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18/06/2019


A legitimidade das decisões judiciais (IV)

No artigo da semana passada, prometi encerrar esta minha série de artigos sobre a legitimidade das decisões judiciais tratando de dois pontos: a necessidade de que realmente fundamentemos as nossas decisões nas leis e na Constituição do país – e não naquilo que é a nossa convicção ou no que são os nossos pré-conceitos – e a questão final da aceitação popular propriamente dita das decisões judiciais.
Claro que não defendo a ideia, inspirada na lição de Montesquieu (1689-1755), de que o juiz não deve ser outra coisa senão a “boca que pronuncia as palavras da lei”. Isso seria a conduta de um mau juiz, não correspondendo aos fins do direito. E até acredito que uma neutralidade desse tipo seria mais aparente que real.
Na verdade – e isso já nos mostrou a turma do “realismo jurídico americano”, sobretudo Karl Llewellyn (1893-1962) e Jerome Frank (1889-1957) –, a decisão judicial é muito mais do que o resultado da simples aplicação de uma norma aos fatos do caso. Muito mais do que um silogismo, em que a premissa maior é a lei/norma, a menor é o fato e o corolário é a sentença. Primeiramente, a própria determinação, pelo juiz, de quais são e como são os fatos do caso acrescenta inúmeras variáveis a sua decisão final, assim como a interpretação da norma é algo muito mais complexo que uma simples releitura do seu texto, seguida de um processo analítico de subsunção. Além disso, os juízes decidem baseados numa variedade de fundamentos e apenas alguns deles são conscientes e analíticos. Alguns “fundamentos” da decisão judicial, que atuam previamente aos fundamentos conscientes e analíticos, são mais complexos e menos óbvios, extremamente influenciados pelos pré-conceitos do julgador.
Se isso parece fato – refiro-me ao que está por detrás do aparente silogismo –, o erro está em não se ter na lei ou nos precedentes, às vezes, nem minimamente, o correto freio/balizamento para a decisão judicial. O direito passa a ser simplesmente o que juízes e tribunais, individual e erraticamente, declaram e decidem.
Para suavizar essa dependência peculiar do juiz de si mesmo e de tudo o que compõe seu horizonte interpretativo pessoal, mecanismos e padrões de comportamento devem ser sempre pensados, criados e fomentados. Exigir o respeito aos precedentes. Dar maior dignidade à lei, tão amesquinhada nos nossos dias, é mais que fundamental.
Tenho até pensado, a partir de um texto que li faz muitos anos (“Uso do precedente no Código Civil da Luisiana”, de James L. Dennis, publicado na Revista de Direito Público – RDP, no ano de 1997), numa categorização das decisões judiciais levando em consideração a sua proximidade com a legislação (constitucional e infraconstitucional). Quanto maior a sua proximidade da lei, melhor. Se a decisão pode ser fundamentada estritamente numa norma ou dispositivo específico da legislação de regência, a isso deve-se dar preferência. Em segundo lugar, deve-se dar preferência a uma decisão baseada em outros dispositivos da lei que rege a matéria decidida (seja uma lei específica, seja um código). Em terceiro lugar, deve-se preferir a decisão que tenha fundamento em uma norma legal do sistema jurídico do país. E, em quarto lugar, somente na ausência de norma legal aplicável, é que se deve dar uma fundamentação principiológica, mais independente do direito legislado do país. Não tenho dúvida de que, quanto mais uma decisão judicial estiver constrita a uma norma legal específica, mais ela se coadunará com as diretrizes (ou vontade) do legislador. E, apesar de não ter ainda definido completamente essa minha categorização (estou pensando, ainda), tenho certeza de que o juiz brasileiro, como “rulemaker” provisório – e não como um igual ao legislador/“lawmaker” –, hoje mais do que nunca, deve ser incentivado a decidir em conformidade, o máximo possível, com a vontade ou diretrizes expressas do legislador (constitucional e infraconstitucional).
Definida essa premissa – de que as decisões judiciais devem se basear, no máximo grau possível, nas leis e na Constituição do país –, chego à questão da aceitação popular de tais decisões.
Não desconheço que a legitimidade das decisões judiciais está em alto grau relacionada à aceitação delas pela opinião pública. Há até quem simplesmente identifique uma coisa com a outra. Também já defendi aqui que a sociedade como um todo – além das partes, dos seus advogados e dos demais atores envolvidos na lide específica – é uma das destinatárias das motivações das decisões judiciais, podendo ela assim verificar se as decisões do Poder Judiciário são pautadas pelo direito ou se são fruto de arbítrio dos julgadores. E também reconheço que as decisões judiciais que ofendem o senso comum acabam, a longo prazo, não sobrevivendo ao tempo e à crítica geral.
Entretanto, se “a autoridade da Justiça é moral, sustenta-se pela moralidade das suas decisões”, como queria o nosso Rui Barbosa (1849-1923), se a “majestade dos tribunais assenta na estima pública”, como disse o mesmo Rui, penso que essa moralidade e essa estima têm de vir naturalmente, com o tempo e com o exemplo, e não como um fim em si mesmo.
Peguemos o exemplo da Suprema Corte dos Estados Unidos da América, sempre bem-vindo. Desde o caso Marbury v. Madison, de 1803, já citado aqui, a U.S. Supreme Court tem conquistado e consolidado o reconhecimento de suas decisões não só pelos demais Poderes da Federação, mas, sobretudo, pelo povo americano, que a vê como o derradeiro baluarte em defesa dos seus direitos fundamentais. Mas isso tem sido progressivamente. E naturalmente.
Por fim, essas observações nos trazem de volta à necessária complementaridade entre o Estado de Direito e a democracia. Se a democracia é o governo da maioria, o Estado de Direito consagra a supremacia da Constituição e das leis do país e o respeito aos direitos fundamentais. A regra da maioria ou da democracia só se legitima se respeitados, na forma da lei e da Constituição, mesmo em desfavor da turba, os direitos de todos, inclusive os das minorias.
Reitero: não se deve simplesmente decidir em conformidade com a opinião pública. Nem muito menos manipulá-la! Pelo contrário, a maior legitimidade das decisões judiciais virá naturalmente se houver a obediência a determinados valores (estabilidade, previsibilidade, igualdade e celeridade), o respeito a uma teoria de precedentes vinculantes e com a expressa fundamentação destas decisões na Constituição e nas leis do país, fornecendo-nos, assim, uma Justiça verdadeiramente legitima e consensual.
Marcelo Alves Dias de Souza
Procurador Regional da República
Doutor em Direito (PhD in Law) pelo King’s College London – KCL
Mestre em Direito pela PUC/SP

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