Sobre Edward Coke
Não faz muito tempo, escrevi aqui sobre William Blackstone (1723-1780),
o autor dos renomados “Commentaries on the Law of England”, por muitos
considerado o grande compilador e sistematizador do “common law” inglês.
Na ocasião, lembrei que Blackstone, embora celebrado no ambiente do
“common law” (tanto na Inglaterra como nos Estados Unidos da América), é
pouco conhecido entre os juristas da tradição do “civil law”. Hoje,
seguindo essa toada de tentar divulgar entre nós o direito
anglo-americano, vou escrever sobre o outro grande jurista inglês: Sir
Edward Coke (1552-1634).
Nascido na pequenina vila de Mileham,
no condado de Norfolk, Edward Coke, após a realização do ensino
fundamental e médio de sua época, teve consolidada sua formação,
direcionada ao estudo do Direito, no Trinity College da Universidade de
Cambridge. Talentoso, sua ascensão foi meteórica. Elegeu-se Membro do
Parlamento inglês em 1589 e, já em 1592, “Speaker of the House” (algo
semelhante ao nosso Presidente da Câmara dos Deputados”). Um ano mais
tarde foi nomeado “Attorney General of England” (cargo semelhante ao
nosso Procurador-Geral da República), tendo se mostrado competente
acusador em casos importantíssimos, tais como o da acusação de traição
de Sir Walter Raleigh (1552-1618) e dos conspiradores da famosa
“Gunpowder Plot” (a “Conspiração da Pólvora”, de 1605). Coke foi ainda
“Chief Justice” (leia-se, para facilitar, Presidente) de dois
importantíssimos tribunais ingleses da época: a “Court of Commom Pleas”
(1606) e o “King's Bench” (1613). E esses foram apenas alguns dos cargos
exercidos por esse brilhante advogado e político. Na verdade, Coke foi,
certamente, o maior jurista inglês durante os reinados de Elizabeth I
(de 1558 a 1603) e James I (de 1603 a 1625).
Edward Coke foi
sobretudo um excepcional constitucionalista em um país de Constituição
não escrita, no qual não há, pelo menos assim classicamente se diz,
controle jurisdicional de constitucionalidade das leis. Foi um defensor
da Constituição britânica mesmo em oposição às vontades do Monarca e do
Parlamento. Como juiz, sua decisão no caso Thomas Bonham v College of
Physicians 8 Co. Rep. 114 (Court of Common Pleas [1610]), conhecido como
“Dr. Bonham's Case”, é famosíssima. Em síntese, ali é afirmado que o
“common law” (leia-se: o direito primordial inglês), através de suas
cortes, deve “controlar” os atos do Parlamento (leia-se: as leis) e, em
sendo eles desarrazoados ou repugnantes (“repugnant”), declará-los nulos
(“void”). Muito se discute sobre a real intenção de Coke com essa
decisão, mas, sem dúvida, aí está uma semente daquilo que hoje chamamos
de controle jurisdicional de constitucional das leis.
É verdade
que, na Inglaterra, como sabemos, acabou por prevalecer o Princípio da
Supremacia do Parlamento, imaginado (ou, pelo menos, enfaticamente
defendido) pelo já citado William Blackstone, mais de um século depois,
em seus “Commentaries on the Law of England”. Entretanto, ironicamente, a
tese de Coke em “Dr. Bonham's Case” foi exportada para os Estados
Unidos da América, onde ganhou o aplauso dos “Founding Fathers” daquela
imensa República, sobretudo de John Marshall (1755-1835), o mais célebre
dos “Chief Justices” da “US Supreme Court”. Alguns chegam a afirmar que
o “Dr. Bonham's Case” foi a inspiração, até pela coincidência no uso
das expressões “repugnant” e “void”, para a decisão de Marshall em
Marbury v. Madison 5 US 137, 1 Cranch 137, 2 L.Ed. 60 (1803), caso no
qual, segundo convencionado, está a origem do “judicial review of the
constitutionality of the legislation” (que chamamos de controle
jurisdicional de constitucionalidade das leis - modelo difuso).
Como jurista, Edward Coke foi, também, sobretudo quando já mais velho,
um grande legislador. Basta lembrar que ele foi o idealizador, como
presidente da comissão criada na “House of Commons” especialmente para
sua elaboração, da “Petition of Right” (1628), um dos mais importantes
diplomas legais do constitucionalismo inglês ao lado da “Magna Carta”
(1215) e do “Bill of Rights” (1689). A influência da “Petition of
Right”, aliás, transborda as fronteiras do Reino Unido, tendo servido de
inspiração, como amplamente reconhecido, para outros monumentos legais,
como a Constituição americana (1787) e o seu “Bill of Rights” (1789) e a
Declaração Universal dos Direitos Homem das Nações Unidas (1948).
E se não bastasse isso, Edward Coke também é autor de obras
“doutrinarias” fundamentais para a compreensão do “common law” com um
todo. Suas duas obras mais importantes - os 13 volumes de seus “Law
Reports”, conhecidos como “Coke's Reports” e os seus “Institutes of the
Lawes of England” em 4 volumes (1628-1644) - foram e são ainda hoje
estudados e citados tanto na Inglaterra como nos EUA. Para se ter uma
ideia, durante décadas, essas duas obras foram as principais fontes de
conhecimento do “common law” para os colonos e os primeiros republicanos
da América do Norte.
É verdade que Edward Coke também passou
por maus momentos. Foi removido de suas funções judiciais em 1620.
Chegou a ser preso. Esse é preço que se paga por defender a Constituição
contra o Parlamento e até mesmo contra o Rei de plantão. Mas ele
retornou à cena política nos seus anos de madureza. E, desta feita, como
já visto, com a “petição dos direitos do cidadão” na mão.
Marcelo Alves Dias de Souza
Procurador Regional da República
Doutor em Direito (PhD in Law) pelo King’s College London – KCL
Mestre em Direito pela PUC/SP
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