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15/04/2019


A cidade dos livros
No ano de 2002, acho que era fins de março, passei uma temporada no Corpus Christi College, na Oxford University. Fui bolsista do British Council (bendito Conselho!), como representante brasileiro, para participar do curso “Tackling Corruption and Establishing Standards in Public Life”. Nesses dias, assistimos a muitas palestras do tipo: “Por que os sistemas produzem corrupção?”, “Por que o financiamento eleitoral é uma grande fonte de corrupção?” e “Como nós podemos expor a corrupção – ideias de um informante”. E participamos de vários outros seminários e de trabalhos em grupo.
Já faz tanto tempo, agora me dou conta. Estou ficando (…) experiente.
De toda sorte, como passei coisa de dois meses nessa temporada de estudos e pesquisas no Reino Unido – matriculei-me também numa escola de inglês em Oxford e ainda dei umas palestras como professor visitante na University of Northumbria at Newcastle (mas isso é outra história) –, tive tempo e oportunidade de viajar, nos finais de semana, pelo interior da Ilha Britânica.
Uma das viagens mais interessantes que fiz, partindo de Oxford, de carro, dirigindo na mão inglesa (Deus nos protege!), foi até a cidadezinha de Hay-on-Wye, a “cidade dos livros” (“The Town of Books”, no idioma da Ilha), já no País de Gales.
No caminho, recordo-me, passei uma tarde inteira na belíssima Stratford-upon-Avon, a cidade natal de Shakespeare (1564-1616). Mas isso, em se tratando da vida do autor do Hamlet, merece uma outra – e exclusiva – crônica. E pernoitei em Ross-on-Wye, uma pequena cidade mercado das “midlands” inglesas, postada em um penhasco sobre o tal rio Wye, que reivindica ter sido o berço, em meados do século 18, da indústria turística na Ilha Britânica. Não sei se é verdade. Mas topei com um “bed and breakfeast” bom e barato e ali pernoitei. Como eu gosto. Valeu a pena: Ross-on-Wye é também belíssima.
Cheguei a Hay-on-Wye – a “cidade dos livros” – no dia seguinte. Ela é simplesmente minúscula. Coisa de menos de 2 mil habitantes permanentes. E sua relação com os livros retroage à década de 1960, quando uma livraria foi aberta ali por um tal Richard Booth (1938-), que, vivendo no Hay Castle, uma mansão construída no terreno do antigo castelo local, ainda hoje detém o título honorífico de “Rei da Hay Independente”. Portanto, para os padrões britânicos, essa relação da cidadezinha com os livros nem é tão antiga assim.
Mas, como constava do meu já muito usado “Guia Visual Folha de São Paulo – Inglaterra Escócia e País de Gales” (PubliFolha, 1998), essa “belíssima cidade fronteiriça nas Black Mountains [precisamente nos limites do Brecon Beacons National Park] recebe amantes da literatura do mundo todo. Hay-on-Wye tem mais de 25 lojas de livros usados com milhões de títulos. No começo do verão, a cidade promove um festival de literatura de muito prestígio [o ‘Hay Festival of Literature and the Art’]”. É isso mesmo.
De minha parte, adorei Hay-on-Wye. Pelo que me recordo, cheguei um pouquinho antes do tal “Hay Festival of Literature and the Art”, que, de fins de maio para o começo de junho, por dez dias, reúne, na minúscula cidade, coisa de 100 mil amantes de livros (e a cada ano, desde 1988, vem crescendo mais). A coisa já estava bem movimentada. Livros, livreiros e leitores por todo canto. Em prédios, casas, carros e na rua. Muito colorido e divertido. Tudo fervilhando. Mas limpo e organizado (na medida do possível, em se tratando de livros). Um mundo à parte. Quase um parque temático (de livros!). Lindo. E confirmei que Hay-on-Wye faz mesmo jus ao seu posto de mais famoso centro literário/livresco britânico, em virtude do seu festival e desses seus muitos (para lá de três dezenas, hoje, com certeza) comércios de livros, tanto novos como usados, alguns até, para os cultores da bibliofilia (o que não é bem o meu caso), raros e muito valiosos.
Tempos depois, ao adquirir o meu precioso “The Oxford Guide to Literary Britain & Ireland” (Oxford University Press, 2008), descobri que não estou só nessa minha ótima impressão de Hay-on-Wye. Li nesse livrão – quase quatrocentas páginas, em formato grande, com muitos textos e fotos – que o ex-Presidente dos Estados Unidos da América, Bill Clinton (1946-), considerou o “Hay Festival of Literature and the Art” como o “Woodstock da mente”. Dizem que ele entende dessas coisas.
E me lembro, por fim, que essa minha visita a Hay-on-Wye foi, também, muito útil. Comprei ali o que, para mim, foi um achado: “Public Law and Public Administration” (F. E. Peacock Publishers, 2000), de Phillip J. Cooper. Um livro do qual, embora sobre direito público, retirei, reinterpretando-o, boa parte de um capítulo, versando sobre filosofia do direito, da minha dissertação de mestrado. Foi no dia 5 de maio de 2002. Ele custou 22.50 libras. E agora registro, com certeza, a data da minha visita a Hay-on-Wye, pois está anotado na folha de rosto do dito cujo.
Bom, um dia eu ainda volto lá (morar já seria demais). À cidade dos livros.
Marcelo Alves Dias de Souza
Procurador Regional da República
Doutor em Direito (PhD in Law) pelo King’s College London – KCL
Mestre em Direito pela PUC/SP

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