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01/03/2018



A PASSAGEM DA NOITE
Valério Mesquita*
Mesquita.valerio@gmail.com


O homem social hoje virou ambiguidade ficcional. Previna-se o leitor: não confundir amizade social com solidariedade humana. São manifestações caracterológicas do vivente completamente heterogêneas. O egoísmo, a acomodação, modificadas pelo tom da luz reinante destruíram o sentimento cristão do mundo. O homem cresce, vive e morre numa jaula, limitado às imposições de sua vida miúda, repleta de frustrações e às circunstâncias. Há pessoas que pensam que não vão morrer nunca. Principalmente os que são ricos ou que, pelo menos, pensam. Assim imaginam muitos empresários, políticos, socialites, médicos, usineiros, juristas e outros nomes, renomes e pronomes suspeitos.
Às vezes, diante do infortúnio alheio, ancoram suas amarras no mais profundo silêncio e na mais abominável indiferença. A postura ante o mundo é de desamparo e desalento. Não há lógica própria nessa conduta centrada unicamente na anormalidade do desvio comportamental porque a amizade virou interesse, esbulho, vantagem, lucro.
Lembro a minha mãe, quando algumas vezes para rebatar a solidão centenária com uma frase humilde, sábia e confortadora: “Meu filho, se eu fosse uma pessoa rica a minha casa estaria repleta de visitas”.
A humildade e a caridade cristã teriam sido substituídas pelo messianismo dos “pobres de espírito”? Seria ataraxia, morbidez ou equívoco trágico imaginar que ninguém seu morrerá nunca? Mas a vida é um labirinto movida por difusa fluidez temporal, constituída de fases e de fezes (no sentido consumista, digestivo da palavra).
E eu pensava nesse turbilhão do tempo, dos modismos, que o exercício da amizade fosse contínuo, mas é tão “imortal” quanto a hipocrisia de acreditar nos homens que integram as instituições públicas e privadas (culturais, políticas, empresariais etc.). Daí deduzir que toda celebridade em Natal quando não é célere e celerada. A corrosão cotidiana da busca pelo dinheiro e pelo poder enferruja com rapidez as “glórias e grandezas” de alguns governantes que se julgam donos do mundo, quando pensávamos justos e coerentes. As mutações históricas dos valores da personalidade humana, ao que me parece, foram provocadas pela “revolução” dos costumes sociais, principalmente o comodismo, a apatia pelo semelhante, o medo de morrer, as fobias e a falta de religiosidade.
Aí instaura-se um jogo de buscas. O coração desumanizado do selvagem habitante da cidade, que segrega o próximo jamais conhecerá qualquer modalidade de amor, principalmente na noite sem face e derradeira do ataúde, porque em vida foi ausente, insensível, reduzido à condição de bicho. Esse será o calvário do insensato, do que utiliza a amizade como negócio, como moeda de troca. Vai vagar como Caim na noite gelada do tempo sem jamais achar abrigo.
O leito caudaloso da memória me conduz às vozes que vêm de longe. Na dor acumulada e na fadiga rotineira, ensaio os meus passos no caminho das minhas perdas. Revejo os meus personagens. Escuto o vento nas folhas e o piano da chuva no telhado como se não tivesse ainda baixado a cortina da minha infância. Diante do que possa sugerir esquisitice essa ressurreição de ambiente, impetro uma medida cautelar possessória, uma manutenção de posse do tempo que se extravia tal qual um desesperado náufrago na complexa realidade de hoje.
Nada disso significa nostalgia piegas. Apenas, me interessa o imponderável e o mistério dos desencontros humanos. Enquanto houver silêncio, solidão, tragédia, medos secretos, jamais deixarei de perseguir os significados. Além da visão, da memória, dos sonhos, tenho os meus pressentimentos.

(*) Escritor 

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