Em 1895, o escritor tomou a insensata decisão de processar criminalmente o pai de Bosie, o Marquess of Queensberry, por crime contra a honra, dando início a uma série de eventos que levariam ao seu próprio julgamento por homossexualismo. O Marquês estava preparado. Vasculhou a vida íntima do escritor. Reuniu provas contundentes em sua defesa e foi absolvido à unanimidade. Kafkamente, como resultado, Wilde foi levado à prisão, com fundamento nas provas produzidas em seu desfavor no julgamento do Marquess of Queensberry. Preso por um mês, antes mesmo do seu próprio julgamento, ele teve a insolvência civil declarada. Já no banco dos réus e abandonado por Bosie, Wilde foi pego em mentiras e teve a vida ainda mais exposta. O veredicto: culpado. Pena: 2 anos de prisão, com trabalhos forçados.
Assim, em maio de 1895, Wilde é novamente preso. Após uma sucessão de transferências, finalmente chega à prisão de Reading, cidade no sudeste da Inglaterra, que se torna o cenário de sua “Ballad”. Por mais limpa e perfeita que seja em sua organização – e imagino que a prisão de Reading fosse bem melhor que a prisão siberiana de Dostoiévski –, qualquer prisão, da Ilha do Diabo às penitenciárias brasileiras, é sempre terrível. Mas acredito que a solidão do cárcere ou a promiscuidade que ali gracejam sejam muito mais dolorosas para homens sensíveis como Wilde, que, em sociedade, personificava, quase à perfeição, a figura do dândi. As humilhações pelas quais Wilde passou, o horror da prisão em si, por ele depois descritas, podemos bem imaginar. Ele ficou preso em Reading Gaol, hoje chamada HM Prison Reading, até 1897.
Ainda em Reading Gaol, Wilde escreveu uma longuíssima e tocante carta ao seu amante, o Bosie. Nela, ele relembra o caso de amor e suas experiências de condenado. O tom é de lamento e ataque. Em 1905, foi publicada uma versão reduzida dessa carta com o título “De Profundis”. Em 1949, apareceu uma nova versão com partes inéditas. E, finalmente, em 1962, a versão original revisada foi publicada, conforme nos informa A. Norman Jaffares, no “O’Brien Pocket History of Irish Writers: from Swift to Heaney” (de 1997).
Uma vez libertado, Wilde foi viver na França, autoexilado. Ali, em Berneval-le-Grand, cidadezinha da Normandia, ele escreveu o célebre poema “The Ballad of Reading Gaol” (“A balada da prisão de Reading”). A balada – denominação que se dá a certo tipo de composição musical ou poética – tem como ponto de partida a execução de um tal Charles Wooldridge, acontecida em 1896, quando Wilde estava encarcerado em Reading Gaol. Wooldridge, um militar, foi condenado à morte por haver brutalmente assassinado a própria mulher. O enforcado tinha 30 anos quando cumprida a sentença. Para além do testemunho, Wilde amplia o sentido da sua narrativa, para simbolizar a situação de todos os prisioneiros, mas não para criticar a justiça das decisões que os condenaram, e sim para mostrar, como “advogado” de uma reforma penal, a brutalização da punição do condenado à morte e de todos aqueles ali aprisionados e esquecidos. O verso autoaplicável “cada homem mata as coisas que ama” restou célebre.
Antes de terminar, quero fazer uma comparação. A reação mental e intelectual de Oscar Wilde ao martírio da prisão foi bem diversa da de Dostoiévski (vide o artigo da semana passada). Liberto em 1897, para a outrora celebridade londrina, agora falido e humilhado, sem contato com os filhos, restou o autoexílio do outro lado do canal. As habitações na França não eram as melhores; as roupas, também não. Wilde viveu sob o pseudônimo de Sebastian Melmoth. E, sobretudo, a sua produção literária tornou-se escassa.
Em 1900, com apenas 46 anos, convertido ao catolicismo, ele morreu de meningite, talvez causada pela sífilis. Certamente, agravada pela depressão e pelo alcoolismo. No Cemitério de Père Lachaise, em Paris, ainda hoje ele está preso nesse exílio.


Marcelo Alves Dias de Souza
Procurador Regional da República
Doutor em Direito (PhD in Law) pelo King’s College London – KCL
Mestre em Direito pela PUC/SP



