A TRAGÉDIA DA RUA DAS FLORES
Por: Gileno Guanabara, advogado
A motivação da presente crônica não trata da viela que se chamou Rua das Flores nas cercanias da cidade do Açu, a qual lhe foi dado o nome de “Rua Prefeito Manoel Pessoa Montenegro”. Nela estarão sempre presentes os sobrados, os moradores ilustres e os seus mistérios. Permanece o espírito dos lá nascidos, imorredouras lembranças dos primeiros anos de vida. É como se o quarto onde Machadinho viveu a sua segunda infância estivesse “intacto, suspenso no ar”, no dizer do poeta. Saibam os barnabés que “navegar é preciso” e o nome da Rua das Flores em Açu persiste. Nela, como em qualquer outra via de casas calcetadas, em cor de cal e de números desiguais, a vida corre fagueira e nos comoverá sempre a sua doce lembrança.
Os pensadores no recôndito de suas elucubrações elegem, anotam e legam para o futuro a integralidade das ruas, seus encantos, glórias e emoções vividas. Ou se reportam a outra face, a parte medonha dos desconsolos, das histórias do nunca e dos dramas ocorrentes. São marcas indeléveis da existência humana. Operetas felizes ou acontecências trágicas que se passam nas calçadas ou nos rios de quaisquer cidades, tendo a parcimônia de nos tornar iguais na alegria ou no padecimento. A felicidade é mais fácil de nos arrebatar, às vezes por razões que a própria razão desconhece. Os registros soçobram incólumes em algum lugar, contendo a lavratura temporal de ruas, de personagens ou de acontecimentos raros. Deles a posteridade não tomaria conhecimento, caso não fossem descobertos a tempo.
Luis de Camões atingido em combate ficou cego de um olho e sobreviveu a um naufrágio. Com uma das mãos amparava o seu tratado, o registro da glória e conquistas lusitanas. Com a outra mão aplacava o mar indômito. A epopeia que relatou em Os Lusíadas assegurou ao mundo conhecer o tempo infinitamente glorioso dos portugueses. Camões sabia dos rumos tomados desde a Torre no Rio Tejo, fortaleza imponente com suas canhoneiras e cordames em pedra, traços mouriscos, orientais e góticos, de onde se aventuravam os marinheiros e as caravanas que seguiam em busca da pecúnia e da riqueza. Camões morreu pobre de Jó.
Ou a façanha do genovês Cristovam Colombo que se lançou ao mar bravio, vencendo resistências no propósito de fazer a guerra do comércio contra os ímpios. Ao final descobriu o Novo Mundo, sem que se lhe prestassem a merecida justiça. A América, na nomenclatura dos mapas que passaram a retratar a forma convexa dos oceanos, até então desconhecido pelas ciências, consagrou a vida e obra de outro navegador, Américo Vespúcio.
Miguel de Cervantes Saavedra nos legou a obra mais universal das que o gênio humano produziu. Nela estão agasalhados os dois polos que impulsionam o ser humano: a fé e a razão, como lhe referiu Unamuno ao se reportar a Don Quixote. A cidadela natal de Cervantes não foi Sevilha, nem Madrid, nem Córdova, mas uma quinta sem rua, de nome conhecido “Alcalá de Henares”. Aventureiro e insatisfeito com a própria vida que levava, alistou-se nos regimentos espanhóis e participou da batalha de Lepanto, na qual foi ferido e teve inválida uma das mãos. Na viagem de regresso a Espanha foi aprisionado por piratas berberes. A vida de prisioneiro descreveu em duas obras: “Los Baños de Argel” e “Los tratos de Argel”. A vida mísera, sem recursos, mesmo assim teve forças para publicar “La Galetea”. Enveredou pela dramaturgia, pelas novelas, pela poesia.
Porém, a obra monumental de Cervantes é “Don Quixote”, a criação mais humanamente dramática que se imaginou. Eis a luta diuturna dada pelo cavaleiro louco, suas peripécias e as fatalidades da vida, apontando contra a psicose intolerante e a decadência do absolutismo castelhano. Em resumo: a tragédia pessoal de quem sobrepunha acima das misérias terrenas a sua fé inabalável. Faleceu em plena atividade de escritor, pobre e sem reconhecimentos, que só lhe foram prestados tempos depois.
Finalmente, A Tragédia da Rua das Flores que titula o manuscrito deixado por Eça de Queiroz, inédito e inacabado, dado a conhecimento público, passados cem anos depois de sua morte. O estudo que ora se faz e a edição preliminar (Obras de Eça de Queiroz, - Livros do Brasil - Lisboa, novembro/2003) preservam as imperfeições, incorreções, repetições, o ritmo alucinante da caligrafia original, as anotações marginais, ou os cortes esboçados pelo autor.
A ocorrência do incesto é recorrente em Eça, com força desde O Primo Basílio, ou em Os Maias. No entanto, o pecado vê-se sublimado em o drama situar-se exatamente na Rua das Flores. Em verdade, caso não se configurasse como tragédia, embora com o mesmo tema, resumir-se-ia a uma proposta de comédia burlesca, simplesmente. A Tragédia da Rua das Flores, pois, consagra personagens e intrigas de época presentes em outras obras clássicas do autor. No entanto, cada rascunho marginal e até as censuras sobrepostas de próprio punho, dão azo a um Eça já equidistante do rigor das motivações do enredo original.
Procederam-se consultas através de fotocópias, a fim de se esclarecer as dúvidas e as repetições, já que não são mais viventes os familiares de Eça, ou quem intimidade tivera com os seus escritos. Superados os questionamentos, oxalá no futuro possa se ter a edição definitiva e o alcance da última obra de Eça de Queiroz.
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