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13/10/2018

PARTE 1
Vai texto de artigo publicado domingo retrasado, dia 30 de setembro de 2018, no jornal Tribuna do Norte (de Natal/RN):
Viajando com a amiga (I)

É fato: nos romances da minha amiga Agatha Christie (1890-1976), nós somos “convidados” a desvendar um crime. Seguimos os passos e o raciocínio do seu Hercule Poirot ou da sua Miss Marple, através de um jogo de pistas e charadas, para chegarmos a um final, quase sempre, surpreendente. O mistério por detrás do crime é, com certeza, o mais importante para o sucesso da estória.
É algo bem diferente do que se dá com os policiais noir americanos, de gente como Raymond Chandler (1888-1959) e Dashiell Hammett (1894-1961), que nos apresentam um mundo estranho de dinheiro farto, casamentos falidos, destruição pelo álcool, fêmeas fatais e assassinatos, misturado a um aparelho policial e judicial corrupto, que é enfrentado pelos seus detetives durões. Nos policiais noir, para o sucesso da coisa, o ambiente no qual estão inseridas as personagens é tão ou mais importante do que a trama/mistério em si.
Entretanto, por mais paradoxal que seja – já que o ambiente onde se passa a estória, em Agatha Christie, é bem menos importante que o mistério por detrás do crime –, para mim, uma das coisas mais gostosas de se fazer, na companhia da Rainha do Crime, é “viajar” nos seus romances.
Explico: em regra, o ambiente das estórias de Agatha Christie é muito “saudável” e turístico. São casas de campo em cidadezinhas da Inglaterra, balneários na sua “Riviera”, a alta sociedade londrina ou mesmo o outrora pitoresco Oriente Médio. E o turista, literário ou não, pelo menos aquele “bom da bola”, gosta de viajar para lugares pitorescos, mas que sejam também saudáveis e razoavelmente seguros.
É o que também pensam os autores de “Agatha Christie: Shocking Real Murders behind her Classic Mysteries” (publicado pela HarperCollins Publishers/Índia em 2017), que, mandando esquecer o Nilo ou o Expresso do Oriente (aqui eu discordo), recomendam vários sítios para se visitar, a partir das estórias da Rainha do Crime, no sul do belo condado inglês de Devon ou mesmo na chamada Riviera inglesa.
De fato, muitas das cidadezinhas inglesas retratadas por Agatha Christie são visivelmente inspiradas na sua cidade natal, Torquay, que, às margens do Canal da Mancha, em Devonshire, com seu clima ameno, é um destino certo para os fãs da nossa amiga. O exemplo mais visível disso é St. Mary Mead, a pequena vila fictícia criada por Christie como lar da sua famosa detetive, uma senhorinha solteirona, batizada de Miss Marple. St. Mary Mead aparece já em “The Murder at the Vicarage” (“Assassinato na casa do pastor”, 1930), o primeiro caso da querida Miss Marple, assim como em “The Body in the Library” (“Um Corpo na Biblioteca”, 1942), também protagonizado pela detetive e que, de tão bom, eu recomendo sem pestanejar. O mesmo se dá em “The Mirror Crack’d from Side to Side” (“A maldição do espelho”, 1962), sem dúvida um dos maiores sucessos de Agatha Christie. Neste romance, não coincidentemente, o crime a ser desvendado é praticado em Gossington Hall, antiga residência de Dolly Bantry, amiga de Miss Marple, a mesma mansão em St. Mary Mead onde, alguns anos antes, foi encontrado o cadáver no já citado “The Body in the Library”. Desde já eu asseguro: a trama de “The Mirror Crack’d from Side to Side”, parcialmente inspirada na trágica história da atriz americana Gene Tierney (1920-1991), é simplesmente fantástica. Por fim, na fictícia St. Mary Mead também se passa “Sleeping Murder” (“Um crime adormecido”, 1976), o último romance publicado por Christie com Miss Marple “no comando” das investigações. E aqui, para se ter uma ideia, o Hotel Imperial da trama não é outro senão o famoso Hotel Imperial de Torquay, no qual, um dia, se Deus quiser, fã da Rainha da Crime, eu de fato me hospedarei.
Mas não foi só Miss Marple que andou xeretando por Devon e pela Riviera inglesa. Também ali ambientados, mas com Hercule Poirot no comando das investigações, os autores de “Agatha Christie: Shocking Real Murders behind her Classic Mysteries” citam, entre outros, o excelente “The ABC Murders” (“Os Crimes ABC”, 1936). Aqui, por exemplo, Poirot e Hastings viajam, de trem, da gigante estação londrina de Paddington para a “Churston Railway Station”, no sul de Devon, que fica não muito longe de onde morou a Rainha do Crime. Dali dão ensejo às suas investigações. Por aquelas bandas ainda se passa outro excelente romance de Christie, também protagonizado por Poirot, que até já mencionei aqui, “Five Little Pigs” (Os cinco porquinhos”, 1942). É seguro dizer que o local em que é assassinado o pintor e hedonista Amyas Crale não é outro senão a famosa Greenway House, a casa adquirida por Christie em 1938, perto de Dartmouth e às margens do rio Dart, onde ela viveu idilicamente até o explodir da Segunda Guerra Mundial. Greenway House, aliás, aparece representada em pelo menos dois outros títulos de Christie: “Dead Man’s Folly” (“A extravagância do morto”, 1956) e “Ordeal by Innocence” (“Punição para a inocência”, 1958).
Por fim, é preciso lembrar que, apesar da “campanha” dos autores de “Agatha Christie: Shocking Real Murders behind her Classic Mysteries” em prol de Devon e da Riviera Inglesa, os mistérios de Agatha Christie não se resumiram a essas paragens. A Rainha do Crime passou por outras partes da Inglaterra. Esteve frequentemente em Londres. Na verdade, como veremos na semana que vem, ela foi até muito – e ponha muito nisso – mais longe.
Marcelo Alves Dias de Souza
Procurador Regional da República
Doutor em Direito (PhD in Law) pelo King’s College London – KCL
Mestre em Direito pela PUC/SP

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