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20/11/2018


A ficção jurídica (III)

Como registrado aqui nas duas últimas semanas, a literatura ficcional tem tomado emprestado do direito muitos dos seus temas, das suas personagens e da sua dramaticidade. Há uma infinidade de temas jurídicos de que ela faz uso: justiça, sistema judicial, prisões, crimes não explicados, homicídios, sequestros, fraudes, corrupção, heranças contestadas, disputas por terras e por aí vai. Há as personagens – policiais, advogados, promotores, juízes, partes, criminosos e testemunhas – em torno das quais pode sempre girar uma boa estória. E, por fim, há a dramaticidade que o mundo do direito, sobretudo aquilo que se passa teatralmente em um tribunal, pode emprestar à ficção.
Naturalmente, é impossível listar aqui todas as obras literárias que podem ser classificadas como “ficção jurídica”. Sendo uma das relações mais fecundas para a arte ocidental – essa da literatura com o direito –, a variedade nessas obras assim potencialmente classificadas, escritas com diferentes intenções e em circunstâncias culturais diversas, é simplesmente enorme. E o número delas, que cresce a cada dia, desde a Bíblia contando o caso de Caim e Abel até os romances mais contemporâneos de gente como Scott Turow (1949-) ou John Grisham (1955-), é quase infinito.
Mas há muitas tentativas de direcionar – e, por consequência, otimizar – a leitura dessa ficção jurídica, promovendo livros, frequentemente obras-primas da literatura universal, que possam ser agradáveis e úteis para o operador do direito.
Eu mesmo tenho aqui, vez por outra, escrito sobre autores e obras da literatura relacionadas ao direito, quase fazendo o papel daquilo que não sou: um crítico literário. De cabeça, recordo-me de ter escrito sobre autores – e, em especial, sobre suas ficções jurídicas – como William Shakespeare (1564-1616), Christopher Marlowe (1564-1593), Victor Hugo (1802-1885), Benjamin Disraeli (1804-1881), Edgar Allan Poe (1809-1849), William Thackeray (1811-1863), Charles Dickens (1812-1870), Wilkie Collins (1824-1889), Émile Zola (1840-1902), Guy de Maupassant (1850-1893), Liev Tolstoi (1824-1910), Thomas Hardy (1840-1928), Robert Louis Stevenson (1850-1894), Oscar Wilde (1854-1900), Arthur Conan Doyle (1859-1930), G. K. Chesterton (1874-1936), George Orwell (1903-1950), Raymond Chandler (1888-1959), Dashiell Hammett (1894-1961), Erle Stanley Gardner (1887-1970), Georges Simenon (1903-1989), Graham Greene (1904-1991), Ian Fleming (1908-1964), Harper Lee (1926-2016), P. D. James (1920-2014), Colin Dexter (1930-2017), Gore Vidal (1925-2012), Umberto Eco (1932-2016), John Le Carré (1931-), Susan Hill (1942-), Hilary Mantel (1952-), John Grisham (1955-), Jo Nesbo (1960-) e tantos outros mais. Todos esses grandes escritores, em menor ou maior grau, escreveram sobre o direito nas suas literaturas. Pelo menos foi o que eu procurei mostrar aqui em muitas de minhas crônicas, boa parte delas compiladas na trilogia “Ensaios ingleses” (2011), “Retratos ingleses” (2012) e “Códigos ingleses” (2013), para a qual vos remeto, caro leitor, se você não quiser ter o trabalho de procurar por meus textos diretamente no sítio da Tribuna do Norte.
Existem, claro, as listas de obras de “ficção jurídica”. Afinal, adoramos elas – as tais “listas” –, hoje talvez mais que nunca.
Uma delas, que achei bem objetiva e interessante, já que mostra temática, obra e autor, foi produzida por André Karam Trindade e Roberta Magalhães Gubert (no texto “Direito e literatura: aproximações e perspectivas para se repensar o direito”, que faz parte do livro “Direito & literatura: reflexões teóricas”, publicado pela Livraria do Advogado Editora em 2008), embora reconhecendo os próprios autores a impossibilidade de qualquer completude. Eis a dita cuja: “Os exemplos, contudo, são intermináveis: a negociação da lei e a metáfora da aliança ou do contrato social (Êxodo, do Antigo Testamento), o problema da legitimidade do direito (Antígona, de Sófocles), a relação entre vingança e justiça (Oréstia, de Ésquilo), a secularização frente aos critérios morais de classificação dos crimes e punições que lhes são correspondentes (A divina comédia, de Alighieri), a obrigatoriedade de aplicação da lei penal (Medida por medida, de Shakespeare), o problema da interpretação jurídica (O mercador de Veneza, de Shakespeare), a busca de uma justiça idealizada e as adversidades inerentes à realidade (Dom Quixote de la Mancha, de Cervantes), o indivíduo e a fonte de direitos a ele inerente (Robinson Crusoé, de Defoe, e Fausto, de Goethe), as falácias da argumentação jurídica (As viagens de Gulliver, de Swift), as implicações da anistia (O leitor, de Schlink), os efeitos perversos que subjazem nas leis mais bem-intencionadas (O contrato de casamento e A interdição, de Balzac), a complexidade psicológica da culpa (Crime e castigo, de Dostoievski), as descobertas e os avanços da criminologia (A ressurreição, de Tolsoi), a incoerência das formas e conteúdos que o sistema jurídico estabelece (O processo, de Kafka), o processo de submissão dos indivíduos a partir do controle social exercido pelo regime totalitário (1984, de Orwell, e Admirável mundo novo, de Huxley), o absurdo do desprezo legal pela singularidade e subjetividade (O estrangeiro, de Camus), a Lei como instrumento de interdição (O senhor das moscas, de Golding), a questão do adultério e da construção da verdade (Dom Casmurro, de Machado de Assis), a loucura e o tratamento jurídico a ela dispensado (O alienista, de Machado de Assis), os dilemas da democracia e o papel do Estado (Ensaio sobre a lucidez, de Saramago), o caos e a barbárie num mundo sem direito (Ensaio sobre a cegueira, de Saramago), o controle social e o poder ideológico exercido pelas ditaduras (A festa do bode, de Llosa), a decadência dos valores e seus reflexos na ordem jurídica (O homem sem qualidades, de Musil), a necessidade de humanização do sistema penal (Os miseráveis, de Victor Hugo), os dilemas do casamento frente aos interesses hereditários (Orgulho e preconceito, de Austen), o problema das presunções normativas (Oliwer Twist, de Dickens), entre outros tantos”.
E há a mais famosa dessas listas, elaborada por John Henry Wigmore (1863-1943) já no distante ano de 1900 (e, sucessivamente, em 1908 e 1922, pelo menos), sob o título “A List of Legal Novels”, que é considerada o pontapé inicial daquilo que estamos fazendo aqui, misturando “direito e literatura”, mais especificamente falando do “direito na literatura”.
Bom, mas sobre Wigmore e sua lista, remeto vocês aos meus artigos “O precursor” e “A lista”. Primeiro, para não repetir tudo aqui. E, segundo, para fazer mais alguma propaganda dos meus riscados.
Marcelo Alves Dias de Souza
Procurador Regional da República
Doutor em Direito (PhD in Law) pelo King’s College London – KCL
Mestre em Direito pela PUC/SP

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