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08/01/2019

Ferri e os criminosos na literatura

Enrico Ferri (1856-1929), o famoso jurisconsulto e político italiano, nasceu na pequenina San Benedetto Po, nas cercanias de Mântua. Estudou direito em Bolonha, colando grau, pupilo de Pietro Ellero (1833-1933), em 1877. Especializou-se em Pisa, onde foi aluno de Francesco Carrara (1805-1888), talvez o principal expoente da Escola Clássica do Direito Penal. Estudou também na França, na Universidade Paris-Sorbonne. Foi ainda aluno de medicina legal do criminologista Cesare Lombroso (1835-1909), considerado o fundador da Escola Positiva do Direito Penal, a quem restou ligado por boa parte da vida.
Ferri foi professor de muitíssimo sucesso, desde pelo menos 1884 e até o fim da sua vida, tendo ensinado direito penal nas universidades de Bolonha, Siena, Pisa e Roma “La Sapienza”, entre outras. Ministrou conferências Europa afora e chegou a fazer o mesmo, no primeiro decênio do século passado, na nossa América Latina. Foi advogado criminalista de enorme prestígio. Daí entrou na política, foi deputado por vários mandatos, militando à esquerda e no Partido Socialista italiano. Escreveu copiosamente no jornal “Avanti!”, órgão oficial do Partido. Por essa época, foi encarregado de reformar, como presidente de comissão criada para tanto, as leis penais italianas. No fim da sua vida, curiosamente, mesmo sem se filiar ao Partido Nacional Fascista, deu apoio a Benito Mussolini (1883-1945).
A principal obra (essencialmente) jurídica de Ferri foi, sem dúvida, “Sociologia Criminale”, publicada com esse nome em 1892, mas que, em sua primeira edição, de 1881, tinha o longuíssimo título “I Nouvi Orizzonti del Diritto e della Procedura Penale”. E, entre seus textos, deve também ser destacado “Principi di Diritto Criminale”, de 1928. Juntamente com o já citado Cesare Lombroso e com Raffaele Garofalo (1851-1934), Ferri formou a grande tríade da chamada Escola Positiva do Direito Penal. E, como anota Paulo Jorge de Lima em “Dicionário de filosofia do direito” (Sugestões Literárias S.A., 1968), ele foi o representante máximo dessa escola, “sistematizando-a e transformando-a em um campo de vastos estudos sobre a pessoa e os caracteres do delinquente, as causas biológicas, sociais e psicológicas da prática de crimes e dos métodos de prevenção e repressão da criminalidade”.
Mas não é bem sobre isso – a rica trajetória política ou as cientificidades da obra criminológica de Enrico Ferri – que eu quero falar hoje. Quero apenas destacar e sugerir a leitura de um livro de Ferri que caiu em minhas mãos inusitadamente: “Os criminosos na arte e na literatura”, publicado entre nós por Ricardo Lenz Editor (de Porto Alegre/RS), em 2001. Por mais estranho que pareça, embora seja um livro em português, traduzido e editado no Brasil, adquiri o dito cujo em uma livraria jurídica de Buenos Aires, uma daquelas que ficam perto da região de “Tribunales”. O porquê de estar ali à venda, eu não sei. Apenas peguei e paguei. E me encantei.
Em “Os criminosos na arte e na literatura”, Enrico Ferri trata, além do que ele chamou de “os criminosos nas artes decorativas”, de várias peças e romances de gente como William Shakespeare (1564-1616), Friedrich Schiller (1759-1805), Émile Gaboriau (1832-1873), Victor Hugo (1802-1885), Émile Zola (1840-1902), Fiódor Dostoiévski (1821-1881), Leon Tolstói (1828-1910), Henrik Ibsen (1828-1906) e Gabrielle D’Annuzio (1863-1938), entre outros, escritores que, pelo menos alguns deles, já foram objeto do nosso interesse por aqui.
Na verdade, os crimes e os criminosos – e, por íntima relação, o direito – têm fornecido um vasto e rico material à arte e, em especial, à literatura. Como afirma o próprio Ferri, a “arte, esse reflexo irisado da vida, não poderia, mesmo desde as suas primeiras e mais instintivas manifestações, negligenciar o estudo das inumeráveis metamorfoses do crime e da alma criminal na sociedade; não poderia ignorar o frisson passional que, em presença do delito, subleva, na multidão, uma emoção vaga, incessantemente ampliada e atenuada na medida de sua amplitude – ou que provoca, na consciência do artista, a representação subjetiva de personagens misturados aos dramas da fraude artificiosa ou da violência sanguinária”.
De minha parte, neste momento, estou saboreando o capítulo dedicado ao francês Émile Gaboriau, apontado por Ferri como “o inventor de um certo gênero de romances judiciários, muito imitados depois, e muito em moda há alguns anos”, nos quais a figura do criminoso é muitas vezes eclipsada, dando-se protagonismo ao policial arguto e genial ou mesmo a uma complicada instrução judiciária na qual, em meio a uma equivocada acusação a um inocente, se procura descobrir o verdadeiro culpado. Era prato cheio para os folhetins da época. E, mesmo hoje, eu adoro esse tipo de estória. Acho-as intrigantes e viciantes.
Bom, eu estou realmente adorando “Os criminosos na arte e na literatura”. E acredito que, em pleno verão, quando as coisas de trabalho param um pouco, você também iria gostar. Afinal, como dito no prefácio à sua edição brasileira, ele é um livro que “transcende ao [monótono] universo dos especialistas em matéria penal, interessando, sem dúvidas, aos cultores das artes e da literatura”.
Marcelo Alves Dias de Souza
Procurador Regional da República
Doutor em Direito (PhD in Law) pelo King’s College London – KCL
Mestre em Direito pela PUC/SP

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