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14/10/2018

Marcelo Alves

PARTE 2

Viajando com a amiga (II)

Como dito no artigo da semana passada, apesar da “campanha” dos autores de “Agatha Christie: Shocking Real Murders behind her Classic Mysteries” (publicado pela HarperCollins Publishers/Índia em 2017) em prol de um “turismo literário” em cidadezinhas no condado de Devon e na Riviera Inglesa, os mistérios da Rainha do Crime não se resumiram a essas paragens. Christie “hospedou-se” em balneários e pequenas ilhas. Viajou por outras partes da Inglaterra. Esteve frequentemente em Londres. Na verdade, ela foi até muito mais longe.
Não é difícil constatar isso.
Antes de mais nada, para além das cidadezinhas do tipo St. Mary Mead (a vila fictícia criada para ser o lar de Miss Marple), Christie ambientou seus romances em balneários ou mesmo ilhas “macabras”, que são misturas de sua imaginação fértil com lugares identificáveis na diversificada geografia britânica.
Para exemplificar o que eu estou dizendo, começo citando um dos melhores títulos da Rainha do Crime: “Evil under the Sun” (“Morte na praia”, 1941). A coisa se passa em um hotel situado entre os condados vizinhos de Devon e da Cornualha, no sudoeste da Grã-Bretanha. Entre os hóspedes está a bela Arlena Marshall, que, um dia, aparece morta em uma enseada da região. Lá também se acha Hercule Poirot, que se dispõe, claro, a desvendar o caso. E, como registra Mark Campbell, em “The Pocket Essential Agatha Christie” (publicado pela Pocket Essential em 2005), “vários lugares de Devon aparecem neste livro. Torquay é chamada St. Loo, a ficcional Smuggler’s Island é a Bigbury-on-sea’s Burgh Island (referida de novo em Ten Little Niggers, 1939)” e por aí vai.
Aproveitando o gancho, outro exemplo maravilhoso do que estou falando é “Ten Little Niggers” (“O caso dos dez negrinhos”, 1939), romance sobre o qual, aliás, eu até já escrevi aqui, em “E não se vende uma amiga”, tratando da polêmica envolvendo o seu título. O enredo de “Ten Little Niggers” é mais do que excelente, pelos personagens estereotipados e, sobretudo, pela localização sinistra. Dez pessoas são convidadas para uma estada em uma mansão na ilhota chamada Nigger Island. Os convidados chegam, entusiasmados, em uma tarde de verão. Mas todos têm algo a esconder. “Crimes” que a Justiça dos homens não foi capaz de punir. E logo tudo muda, a começar pela vinda de uma tempestade que os deixa isolados na pequena ilha. Os especialistas não têm dúvida: a ilha de “Ten Little Niggers” não é outra senão a tal Burgh Island, de fato localizada na costa de Devon. De minha parte, pensando bem, acho que não quero conhecer Burgh Island.
Ademais, na obra de Christie, tem-se também cidadezinhas que simplesmente estão localizadas em um lugar qualquer da Inglaterra. Como exemplo, peguemos o caso de King’s Abbott, a cidadezinha retratada por Agatha Christie em “The Murder of Roger Ackroyd” (“O Assassinato de Roger Ackroyd”, 1926), livro que por muitos é considerado o melhor da autora. O final desta trama, de tão engenhosa para com o leitor, é até controversa. Mas claro que não vou contá-lo aqui. Apenas registro que King’s Abbott, não identificada sua localização no livro, pode ser qualquer daquelas pequenas vilas inglesas, onde a vida passa devagar e a fofoca corre rápido.
Aliás, a quantidade de pequenas cidades “criadas” por Agatha Christie é enorme. James Hobbs, no seu blog “Hercule Poirot Central” (www.poirot.us), cita, entre outras: Chipping Cleghorn (“A Murder is Announced”, 1950), Lymstock (“The Moving Finger”, 1942), Much Benham (em várias estórias de Miss Marple), St. Loo (“Peril at End House”, 1932), Woodleigh Common (“Hallowe'en Party”, 1969), Warmsley Vale (“Taken at the Flood”, 1948), Market Basing (em várias estórias de Poirot), Wynchwood (“Murder is Easy”, 1939), Much Deeping (“The Pale Horse”, 1961) e Deering Vale (“The Mysterious Mr. Quin”, 1930). Onde elas estariam localizadas? Confesso a vocês que não tive condições de pesquisar.
Por óbvio, a gigante Londres, com seus incontáveis atrativos, figura em vários títulos da Rainha do Crime. Por exemplo, eu mesmo já citei aqui a estação de trens londrina de Paddington que, de cabeça recordo logo, aparece em ao menos dois excelentes romances de Christie: “The ABC Murders” (“Os Crimes ABC”, 1936) e, claro, até pelo sugestivo título, “4.50 from Paddington” (1957). De cabeça ainda, posso dar um outro típico exemplo de “policial londrino” de Christie com “Lord Edgware Dies” (“A morte de Lorde Edgware” ou “Treze à mesa”, 1933), título que mencionei outro dia aqui. Nesse que é considerado um dos melhores romances escritos por minha amiga, com Hercule Poirot, o Capitão Hastings e o Inspetor Japp à frente das investigações, aparecem vários cenários famosos da capital inglesa, tais como Piccadilly, Covent Garden, Sloane Square, Regent’s Park, Grosvenor Square e o luxuoso Claridge’s Hotel, para ficar, aleatoriamente, em uns poucos exemplos. E, especialmente para os amantes do direito, posso mesmo lembrar uma das peças mais famosas de Christie, “Witness for the Prosecution” (“Testemunha de Acusação”, 1953), em que boa parte dos atos se passa na mítica “Old Bailey”, que é, para quem não sabe, a sede das cortes criminais (centrais) de Londres. Tudo ali bem pertinho da famosa Fleet Street (outrora “a rua” dos jornais londrinos e hoje sinônimo, em forma de metonímia, de “imprensa” na Inglaterra) e da ainda mais famosa St. Paul’s Cathedral, obra-prima de Sir Christopher Wren (1632-1723).
Na verdade, as andanças de Christie por Londres, especialmente em companhia de seu Hercule Poirot, são muitíssimas. Incontáveis mesmo. Afinal, diferentemente de Miss Marple, que é uma senhorinha “local” e detetive amadora, o pequenino e arrogante detetive belga Hercule Poirot é um profissional, com contatos na Scotland Yard e popular em várias tribos da cidade de Londres. E certamente por essa razão, Miss Marple e Poirot, curiosamente, nunca se encontraram em qualquer das muitíssimas estórias imaginadas por minha amiga Agatha Christie.
Por fim e para além disso, também é fato que Agatha Christie e Hercule Poirot ganharam o mundo. Se Miss Marple esteve uma vez de férias no Caribe, Poirot, com meios e recursos para tanto, foi muito mais longe: nos Bálcãs, em Istambul, na Mesopotâmia, no Egito e por aí vai. Mas sobre essas andanças, nessas diferentes culturas, nós só conversaremos no artigo da semana que vem.


Marcelo Alves Dias de Souza
Procurador Regional da República
Doutor em Direito (PhD in Law) pelo King’s College London – KCL
Mestre em Direito pela PUC/SP

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