MACAÍBA, ONTEM

Valério Mesquita*

Escrever sobre o passado de Macaíba é um momento raro confidências emocionais. Macaíba é um centro catalizador e irradiador de emoções, dotada de poderes mágicos. Percorrendo suas ruas, desfilam comigo todo um universo espiritual de amigos ruidosos ou silenciosos, densos e penetrantes. As ruas do centro, umas largas outras estreitas, o rio poluido, o cais desfeito, os lugares que já foram, os casarões destruídos, tudo comanda uma série de imagens, de sensações auditivas, visuais, olfativas ou mesmo táctil, entre o passado e o presente.
São sensações-lembranças povoando os espaços da memória e a recomposição não de um tempo perdido como queria Proust, mas o sentido e o rumor do humano, da paisagem e do tempo, todos síntese e fascinação de horas vividas e profundas.
Política folclórica, intensa, arrebatada, patética. Digna do teatro shakeaspereano. Neco Freire, Estevão Moura, Alfredo Mesquita, José Maciel, Aguinaldo Ferreira, Magno Tinoco, Paulo Mesquita, Aldo Tinoco, Theodorico Freire, Neco Alves, Enock Garcia, Severino Aleixo, Francisco Falcão Freire, Leonel Mesquita, Luís Cúrcio Marinho, entre tantos outros, emergem do tempo com força evocativa de ressurreição de ambientes.
De tipos humanos inesquecíveis relembro, Macaíba social, lírica, romântica, ingenuamente irresponsável, jovem, de Neif no saxofone, Nestor Lima no violão, Raimundo Cavalcante, a voz, José Inácio Neto, o emérito historiador, Ranilson Costa, ruminando sempre, a cordialidade de Bridenor Costa, Né Massena e seu torrado indefectível, Perequeté, Banga, Passarinho, Jorge de Papo, Maria Cabral, Zé Caíco, Sérgio, “o cabeceiro borçal”, Pereira e o seu piston, Gutemberg Marinho, seu irmão Epaminondas e o velho Luís Marinho de Carvalho, Maceira e o seu choque irreprimível, Chico Moura, Olímpio Maciel, D. Nazaré Madruga, Carlos Mesquita e o pisa na fulô, padre Chacon, Nassaro Nasser (Danga) e a coleção de gibi, Chicozinho e o cavaquinho, o jogo de botões pelas calçadas com elenco insuspeito de moleques, Napoleão sapateiro e Charuto, o seu vizinho, as bodegas de Alfredo Almeida e João Manteiga, Miguel Pelado, Zé Pelado do “Café Gato Preto”, o Pax Club, enfim, uma verdadeira procissão de lembranças de um mundo desaparecido mas ainda vivo nas paredes, no chão por onde pisaram, como queria Sartre.
Enfim, devo dizer que ainda ouço com extraordinária nitidez, as mesmas canções eternas de todo esse universo perdido, de todo esse coquetel humano, como se estivesse de uma janelinha aberta e mágica, vendo-os passar numa comovida recomposição de gestos.

(*) Escritor






Síndrome da hipocrisia brasiliense
Tomislav R. Femenick – Jornalista. Do Instituto Histórico e Geográfico do RN 

Apesar dos percalços, a chamada melhor idade (eu quero saber quem inventou essa baboseira; é velhice mesmo) tem em si duas vantagens. A primeira é que os idosos conseguiram vencer a única opção para não envelhecer, a morte. A segunda, é que eles (nós) possuem um enorme estoque de memórias, reminiscências, lembranças de fatos passados, banais ou relevante.  
Essa reflexão veio a mim lendo as últimas notícias do mundo político nacional, das marchas e contramarchas dos governantes: deputados, senadores, ministros de governo, ministros togados e outros figurantes do cenário brasiliense. Não é fácil entender essa gente. Aí veio-me à lembrança um fato acontecido há muito, muito tempo.
O ano era 1958 ou 1959, no governo de Juscelino Kubitschek, quando o dínamo das alterosas instalava a indústria automobilística no país, abria estradas, inovava nas relações políticas e construía uma nova capital federal, lá no planalto central. Havia um certo entusiasmo nacional. Somente a “banda de música” da velha UDN aparecia contestando esse ou aquele ponto do rolo compressor mineiro. Estávamos no Rio de Janeiro, mais precisamente no bar da Pérgula do Hotel Copacabana Palace. Éramos quase todos norte rio-grandenses, capitaneados pelo meu primo Mota Neto, ex-deputado federal, que conhecia o Rio de Janeiro e sua gente da “alta roda” como ninguém. Conhecia de Walter Moreira Salles, dono do Unibanco; Ibrahim Sued, cronista social; ao Fred, o garçom do Antonio’s Bar, e um monte de outros cariocas ilustres. 
Mas voltemos àquele momento no Pérgula. Como não poderia deixar de ser, a conversa do grupo terminou se voltando para a construção Brasília. Uns achavam que seria bom, pois levaria o progresso para o interior do país, outros lamentavam a perda de status que irremediavelmente o Rio sofreria e outras opiniões afloraram. Só Mota Neto estava calado, até que alguém lhe perguntou: “Mota, você não fala nada”. Então ele respondeu que seu medo era que a capital isolada, lá no meio do cerrado, fizesse como que os representantes do povo também se isolassem da nação, perdessem seu vínculo com a realidade do país e passassem a viver em um mundo diferente do Brasil verdadeiro. Todos aqueles palácios, aquelas residências separadas por quadras qualificadas, aquelas moradias pagas com dinheiro público e, também, outras modalidades do viver da nova capital poderiam transformar a visão pública (atualmente, diríamos republicana) dos políticos e servidores públicos. 
Sem dúvida, essa foi uma visão profética. Hoje os políticos e servidores públicos que habitam Brasília só olham para seus umbigos, se tornaram nababos e transformaram os brasileiros (a quem deveriam servir) em seus vassalos. Quer exemplos? Vamos a eles: bilhões de reais que fazem falta aos hospitais, escolas e segurança pública são destinados aos fundos partidários, que no fundo, no fundo, só visam reeleger suas excelências; pagamento de auxílio moradia para quem tem residência própria, enquanto milhares de pessoas, famílias inteiras, moram na rua; pagamento de planos de saúde com assistência ilimitada, para alguns, enquanto pessoas morrem na fila do SUS, que vive à mingua de verbas; aviões da FAB e passagens aéreas “para autoridades” pagas com dinheiro público, enquanto os trabalhadores pagam passagem de ônibus para ir trabalhar, geralmente em veículos inseguros e superlotados; professores de universidades públicas e outros servidores têm custeados seus estudos de pós-graduação, doutorados e pós-doutorados por órgãos do governo, enquanto os outros mortais pagam tudo com dinheiro do próprio bolso. 
Se em Brasília é assim, não há por que nos Estados e Municípios ser diferente. Não interessa o tamanho de suas receitas, as beneficies não replicadas automaticamente. Dessa forma os penduricalhos federais se espalham por todos os entes federativos. É a síndrome da hipocrisia brasiliense.