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29/03/2018


   
Marcelo Alves


Os três direitos 

Desde os tempos da universidade, o estudante de direito ouve falar do direito romano, pois nele, sem dúvida, está a origem da nossa tradição jurídica, apelidada, não por mera coincidência, de romano-germânica. Mas esse falar, pelo menos nos cursos jurídicos de hoje, é quase sempre superficial. Uma pena. 

Uma das coisas que nunca se diz, por exemplo, é que esse direito (o romano), sob o ponto de vista histórico e de conteúdo, passou por fases bem distintas, sendo possível distinguir pelos menos “três direitos romanos”: o “clássico”, o “vulgar” e o “bizantino”. 

Segundo os especialistas no tema, o direito romano dito “clássico” conheceu o seu apogeu entre os séculos I a.C. e III d.C., quando o Império estendeu-se por toda Europa meridional, chegando ao que hoje é o norte da França (à época, a Gália) e ao sul da Grã-Bretanha. Para o oriente, a dominação romana passava pelos Bálcãs e pela Grécia, indo até a chamada Ásia Menor. Isso sem falar nas suas províncias no norte da África. 

Como informa António Manuel Hespanha, em “Panorama histórico da cultura jurídica europeia” (Publicações Europa-América, 1998): “Na base de poucas leis – desde a arcaica Lei das XII Tábuas (meados do século V a.C.) até às leis votadas nos comícios no último período da República (séculos I e II a.C.) – e das acções (legis actiones, acções da lei) que elas concediam para garantir certas pretensões jurídicas, o pretor, magistrado encarregado de administrar a justiça nas causas civis, desenvolvera um sistema mais completo e mais maleável de acções (actiones praetoriae), baseado na averiguação das circunstâncias específicas de cada caso típico e na imaginação como um meio judicial de lhes dar uma solução adequada”. Assim, nessa empreitada para atualizar um arcabouço jurídico arcaico (o “ius civile”), fazendo uso dos seus poderes de magistrados e das “actiones praetoriae” – fórmulas específicas para cada situação, que verificam e valorizam os fatos do caso, apontando sua solução –, os pretores criaram um direito muito sofisticado e afinado com a justiça de cada caso concreto. E isso explica, no que toca à doutrina, “o desenvolvimento de uma enorme produção literária de juristas, treinados na prática de aconselhar as partes e o próprio pretor, que averiguam e discutem a solução mais adequada para resolver casos reais e hipotéticos”. De 130 a.C. a 230 d.C., aproximadamente, foram produzidas muitas milhares de páginas de resoluções de questões, de respostas a consultas, de opiniões e de comentários. Um período fulgurante, de fato, para o direito romano. 

Mas a coisa não se dava do mesmo modo fora de Roma (a cidade imperial), sobretudo nas regiões/províncias de culturas mais específicas (como a Grécia ou o Egito) ou menos romanizadas (como boa parte da Germânia). Nessas paragens, afora o direito romano, tinham também lugar – de modo predominante, corriqueiramente – outras regras ou usos locais de realização do direito. Ademais, no século III d.C., principia-se a crise do Império Romano do Ocidente, que vem desaguar, como nós sabemos, com a sua queda no ano 476. Esse panorama naturalmente também se reflete no direito romano. Temos aí o surgimento de um “segundo” direito romano, apelidado de “vulgar”. Como registra o mesmo António Manuel Hespanha: “A crise do Império Romano, a partir do século III d.C., e a ulterior queda do Império do Ocidente (em 476) põem em crise este saber jurídico, cujo rigor exigia uma grande formação linguística, cultural e jurídica, e cujo casuísmo impedia uma produtividade massiva. (…). De um saber de uma elite cultivada numa longa tradição intelectual passou para uma técnica burocrática de aplicação, mais ou menos mecânica, de ordens do poder. Ganha em generalidade e automatismo aquilo que se perde em fineza casuística e apuramento intelectual. Dizer o direito torna-se uma actividade menos exigente e mais simplificada, acessível mesmo aos leigos. O saber jurídico perde o rigor e a profundidade de análise. O direito vulgariza-se. Essa vulgarização é mais pronunciada nas províncias, em virtude das corruptelas provocadas pela influência dos direitos locais. Aí, forma-se um direito romano vulgar (Vulgarrecht), que está para o direito romano clássico como as línguas novilatinas ou românicas estão para o latim”. 

Por fim, é nesse panorama de acentuada disfunção jurídica que surge a grande empreitada do imperador Justiniano (483-565) – imperador romano (bizantino ou do “Oriente”) de 527 a 565, sobre o qual já escrevi aqui em “O grande codificador” –, consolidando o “terceiro” direito romano, apelidado de “bizantino”. À época de Justiniano, o direito romano era um colossal emaranhado de provisões, composto de “constituições”, éditos, decisões judiciais etc., que datavam de várias eras (com diferenças de séculos entre elas). O seu “Corpus Iuris Civilis”, gerado em cinco anos, de 529 a 534, veio exatamente para pôr um fim nisso. 

Como outrora expliquei aqui, o “Corpus Iuris Civilis” era (ou é) composto de quatro partes: (i) o “Código” (de 534), que reuniu em 12 livros, subdivididos em títulos e matérias, uma imensidão de “constituições” (provisões legais romanas), que datavam desde o século I até o período de Justiniano; (ii) o magnífico “Digesto” (de 533), obra coordenada pelo grande jurista e questor Triboniano (500-547), salvando para a posteridade parte dos escritos dos maiores juristas da Roma antiga, certamente o fruto mais doce dessa grande civilização; (iii) as “Novelas”, uma coletânea suplementar de 168 “constituições” produzidas por Justiniano nos anos do seu governo posteriores à edição do “Código”; (iv) e as “Instituições”, obra que, inspirada nas “Instituições” de Gaio (130-180), destila os princípios emanados dos outros três documentos. 

Justiniano pretendeu que o seu “Corpus Iuris Civilis” se tornasse a única fonte do direito no Império. À época, entretanto, o “Corpus Iuris Civilis” teve mais sucesso no Oriente que no Ocidente. No Ocidente, dada a conhecida invasão dos bárbaros, sua influência (e do direito romano como um todo) foi menor. E assim foi por vários séculos. 

Todavia, ele, o direito romano, precisamente na forma do “Corpus Iuris Civilis” de Justiniano, voltou um dia à cena na Europa. E com todo esplendor. Foi no século XII, como fonte de referência do chamado “direito comum”, alastrando-se essa influência até os nossos dias. Mas isso, caro leitor, é tema para os nossos próximos artigos. 


Marcelo Alves Dias de Souza
Procurador Regional da República
Doutor em Direito (PhD in Law) pelo King’s College London – KCL
Mestre em Direito pela PUC/SP

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