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31/07/2021
Cuidando da língua materna
Padre João Medeiros Filho
Monsenhor Landim foi nosso professor de português, no Seminário de São Pedro (Natal/RN). Procurava incutir nos alunos amor e zelo pelo idioma pátrio. Explicava-nos com nuances as peculiaridades gramaticais, filológicas e semânticas. Chamava a atenção para os modismos e neologismos (semânticos, lexicais e sintáticos), que fazem parte do processo da criação de uma palavra ou expressão, fruto do comportamento da linguagem humana. Os vocábulos gerados podem provir do português ou de outros idiomas. Os modismos, por sua vez, caracterizam-se por expressões, frases e palavras, cujo emprego é mais recorrente em certos períodos e, depois parcial ou totalmente, esquecidos. Inegavelmente, a língua é dinâmica, adaptando-se aos tempos e às circunstâncias. No entanto, há que obedecer a regras e padrões linguísticos. Os filólogos acatam o uso de neologismos, quando inexistem termos com significado idêntico ou se os dicionarizados não atendem às necessidades comunicacionais. Em geral, busca-se respaldo nos latinistas e etimólogos. Isso contribuiu muito para aumentar nosso gosto e interesse pelo latim.
Cabe registrar que o Rio Grande do Norte foi celeiro de grandes conhecedores da Língua do Lácio. Primeiramente, vale destacar Cônego Estevão Dantas, autor de vários poemas, lápides e dísticos, bem como tradutor de documentos latinos eclesiásticos e civis. Segundo Cônego Jorge O’Grady, o mais talentoso foi Padre Luiz Monte. A ele deve-se o lema de nossa Academia Norte-rio-grandense de Letras: “Ad lucem versus” (voltados para a luz). Em seguida, Dom José Adelino, um dos responsáveis pela revisão linguística dos textos oficiais do Concílio Vaticano II. Monsenhor Emerson Negreiros escreveu uma História do Brasil, toda em primorosos versos hexâmetros, num puro e erudito latim. Antes de sua morte, chegamos a ver vários cadernos manuscritos, contendo o longo e belo trabalho.
No Seminário, fomos alunos de latim de Monsenhor Alair Vilar, ao qual recorria frequentemente o mestre Cascudo em suas dúvidas sobre as Odes de Horácio e outros autores. Como tarefa escolar acompanhávamos nosso docente na tradução dos textos. Certa feita, o grande folclorista potiguar apresentou uma frase atribuída a Horácio: “unguibus albam maculam mendacium facit” (A mentira deixa uma mancha branca na unha), que possivelmente serviu de base para a lenda, analisada e comentada pelo renomado pesquisador, contada por nossas mães e avós, desestimulando as mentiras infantis. Os dermatologistas poderão explicar os tipos de leuconíquia.
O que se pretende com este atalho? Não somos um purista da língua. Este artigo não é uma crítica nem reprimenda, trata-se de um desabafo, diante de agressões sofridas pelo nosso idioma. Procede o dito: “como faz falta o latim!” É preciso maior cuidado com nosso patrimônio cultural, do qual faz parte a língua. Somos cotidianos aprendizes. Entretanto, faz cócegas em nossos ouvidos, quando ecoam certos neologismos, modismos e impropriedades. À guisa de exemplo, citamos o emprego generalizado de “feminicídio”, em oposição a homicídio. Este não significa simplesmente o assassinato de um varão, mas de qualquer ser humano. A palavra latina “homo” não é especificamente masculinidade, mas ser humano (daí humanidade). Etimologicamente entendemos feminicídio como um termo impróprio, pois seria a destruição do feminino e não de uma fêmea. Seguindo-se o mesmo raciocínio e idêntica proposta, ter-se-ia masculinicídio: a morte do masculino. Segundo os lexicógrafos e dicionaristas, matar uma mulher é mulhericídio (variante de muliericídio, do latim “mulier”). Assassinar a esposa é uxoricídio (de “uxor”, correspondente latino de cônjuge) e o marido ou varão, virícidio (da palavra latina “vir”). Assim, feminicídio não seria o termo próprio para indicar assassinato de uma mulher. Hoje é usado indiscriminadamente por muitos em detrimento do termo homicídio. Os etimólogos e filólogos lançam a pergunta: vigendo a ideologia do gênero, como seriam as denominações? O apóstolo Paulo aconselhava os cristãos de Corinto: “Não vos deixeis seduzir, pois as palavras inadequadas podem vos corromper.” (1Cor 15, 33). Homicídio é o termo apropriado, a não ser que se pretenda qualificar o tipo de assassinato. A motivação para o emprego de feminicídio, com o sentido ora adotado e propagado por alguns, atenta contra a semântica. Isaías já advertia: “Os que te guiam podem te enganar e destruir o caminho dos teus passos.” (Is 3, 12).
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