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23/01/2019

Marcelo Alves
Sobre Maquiavel (II)

Como dito no nosso artigo da semana passada, Nicolau Maquiavel (1469-1527), com o seu “O Príncipe” (de 1513, mas publicado postumamente em 1532), não pretendeu nos oferecer um tratado de moral. Ele também não nos deu uma obra filosófica, dada a quase completa ausência de base teórica desse matiz na elaboração das suas ideias. Nem mesmo construiu Maquiavel um sistema político propriamente dito, já que propôs a sua doutrina – melhor dizendo, os seus conselhos – com base em realidades concretas e determinadas, sem tomar em conta princípios políticos de valor universal.
De fato, como anota Kurt Schilling, em sua “História das ideias sociais” (Zahar Editores, 1974), “o que lhe interessava, em primeiro lugar, era a observação lúcida da dependência mútua das paixões, das instituições e das condições humanas, da sabedoria, do grau de obstinação e de versatilidade, da ambição de poder, da docilidade, da necessidade e segurança, etc. Com a análise disso, almejava avaliar com certa verossimilhança o seu encadeamento e sua interação, através de uma espécie de cálculo político. Procurava adquirir luzes com os exemplos (pouco lhe importando que fossem fictícios ou históricos) da história romana antiga e da história italiana que ele mesmo vivera. Essas luzes deviam fornecer uma série de proposições e de regras gerais do comportamento humano. Queria, com essas regras, avaliar o futuro partindo de situações dadas e constatadas, que precisava comparar com os exemplos do passado. O objetivo era a aquisição, por meio de uma análise inteligente dessas estruturas de evolução, de meios que permitissem o domínio e a orientação política”.
Mas quais foram, então, os resultados dessas observações e análises feitas por Maquiavel, que, mesmo passados tantos anos, ainda tanto nos interessam?
Antes de mais nada, vivendo um tempo de “Renascença”, mas ainda numa Itália dividida, que assistia a um vai e vem de guerras e perturbações intestinas, Maquiavel decidiu nos dizer, pondo no papel, em forma de tratado político, não como o Estado deve ser, mas, sim, como ele é. E isso já foi grande coisa.
Para Maquiavel, o êxito do Estado ou da nação, que deveria restar unida, era o fim supremo. Até porque só o Estado forte e poderoso pode impor aos homens aquilo que é necessário e bom, para que eles (os homens) não destruam a si próprios.
Assim, a sacralização da “razão de estado”, sem qualquer limitação de uma moral ou ética cristã, é certamente um ponto fundamental na obra Maquiavel, ao qual se submetem as suas propostas e as suas conclusões. No pensamento de Maquiavel, na administração do Estado, aquelas virtudes cristãs tão caras a nós – a humildade, a obediência, a tolerância, a caridade e por aí vai – pouco significam e devem até ser repelidas.
Quem governa esse Estado ou nação – o seu “Príncipe” – deve, acima de tudo, empenhar-se para garantir, para além da sua glória pessoal, o êxito desse Estado. Como bem lembra Cabral de Moncada (em “Filosofia do Direito e do Estado”, vol. 1, Arménio Amado Editor Sucessor, 1955). “a este imperativo tudo deve ser subordinado e até a honra dos príncipes lhe deve ser sacrificada, mesmo ‘con ignominia’, se tanto for necessário”. Se é para satisfazer tudo isso, ele, o governante, fazendo uso da sua “virtú” (leia-se dos seus “poderes”), não pode ser tolhido por questões de moralidade. Não importam os meios. Os fins justificam esses meios.
Na verdade, como lembram os autores de “O livro da política” (publicado pela Editora Globo em 2013), para Maquiavel, “o sucesso de um príncipe como governante é julgado pelas consequências de suas ações e seu benefício para o Estado, não por sua moralidade ou ideologia. Citando trecho de “O Príncipe”, esse autores acrescentam: “Nas atitudes de todos os homens, sobretudo dos príncipes, em que não existe tribunal a recorrer, o fim é o que importa. Trate, portanto, um príncipe de vencer e conservar o Estado. Os meios que empregar serão sempre julgados honrosos e louvados por todos, pois as massas se deixam levar por aparências e pelas consequências dos fatos consumados, e o mundo é formado pelas massas”.
O príncipe deve ter a ferocidade de um leão e a astúcia de uma raposa, tanto para atemorizar quem a ele se opõe como para identificar as tramas porventura contra ele preparadas. Essa é outra tática ou conselho sugerido por Maquiavel, tomada emprestada, segundo se diz, dos manuais de guerra. Se indefensável na vida privada, ela é aceitável – mais do que isso, é sugerida – em prol do bem comum, que, em “O Príncipe”, costuma se confundir com o bem do Estado. Como anotado no citado “O livro da política”, essa tática “cria o temor, que é um meio de garantir a segurança do governante. Com seu pragmatismo característico, Maquiavel abordou a questão se seria melhor para um líder ser temido ou amado. Num mundo ideal, ele deveria ser tanto amado quanto temido, mas na realidade os dois raramente seguiriam juntos. O temor manteria o líder numa posição muito mais forte, sendo portanto melhor para o bem-estar do Estado”.
Bom, posto tudo isso, qual o balanço que se deve fazer, sob o ponto de vista de uma moral ou de uma ética cristã, de Maquiavel e do badalado livro? Seria realmente Maquiavel, como questiona Cabral de Moncada, “aquilo que se chama de imoralista confesso e professo? Não existiriam para ele, na sua construção teórica do Estado, outros limites à ação deste senão os da conveniência, da força e da astúcia?”.
Sem dúvida, a grosso modo, foi com essa conotação que suas ideias passaram à história e, de certa forma, assim contribuíram para moldar o comportamento político das eras seguintes. Basta lembrar o uso corriqueiro, nunca para elogiar a pessoa ou o ato apontado como tal, de termos como “maquiavélico” e “maquiavelismo”.
Mas isso está inteiramente correto? Isso é o que veremos, à luz de estudos mais acurados, na semana que vem.

Marcelo Alves Dias de Souza
Procurador Regional da República
Doutor em Direito (PhD in Law) pelo King’s College London – KCL
Mestre em Direito pela PUC/SP

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