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09/07/2019


Decorativas e descritivas
No artigo da semana passada, eu lembrei que a arte, frequentemente, imita a vida. E tem sido assim com esse pedacinho da vida que é o direito. Há uma infinidade de temas jurídicos, sobretudo de direito criminal, de que a arte faz uso: justiça, sistema judicial, prisões, crimes não explicados, homicídios, sequestros, fraudes, corrupção e por aí vai. Há as personagens – policiais, advogados, promotores, juízes, partes, criminosos e testemunhas – em torno das quais pode sempre girar uma boa estória. E, por fim, há a dramaticidade que o mundo do direito criminal, representado nas ruas ou perante um tribunal do juri, pode emprestar à ficção.
Entretanto, se a arte nunca está muito distante da realidade, parece haver uma certa distinção – a melhor palavra talvez fosse “desproporção” – entre o que se dá com as artes decorativas (e falo aqui da pintura e da escultura) e as artes descritivas (sobretudo o romance e o teatro). Enrico Ferri (1856-1929), em seu “Os criminosos na arte e na literatura” (Ricardo Lenz Editor, 2001), passando em revista o mundo artístico dos “tipos criminosos”, categoricamente afirma: “é sua maior frequência nas artes descritivas – literatura ou drama – do que nas artes decorativas – pintura e escultura”. Sendo que, “em cem quadros (e a proporção é ainda menor para as estátuas), não há mais do que um ou dois tendo um criminoso por assunto principal ou por figura de segundo plano; enquanto que, em cem dramas ou comédias (a proporção é ainda maior que a proporção para os romances), não há menos de noventa, cujo enredo não contenha um ou mais crimes”. E lembra que, um quadro como “O assassino perseguido pela vingança da justiça”, de Proudhon, em exposição do Louvre, é algo bem raro.
Ferri aponta duas razões para tanto.
Em primeiro lugar – e aqui repito as suas palavras um tanto poéticas –, “o pincel e o cinzel se recusam a imobilizar um ato tão repugnante como é o crime e que, por isso, nossos artistas, constrangidos a se curvarem ao gosto do público, ou ao menos àquele de seus clientes prováveis, escolhem os temas de quadros ou estátuas suscetíveis de agradar ao mundano, ao comercialmente enriquecido e à aristocrata de raça. Ora, a imagem do crime é banida dos boudoirs elegantes e das salas de refeição principescas onde ela poderia gelar os sorrisos na esgrima do amor e arruinar digestões já laboriosas”.
Em segundo lugar, afirma Ferri: “se a pintura e, com mais forte razão, a escultura evitam a figuração do criminoso, é que uma e outra, sobretudo a escultura por causa do número sempre restrito de corpos modeláveis, não podem imobilizar senão um momento da vida de uma ou de várias pessoas. A instantaneidade da expressão opõe-se à representação estética do crime. Porque, se ele nos interessa e nos revolta, é sobretudo pela descrição evolutiva e sugestiva dos diversos momentos psicológicos da premeditação, a qual todavia não é um sintoma infalível de perversidade maior, mas prova também, às vezes, uma resistência do senso moral entre a primeira ideia do crime e o seu epílogo sangrento ou fraudulento. Esta primeira ideia pode nascer repentinamente num clarão do pensar, depois, lentamente, invadir e ocupar toda uma consciência; ela pode também, sob a aparência de um desejo novo, provir do foco duvidoso de um instinto hereditário desenvolvido e morto por um meio propício. Ora, a análise do romance ou a síntese do drama – as artes descritivas enfim – podem, unicamente, mostrar-nos esta série de estados da alma. Eis porque os tipos criminais são mais raros nas artes decorativas”.
Tendo a concordar com Enrico Ferri. Mas não inteiramente.
Relembro aqui que Ferri, junto com Cesare Lombroso (1835-1909) e Raffaele Garofalo (1851-1934), é um dos três grandes da chamada Escola Positiva do Direito Penal. Ferri foi, inclusive, aluno de Lombroso.
Em razão disso, em sua análise da coisa (falo da presença dos tipos criminais nas artes decorativas), Ferri dá um grande destaque à ideia do criminoso nato, com seus traços fisionômicos característicos, da antropologia criminal lombrosiana. Para ele, os traços de fealdade descritos pelo seu professor, “verdades muito recentemente conquistadas pela ciência”, nunca escaparam à clarividência dos grandes pintores.
Segundo Ferri, “a propósito dos criminosos nas artes decorativas, podemos concluir com Lefort: – ‘Os artistas de todos os tempos deixaram-se guiar pela ideia de que a fealdade do corpo devia corresponder à fealdade da alma, e de que o criminoso devia ter uma fisionomia estranha, repugnante, inspirando desconfiança. Os pintores das escolas italiana, flamenga, espanhola e francesa chegaram a criar, empiricamente, um tipo cujos caracteres principais são: a face muito larga para um crânio geralmente pequeno, algumas vezes em forma de pão de açúcar (oxicefalia), ou muito desenvolvido na parte posterior (braquicefalia occipital). A fronte é fugidia, achatada, limitada em baixo pelos ss dos supercílios; os olhos, assimétricos, salientes e redondos; o olhar, fixo, duro ou vítreo; as faces, grossas, com zigomas enormes, fazendo desaparecer a saliência do nariz frequentemente achatado, arqueado (arqueado como o bico das aves de rapina) e torto para um dos lados. Os maxilares prognatas, os lábios grossos e revirados para fora, o queixo muito grande e quadrado. As orelhas em asa são mal feitas, pontiagudas em cima e com o lóbulo pouco destacado ou quadrado. Os cabelos são abundantes; não há sinal de barba’”.
Dizer que isso (de reconhecer a correção da tal teoria do criminoso nato) é baboseira pseudocientífica seria muito grosseiro de minha parte. Mas, definitivamente, nesse ponto, não concordo com o grande Ferri.
Afinal, nunca fui um lombrosiano. Nem quando aprendi um pouquinho de criminologia na querida Universidade Federal do Rio Grande do Norte.
Marcelo Alves Dias de Souza
Procurador Regional da República
Doutor em Direito (PhD in Law) pelo King’s College London – KCL
Mestre em Direito pela PUC/SP

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