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29/01/2019

Sobre Maquiavel (III)
No artigo da semana passada, deixei no ar a questão sobre como devemos avaliar Nicolau Maquiavel (1469-1527) sob o ponto de vista de uma moral ou ética cristã, tão cara para nós nos tempos atuais. Seria Maquiavel, como também indaga Cabral de Moncada (em “Filosofia do Direito e do Estado”, vol. 1, Arménio Amado Editor Sucessor, 1955), “aquilo que se chama de imoralista confesso e professo? Não existiriam para ele, na sua construção teórica do Estado, outros limites à ação deste senão os da conveniência, da força e da astúcia?”.
A grosso modo, foi com essa fama de imoralista, para dizer o mínimo, que esse ilustre florentino passou à história, tendo os seus “terríveis” conselhos ao Príncipe contribuído para moldar, positiva ou negativamente, o comportamento político das eras seguintes. E termos como “maquiavélico” e “maquiavelismo” ganharam o imaginário e o vocabulário popular, nunca para elogiar o ato ou a pessoa (o político manipulador, por exemplo) apontados como tal.
E como reconhece o já citado Cabral de Moncada, não faltam em “O Príncipe” (“Il Principe”, 1513) passagens clássicas que, sobretudo se interpretadas ao pé da letra, nos levam rapidamente a essa mesma conclusão. Com efeito, são bem “conhecidos os conselhos aí dados por Machiavelli aos príncipes, relativamente ao modo como aqueles que se apoderaram do governo por meios injustos devem praticar as crueldades e injúrias necessárias, de maneira que resultem menos gravosas para os súbditos; bem como os por ele dados, a fim de que os príncipes não tenham escrúpulos em praticar o mal quando necessário; e ainda os relativos ao direito dos príncipes de violarem a fé jurada e os tratados, sempre que isso lhes convenha, etc. Nestas e outras semelhantes doutrinas consiste afinal o chamado ‘maquiavelismo’, ou aquela moral segundo a qual os fins justificam os meios, e em que a hipocrisia, na administração destes últimos, de vício passa a ser a mais excelsa das virtudes dos príncipes e dos homens de Estado”.
Embora esse “lado sombrio da força” esteja visível em “O Príncipe” e o “amoralismo” do seu autor venha sendo enfocado pelos seus críticos, também há, quanto à obra de Maquiavel, muito erro de interpretação, fazendo dele, talvez, o mais famoso e ao mesmo tempo mais mal compreendido dos filósofos políticos que a história nos legou. Foi certamente essa incompreensão que fez dele, sob o ponto de vista da moralidade e da ética, o mais mal afamado de toda a turma.
Um olhar mais acurado em sua vida e obra, entretanto, faz com que a balança penda um pouco mais em prol de Maquiavel.
Antes de mais nada, como até já dito aqui, Maquiavel e o seu “O Príncipe” são produtos de um tempo e de uma Itália dividida num triste espetáculo de guerras e perturbações intestinas. E nessas condições emerge a Renascença, com aquilo que ela traz em contradição ao Cristianismo, da qual Maquiavel, na política, é um representante típico. Autor e obra, portanto, devem ser julgados levando em conta os padrões morais e éticos daquele inusitado período histórico.
Ademais, para Maquiavel, a criação de um Estado nacional italiano, unitário, com a regeneração do povo, era o ideal a ser atingido. Era exclusivamente para atingir esse ideal – marcadamente circunstancial e histórico – que, para ele, pensador e verdadeiro homem político, todos os meios se justificavam.
E mesmo aqui – sob a máxima de que “os fins justificam os meios” – algumas coisas podem ser ditas em prol de Maquiavel. Embora possa parecer uma diferenciação por demais sutil ou mesmo cínica, há certos tipos de “meios” ou condutas que, mesmo levando em conta o fim almejado, o próprio Maquiavel não recomenda. Como lembram os autores de “O livro da filosofia” (publicado pela Editora Globo em 2011), existem “certos meios que um príncipe sábio deve evitar, porque, embora possam alcançar os fins desejados, deixam-no exposto a ameaças futuras. Os principais meios a serem evitados consistem naqueles que fariam o povo odiar seu príncipe. O povo pode amá-lo e temê-lo – preferivelmente ambos, dizia Maquiavel, embora seja mais importante para um príncipe ser temido do que amado. Mas o povo não deve odiá-lo, pois isso provavelmente levaria à revolta. Da mesma foram, um príncipe que maltrata seu povo desnecessariamente será desprezado – um príncipe deve ter uma reputação por sua compaixão, não pela crueldade. Isso pode envolver punições duras para uns poucos, a fim de alcançar uma ordem social geral que beneficie mais pessoas a longo prazo”. E, claro, para os cidadãos comuns, mesmo tendo Maquiavel em geral desdenhado “da moralidade convencional cristã, considerada fraca e imprópria para uma cidade sólida”, a conduta recomendada “não é de modo algum a mesma de um príncipe”.
Maquiavel tem também a seu favor o princípio da “raison d'État” (“razão de Estado”, entre nós), tão utilizado ao longo da história pelos mais variados governantes, de boa ou de má fama. Aliás, esse parece ser, como anota o já citado Cabral de Moncada, “em resumo, o tema central de Machiavelli, a que obedeceram todas as suas ideias e conclusões em matéria de Estado e de direito”. A esse imperativo – a busca do sucesso do Estado –, tudo deve estar subordinado. E relendo os exemplos da história, à luz da razão de Estado, será que podemos simplesmente condenar Maquiavel sem qualquer atenuante?
E não para por aí. Pelo menos mais três coisas ainda poderiam ser ditas em favor da “absolvição” de Maquiavel e do seu “O Príncipe”: o próprio desiderato do seu tratado, a sua originalidade e o seu legado. Mas, sobre isso, por falta de espaço hoje, nós só conversaremos na semana que vem.
Marcelo Alves Dias de Souza
Procurador Regional da República
Doutor em Direito (PhD in Law) pelo King’s College London – KCL
Mestre em Direito pela PUC/SP

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