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18/12/2018

O direito contado (I)

Na introdução a “Imaginar la ley: El derecho en la literatura” (publicado na Argentina, em 2015, pela Editorial Jusbaires, com o apoio do Poder Judicial de la Ciudad de Buenos Aires/Consejo de la Magistratura), os organizadores desse excelente livro, Antoine Garapon e Denis Salas, afirmam: “A literatura cria personagens que dão ao direito figura humana. A consciência jurídica do comum dos mortais não se forja em consulta aos manuais de direito, mas na leitura de obras, em aparência, muito pouco jurídicas”.
Concordo em altíssimo grau com os citados autores. E registro que isso – a construção de uma “consciência jurídica” a partir de textos não jurídicos – se dá com quase todos nós desde muito cedo, a partir, por exemplo, daqueles contos que nos são narrados quando crianças, quase todos eles enaltecendo o valor da Justiça. E é assim desde tempos imemoriais, bastando para tanto lembrar o exemplo da Bíblia, texto teológico e literário dotado de desiderato normativo tanto expresso como implícito, que se mostrou determinante na evolução da história mundial – incluindo a história do direito ocidental –, dado o seu papel fundamental não só na organização e no desenvolvimento da Igreja Católica e das demais religiões cristãs, mas também na própria consolidação, através dos séculos, de uma moral cristã quase global.
Sem dúvida, como anotam André Karam Trindade e Roberta Magalhães Gubert (no texto “Direito e literatura: aproximações e perspectivas para se repensar o direito”, que faz parte do livro “Direito & literatura: reflexões teóricas”, publicado pela Livraria do Advogado Editora em 2008): “a literatura pode servir como importante instrumento mediante o qual ocorre o registro – histórico e temporal, evidentemente – dos valores de um determinado lugar ou época – dentre os quais se inscreve a representação do sistema jurídico, do poder, da justiça, das leis, das funções jurisdicionais, etc. – no interior do imaginário coletivo e social”. A literatura, lembram os mesmos autores, “constitui uma espécie de repositório privilegiado através do qual se inferem informações e subsídios capazes de contribuir diretamente na compreensão das relações humanas que compõem o meio social, isto é, o caldo de cultura no qual, ao fim e ao cabo, opera o direito”.
Some-se a isso o fato de que algumas obras literárias, sobretudo os clássicos da literatura, apresentam e resolvem satisfatoriamente problemas jurídicos intrincados. Os grandes livros, com suas belas estórias, enfrentando temas jusfilosóficos universais, tratando de questões políticas controversas, relatando acontecimentos jurídicos cruciais, retratando a casuística das prisões, da vida forense ou dos escritórios de advocacia, tudo em linguagem bem mais elegante e acessível que a linguagem técnico-jurídica, são frequentemente excelentes aulas de direito. O relato literário, com sua dramaticidade, muitas vezes é bem mais elucidativo do que a objetiva descrição técnica do mesmo fato, processo ou instituição. Através de “Medida por medida” (1604), de William Shakespeare (1564-1616), por exemplo, certamente se compreenderá bem melhor a necessária relatividade da Justiça dos homens do que pela leitura de um enfadonho tratado de filosofia do direito.
E pode-se ainda seguramente dizer que a ficção jurídica, ao mesmo tempo em que reproduz o direito posto e o imaginário popular acerca das diversas temáticas jurídicas, também influencia, em graus variados, a construção desse direito e, sobretudo, desse imaginário. No Brasil, aliás, especificamente, isso se dá em altíssimo grau com a ficção jurídica produzida para a televisão, dado o grau de popularidade desta. Neste ponto, como se dá com outras interfaces da literatura (para o caso do Brasil, incluo aquela literatura produzida para a televisão) – por exemplo, com a religião, com os costumes, com a moda e por aí vai –, ela (a literatura) é subversiva, tanto para o direito positivo em si como para a “mentalidade” jurídica de modo mais abrangente. Não causa assim espanto que essa literatura mais “subversiva” (a telenovela, por exemplo, no caso do Brasil) tenha antecipado muito das modernas teorias e tendências do direito, tais como o ambientalismo, o biodireito, o feminismo, a transexualidade etc. De fato, muitas das ideias inovadoras no direito, assim como boa parte das críticas à mentalidade jurídica consolidada, historicamente encontraram sua mais vívida expressão na ficção – seja através de romances, do teatro, do cinema etc. –, esse meio de expressão que William P. MacNeil certa vez chamou, poeticamente, de “lex populi” (em “Lex Populi: The Jurisprudence of Popular Culture” (Stanford University Press, 2007).
Mas tudo isso é sempre bom? Ou pode ter, como quase tudo na vida, o seu lado ruim? Isso é o que veremos nas semanas vindouras, analisando um pouco mais uma tal “teoria do direito contado”.

Marcelo Alves Dias de Souza
Procurador Regional da República
Doutor em Direito (PhD in Law) pelo King’s College London – KCL
Mestre em Direito pela PUC/SP

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