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30/10/2019


A hora da prisão

Já defendi aqui, mais de uma vez, no âmbito do nosso processo e direito penal, por não enxergar ofensa ao princípio constitucional da presunção da inocência, o início da execução da pena imposta após a confirmação da sentença condenatória em segundo grau.
Eu não mudei de opinião, digo logo.
Continuo achando que o princípio da inocência é muito mitigado com a sentença penal condenatória e, com a confirmação desta em segundo grau, ele deixa mesmo de existir. Fio-me no próprio texto constitucional que, no seu art. 5º, inciso LVII, aduz “ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória”, chamando a atenção para o conceito/termo “sentença”, que, como sabemos, é pronunciamento por meio do qual o juiz de primeiro grau põe fim à fase cognitiva do procedimento penal em sua jurisdição. A Constituição Federal não fala em trânsito em julgado de “acórdão”, que é o julgamento colegiado proferido pelos tribunais. Ora, a sentença “transita em julgado” quando decidida sua apelação em segundo grau. O acórdão aí proferido é que ainda poderá ser objeto de recurso (especial e/ou extraordinário). Assim, pelo próprio texto constitucional, quando transitada em julgado a sentença, com a decisão confirmatória em segundo grau, temos uma verdadeira presunção de culpabilidade.
O argumento de se evitar dano irreparável à liberdade do cidadão também não me é intransponível. É claro que muitos, sobretudo os réus em iminência de prisão e os seus advogados, com base nesse argumento, se levantarão – legitimamente, frise-se – contra o que digo aqui. Entretanto, afirmo: para evitar dano irreparável à liberdade do cidadão e equívocos de outra sorte, existirão as medidas cautelares (em recurso especial e em recurso extraordinário) e, sobretudo, o habeas corpus, que é o instrumento por excelência para esse fim. E estes, medidas cautelares e habeas corpus, deverão ser julgados com total prioridade.
Rezando para não parecer populista – tenho verdadeira repulsa ao populismo judicial –, penso que, afastada qualquer inconstitucionalidade na execução da pena condenatória após a confirmação em segundo grau, estamos diante de uma questão de opção. No Brasil de hoje, um processo penal comum pode percorrer, via recursos variados, quatro graus de jurisdição: juiz de primeiro grau, tribunal de apelação, Superior Tribunal de Justiça e mesmo o Supremo Tribunal Federal. Isso sobrecarrega o Judiciário. Torna morosa a Justiça, eternizando os litígios penais, praticamente impedindo a execução da pena reiteradamente imposta, que fica sendo postergada num processo quase sem fim. Pelo que sei, em país nenhum do mundo, depois de cumprido o duplo grau de jurisdição, com a decisão condenatória do tribunal de apelação, a execução da condenação fica suspensa, “pairando no ar”, aguardando tanto tempo pela confirmação da sua Corte Suprema. É isso que queremos manter no Brasil?
Eu sei que o Supremo está decidindo, pela “enésima” vez, essa questão. Já foi e voltou, na sua jurisprudência, algumas vezes, como até já mostrei aqui em outra oportunidade. E isso é péssimo. Mas respeitarei, como sempre respeitei, a nova orientação do Supremo Tribunal Federal. Antes de mais nada, não tenho, nem espero nunca ter, a pretensão de ser dono da verdade. E também respeito essa instituição contramajoritária e pilar fundamental do nosso estado democrático de direito (e aqui friso a expressão “de direito”).
Para falar a verdade, eu acho que o Supremo Tribunal Federal, se deseja proteger esse direito fundamental de todos nós, que é a liberdade, deveria, sim, preocupar-se com o uso abusivo das prisões provisórias. As temporárias, que tomaram o lugar das conduções coercitivas, uma vez proibidas estas pelo próprio STF, contornando os juízes, abusivamente, a decisão do Tribunal. E as preventivas – as longuíssimas prisões preventivas, de meses ou anos, sem julgamento –, que, somadas ao sufocamento das famílias dos investigados, são utilizadas, muitas vezes, também abusivamente, apenas para forçar uma colaboração premiada (“nas torturas toda carne se trai”, já dizia o nosso Zé Ramalho). A prisão preventiva, entre nós, está virando cumprimento antecipado da pena. E acho que, vedada a execução da pena após a confirmação da sentença condenatória em segundo grau, a coisa pode até piorar. Tornar-se-ão mais frequentes as prisões preventivas, contornando-se indevidamente a decisão do Supremo Tribunal Federal (lembrem-se do que aconteceu com a proibição da condução coercitiva), para antecipar o cumprimento de uma suposta pena que só viria a ser executada Deus sabe lá quando. Isso pode até satisfazer o desejo de justiçamento das redes sociais. Mas é isso o que queremos? Uma “justiça” sem sequer condenação? Uma “justiça” populista? Isso é mais do que péssimo!


Marcelo Alves Dias de Souza
Procurador Regional da República
Doutor em Direito (PhD in Law) pelo King’s College London – KCL
Mestre em Direito pela PUC/SP

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