Páginas

28/10/2013


Acauã vai à Pitombeira
O sertanejo quer esquecer o dia em que seus olhos contemplam a paisagem cinza de sua dor: a jurema morta na caatinga; o açude na agonia de uma parede a represar poeira de um solo queimado; o gado, na sua fraqueza, mugindo baixinho; e o vaqueiro, por não ouvir o chamado da rês, sequer lhe deu a extrema unção de um olhar triste.
Ainda assim no sertão de pedra e de chão seco, a alegria chega com o clarão da lua.
Cavaleiros e amazonas conferem os arreios. É dia de cavalgada à luz do luar. Tudo começa no olho d’água do bico da arara. Maurício na sanfona faz a gente dançar um xote. O intervalo marca o início das declamações.
Não demora muito. As luzes do salão são apagadas. A lua vem surgindo bem devagar no dorso da serra. Um cavaleiro faz confidências diante do rosto enluarado da amazona apaixonada. A tênue luz da natureza se faz manto e envolve os amantes.
Meia hora mais de prosa, verso e sanfona. A cavalgada começa pelos caminhos da ribeira de acauã.
A alegria toma conta da cavalgada porque a noite escondeu as matizes dos desencantos. E o dia que mostrava ao sertanejo as folhas caídas do juazeiro era um ontem de cinzas de coivara – passado a não ser lembrado.
Aqui e acolá sob o som cadenciado do tropel da cavalgada, ouvia-se de um cavaleiro a extensão sonora de sua emoção quando cantava canções de antigamente num suave: “ontem ao luar, nós dois em plena solidão...”.
Cessa o tropel. É hora da cachaça. Uma amazona se encanta com a lua beijando a pedra. E o reflexo na sua alvura alumia o copo. Bebida a cana, o cavaleiro diz que os fios do luar foram tecidos para guardar o corpo da sua amada mulher. Talvez por isso seja o amor o sentimento que tecendo o carinho faça do coração a morada eterna do luar como cobertor iluminado, guardando, a um só tempo, amante e amada.
Mais adiante, está o Ingá. E o bico da arara continua no alto da serra como atalaia daquele recanto onde tombou Otávio Lamartine - o filho ilustre do seridó, numa noite de 13 de fevereiro de 1935.
A Cavalgada ali faz uma parada. A casa está do mesmo jeito. O chão nada mudou. O terreiro recebe da lua um fio dourado de luar e, da cavalgada, um pouco de silêncio. E alguém interrompe a ausência de conversa para dizer: “foi um ato covarde!”.
O tropel continua a sua marcha. Não muito longe, se vê a luz arte da Pitombeira.
Uma encruzilhada! Alguns cavaleiros escolhem um caminho cujo destino era Carnaúba dos Dantas – terra de Tonheca Dantas, compositor da mais bela valsa do Brasil – Royal Cinema. A interseção de caminhos, numa cavalgada, impõe decisão, por vezes, que nega ao séquito o destino almejado. Não é diferente quando, na existência humana, ocorre a interseção de sonhos. O coração sentimental não aprendeu a conviver bem com a simultaneidade lírica. Assim, o cruzamento de expectativa amorosa implicará sempre em renunciar um desejo para salvar o antigo amor.
Um cavaleiro vai apressado avisar aos demais da cavalgada que aquele caminho não tem como destino a Pitombeira - a Canaã da nossa acauã.
Reunidos novamente, avistamos as luzes do terreiro da casa grande da Pitombeira. O último gole da cachaça desce com a alegria de todos.
Chegamos! A lua beijou o chão daquele canto, cobriu com seu manto luminoso o rosto cansado mas feliz dos filhos da ribeira de acauã.
A cavalgada à luz do luar por algumas horas se esqueceu da cor cinza da caatinga. (À madrinha da cavalgada – Ana Paula de
Albuquerque)

Francisco de Sales Felipe
Advogado

Nenhum comentário:

Postar um comentário