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19/02/2014

Lembranças de J. da Penha

João Felipe da Trindade (jfhipotenusa@gmail.com)
 
Professor da UFRN, membro do IHGRN e do INRG
Hoje, transcrevo para cá um artigo postado no Diário de Notícias, no dia 21 de abril de 1954, pelo escritor cearense, membro da Academia Brasileira de Letras, R. Magalhães Júnior, que juntou suas lembranças às do escritor norte-rio-grandense,  Jaime Adour da Câmara. O título desse artigo é “Lembranças de J. da Penha”. O capitão J. da Penha, natural de Angicos, Rio Grande do Norte, foi assassinado no Ceará, no dia 22 de fevereiro de 1914, um século atrás. Segue o artigo.

Numa interessante conferência, improvisada à base de reminiscências de sua infância e de sua juventude no Rio Grande do Norte, o escritor Jaime Adour da Câmara lembrou, há poucos dias, a figura do capitão J. da Penha, desaparecido há precisamente quarenta anos. Pintou o autor de “Oropa, França e Bahia, com aquela fluência e precisão verbal que todos lhe reconhecem, um excelente retrato daquele oficial, de figura imponente, barbas frondosas e grande coragem, de cujos lábios ouvira, pela primeira vez, em comícios, a palavra “povo”. Não em referências indiretas, mas como um apelativo, como um chamamento, uma convocação. Disse o conferencista que ele proferira a palavra: “Povo!”, seguida de uma exclamação, apoiando-se na primeira sílaba, acentuada, porém breve, de tal sorte que parecia um tiro, um estampido. E que poder havia naquela palavra, que força magnética, que atração! Por que? Porque era uma palavra nova, alguma coisa de estranho, de inusitado, no vocabulário político da época. O capitão J. da Penha, diante daqueles que o cercavam, estudantes, operários, funcionários, meros curiosos atraídos eventualmente pela aglomeração que se formara, não distinguia classes ou particularizava grupos sociais. Enfeixava-os todos naquela palavra mágica, naquele tiro de fuzil saído de sua boca rodeada de espessas e negras barbaças:”Povo”.

Classificou-o Jaime Adour da Câmara de “mistagogo” e reconhece que muitas das coisas impressionantes que J. da Penha então dizia eram frases feitas, lugares comuns da oratória de comício, vulgaridades de almanaque positivista. Contudo, confessa que foi J. da Penha, com sua oratória inflamada, quem lhe transmitiu a noção de que era povo. Dele ouvira também uma palavra estranha e jamais ouvida: desoligarquização. Sustentava J. da Penha a necessidade de promover-se a desoligarquização dos Estados para que pudesse reinar no Brasil um clima de liberdade política. Na verdade, havia frondosas oligarquias de Norte a Sul do país. Não é preciso lembrar todas elas. Basta citar o longo e desafiador domínio do Sr. Borges de Medeiros no Rio Grande do Sul e a prolongada permanência dos Acioli no governo do Ceará. O desoligarquizador J. da Penha, que conseguiu levantar uma parte da população do Rio Grande do Norte, com os seus comícios e suas estranhas palavras, tão diferentes das que falavam os homens que detinham o poder, cometeu o erro supremo na escolha do candidato que deveria enfrentar  a oligarquia local. Foi buscar, não um filho da terra, não um homem que tivesse aparecido ao seu lado nos comícios, não alguém que tivesse raízes no Estado ou nele vivesse, mas um jovem e ausente oficial do Exército, o tenente Leônidas Hermes da Fonseca. Podia ter o tenente muito merecimento pessoal e condições para se transformar num grande administrador. Era, porém, o filho do presidente da República, marechal Hermes da Fonseca, e tal escolha fazia supor que J. da Penha, queria substituir uma oligarquia de âmbito estadual por uma oligarquia de âmbito nacional. Fraco o movimento a que se dedicara, o capitão J. da Penha, adotara uma tática funesta: a de tentar obter o apoio ou a pressão do governo central para o seu candidato, sem lembrar-se de que tal pressão seria tão condenável quanto a da máquina estadual em favor do candidato da oligarquia. O resultado foi a derrota do movimento de J. da Penha. As lembranças desfiadas pelo conferencista Jaime Adour da Câmara nos fazem refletir sobre os atos dos que querem preservar a democracia, baseada na vida dos partidos, com a escolha de candidatos fora dos partidos, ou seja, com a negação destes e de suas finalidades. Não parece a singularíssima desoligarquização de J. da Penha?

Ao desastre do bravo capitão no Rio Grande do Norte seguiu-se o seu desastre final no Ceará. Esse Estado fora há pouco, desoligarquizado: tinham sido alijados os Acióli e a estes se seguira o governo de um militar, o então coronel Marcos Franco Rabelo. Para reagir contra os restos da oligarquia, tinham entendido que só um homem forte. Mas Franco Rabelo, em vez de forte, era fraco. Contra ele, ergue-se o padre Cícero, com sua jagunçada, e a figura sinistra de Floro Bartolomeu, eminência parda do velho fanático. Criminosos de cinco ou seis Estados formam nas forças irregulares de Juazeiro, bem armadas e bem municiadas. Batidas as forças governistas em alguns encontros, J. da Penha se apresenta no Ceará e aceita o comando das mesmas. Marchou para o interior e caiu numa cilada perto de Iguatu. 

Dias depois, chegava a Fortaleza um vagão ferroviário conduzindo o cadáver de J. da Penha. Ainda me lembro da emoção daquele instante: parecia que a cidade inteira tomava luto. Assumiu J. da Penha o relevo de um herói popular. Os cantadores o glorificavam em seus versos.

Lembro-me de uns que diziam;
Deus te dê a salvação
Boca que nunca mentiu
Braço de herói destemido
Mão forte que resistiu

Assim acabou o homem evocado há dias pelo conferencista Jaime Adour da Câmara. Ás lembranças dele junto as minhas. Naquele instante, parecia que o Brasil estava acabando e que o nome de J. da Penha passaria à história como o de um herói. Mas, agora, a quarenta anos de distância, quantos ainda se lembrarão dele?

No próximo artigo, neste jornal, escreveremos sobre os ascendentes do capitão J. da Penha.
Capitão J. da Penha

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