O direito contado (III)
Como eu disse no artigo da semana passada, a literatura contribui para
a construção da consciência jurídica do cidadão comum. Mas ela
estrutura uma “realidade” jurídica, a partir do universo das
possibilidades, que nem sempre coincide com o que realmente existe ou
existiu. Até porque estamos falando, essencialmente, de obras de ficção,
marcadas, em pequena ou grande medida, pela ótica particular,
ideologicamente prejudicada ou mesmo preconceituosa, do seu autor.
De toda sorte, quero deixar claro que o autor de “ficção jurídica”, se
minimamente honesto intelectualmente, está no seu direito de construir
um “direito” ao seu modo. Afinal, se fôssemos exigir diferente, nem
ficção teríamos. Cabe a nós termos o bom senso de identificarmos, com um
certo grau de razoabilidade, o que é fato e o que é mito.
Sinceramente, hoje, na transdisciplinaridade entre direito e literatura,
minha preocupação recai muito mais em duas derivações dessa mistura tão
comum entre fato e ficção.
A minha primeira preocupação diz
respeito à enxurrada de “fake news” e de outras narrativas bizarras, que
hoje diariamente presenciamos, tanto na grande imprensa como (e
sobretudo) nas redes sociais. Temos de ficar muito atentos a isso, para a
construção de um direito ou de uma consciência jurídica minimamente
conectada com a realidade. Afinal, se outrora aprendemos que “o direito
se origina no fato” (“ex facto ius oritur”), hoje parece cada vez mais
certa a afirmação de François Ost (1957-), no sentido de que “do relato é
que advém o direito” (“ex fabula ius oritur”).
A “culpa” aqui,
aliás, não é só do narrador “infiel” aos fatos ou ao direito. O leitor
também contribui para essa descoincidência. Até porque, como já nos
ensinou Paul Ricoeur (1913-2005), com a sua teoria da tríplice mimese,
“o dado prefigura, o artista configura e o intérprete refigura”. E o
leitor de ontem, com as redes sociais de hoje – que “deram voz ao idiota
da aldeia”, como asseverou Umberto Eco (1932-2016) –, torna-se o
narrador duplamente infiel (e quadruplamente medíocre) de amanhã.
E um segundo problema – a meu ver, ainda mais grave – é que se vê uma
estranha e inconveniente contaminação do discurso jurídico propriamente
dito por um tipo disfarçado de ficção. Falo aqui dos discursos
produzidos especificamente pelos profissionais do direito em seus
“métiers”. Parece que eles finalmente descobriram a citada assertiva de
François Ost – e fazem um uso muito errado dela –, de que “do relato é
que advém o direito” (“ex fabula ius oritur”). Se isso era até certo
ponto admissível em relação aos advogados (afinal, eles representam,
privadamente, as partes), acho abominável que membros do Ministério
Público e juízes, representantes do Estado, façam uso desse expediente,
criando essencialmente uma narrativa, descompromissada com os fatos e as
provas realmente constantes dos autos, para obter uma determinada
solução nos casos em que atuam.
Entretanto, admito
contrariadamente, que isso se tornou uma coisa comum hoje em dia. O que
se vê muito, em peças forenses, que deveriam ser técnicas, atendo-se aos
fatos e às provas dos autos, são ilações, visivelmente costurando, como
disse certa vez um conhecido advogado, a narrativa contada. As
suposições abundam. Expressões como “acredita-se que”, “pode ser”,
“está-se convicto de que”, “atribui-se a” e por aí vai, são recursos que
deveriam ser usados modicamente. Mas hoje é o que mais se vê, por
exemplo, na interpretação de conversas telefônicas monitoradas, prova
hoje tão importante no processo penal, frequentemente a única em
determinados casos, muitas vezes postas fora do seu real contexto.
Começa já com a interpretação dada pela autoridade policial, que é
encampada pelo Ministério Público e acaba, desavisadamente ou não, sendo
engolida pelo juiz do feito. E o que se tem, ao final, juntando outras
peças, é uma historinha, uma narrativa, bem ao gosto popular, que ganha,
invariavelmente, repercussão na imprensa e nas redes sociais.
São terríveis as consequências desse tipo de “direito contado”. Nesse
ponto, acho que nós, profissionais do direito, deveríamos consertar o
prumo. Trabalhar com os fatos, as provas e até mesmo com os tais
indícios (já que legalmente autorizados a tanto). Sem criar narrativas,
linguisticamente falando. Sem cair ou mesmo resvalar na “ficção
jurídica”. Devemos fazer tudo tecnicamente, usando os termos jurídicos
convencionados, focando aquilo que está nos autos, dentro dos ditames
constitucionais e legais, respeitando os princípios da ampla defesa e do
contraditório e os demais direitos individuais. Isso é civilizatório.
Isso é científico. Isso é o direito.
A não ser que você, meu
caro bacharel, prefira ser um “contador de histórias”, um “tusitala”,
como os samoanos chamavam o grande Robert Louis Stevenson (1850-1894).
Mas, nesse caso, faça como o autor de “O médico e Monstro” (“The Strange
Case of Dr. Jekyll and Mr. Hyde”, 1886): abandone o direito e vá fazer
literatura.
Marcelo Alves Dias de Souza
Procurador Regional da República
Doutor em Direito (PhD in Law) pelo King’s College London – KCL
Mestre em Direito pela PUC/SP
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