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16/05/2019



A REVOLTA DOS GUARAPES

Vicente Serejo*

Outro dia perguntei ao meu amigo Valério Mesquita, legítimo senhor do velho principado de Macaíba, como se faria para o governo estadual iniciar as obras de restauração do casarão dos Guarapes. Valério contraiu o cenho como um velho personagem de romance, e me respondeu: "Não sei. Só soube que Fabrício Pedroza, inconformado com esse abandono sem fim, arregimenta os fantasmas guerreiros e vai descer do alto dos Guarapes numa revolta armada e sem fronteiras".
Ora, essa mania de gostar de literatura tem esse defeito medonho: não fazemos diferença entre o real e o irreal. A narrativa para nós, leitores como eu, ou escritores como ele, é um toque mágico que faz viver com a força da palavra o que parece ser apensas um quadro na parede, para usar o verso belíssimo do poeta Drummond de Andrade. Pois assim aconteceu. Foi Valério descrevendo a cena épica e o medo cavalgando sobre a alma melancólica deste pobre homem da Rua da Frente.
Já imagino o mui austero Fabrício Pedroza, senhor de terras e de gados, de sonhos e de riquezas, na sua ira santa. Duas vezes querem vê-lo vencido pelos reveses da vida. Na saúde que perdeu tão moço e, agora, no seu casarão colonial que deixam cair em ruínas, numa agonia de mais de um século. Resta um frontão já consumindo suas últimas forças, mantendo a aristocracia de seu olhar sobre o rio e os tabuleiros, ali onde seus olhos ficaram pregados na paisagem íntima.
Numa ira santa e tão desafiado na sua coragem dura e antiga como as pedras do seu chão, ninguém duvide mesmo se numa madrugada dessas Fabrício Pedroza, feito um Dom Quixote no seu delírio sonhador, descer do alto do Paço dos Guarapes arrastando seus alabardeiros com as suas alabardas em riste como a guarda suíça do Vaticano. Quando desse rio e desse mar não foram tesouros seus no comércio das riquezas e das palavras perdidas? Enfrentá-lo, quem há de?
Velho de mais de um século e meio, o casarão de Fabrício É um símbolo pela voragem dos anos, nem o tempo pode apagar sua história. A agitação dos seus dias na exposição de sal, peles, algodão, açúcar e especiarias, conta a história viva de um tempo de fulgor, aqui e dalém mar. Quem sepultará o sonho de Fabrício Pedroza, morto em 1871, se suas mãos e seus feitos não repousam em paz no velho Cemitério de São João Batista?
A ninguém o rigor histórico perdoará pela rendição. Não é só um casarão decaído, suspirando entre ruínas. Mas seus anos de fama, riqueza e poder. Por isso, talvez pela mania de acreditar no milagre da transcendência, tive medo quando Valério Mesquita disse que corre na feira de Macaíba a notícia de que o pequeno e heróico exército de Fabrício Pedroza, sem glória e sem sossego, nesses dias desce do alto dos Guarapes. Numa revolta feita de mágoa e solidão.

(*) Escritor e Jornalista


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