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14/12/2016


 
   
Marcelo Alves

 

Dickens, historiador do direito

Grandes romancistas – com suas tocantes estórias, relatando a casuística das prisões, da vida forense, dos escritórios de advocacia e por aí vai – algumas vezes são ótimos historiadores do direito. Seus textos literários testemunham a visão sobre o mundo jurídico existente em certa sociedade em determinada época, muito embora essa visão esteja quase sempre marcada, em boa medida, pela ótica particular do autor. E esses testemunhos, em linguagem elegante, são bem mais acessíveis aos leitores (com ou sem formação jurídica), para fins de reconstrução da imagem que determinada sociedade tem do direito e de seus atores, que os áridos estudos jurídico-histórico-sociológicos de caráter estritamente científico. 

Um exemplo de escritor bastante característico do que estou defendendo é Charles Dickens (1812-1870), o mais afamado dos romancistas ingleses, autor de clássicos da literatura como “The Pickwick Papers” (publicado em formato de livro em 1937), “Oliver Twist” (1938), “Nicholas Nickleby” (1939), “The Old Curiosity Shop” (1941), “Christmas Carol” (1943), “David Copperfield” (1850), “Bleak House” (1953), “Hard Times” (1854), “Little Dorrit” (1857), “A tale of Two Cities” (1859) e “Great Expectations” (1861), apenas para citar alguns dos seus mais conhecidos trabalhos. Aliás, Dickens, para quem não sabe, tinha considerável formação jurídica, tendo sido, segundo seus biógrafos, empregado em escritório de advocacia, escrivão e repórter judiciário. Eu mesmo já tive aqui a oportunidade defender o valor histórico-jurídico do relato literário de Dickens – que frequentemente vem misturado com alguma experiência do autor, quando não é explicitamente autobiográfico –, elucidativo de fato, processo ou instituição jurídica ou ainda enfrentando e resolvendo satisfatoriamente questões específicas do direito. 

Da obra de Dickens podemos tirar inúmeros exemplos relacionados ao direito. Um deles é o romance “Oliver Twist”, publicado em 1838, que é pioneiro no tratamento de temas como a delinquência juvenil e a exploração de menores. Conhecido também pelas adaptações que recebeu para o cinema (com destaque para a de David Lean, de 1948) e para o teatro, seu enredo gira em torno da personagem do título, garoto órfão, de bom coração, mas que se envolve com uma gangue de delinquentes. Questionando até que ponto as desesperadoras condições sociais (da Londres de então) levam necessariamente à delinquência, a saga de Oliver Twist, do “primeiro assalto à redenção”, com idas e vindas, nos é poeticamente contada. Ademais, em “Oliver Twist”, Dickens se mostra um acurado historiador do direito em aspectos específicos dessa ciência/arte, como na narrativa do julgamento do “insidioso” Fagin, o “judeu”, como partícipe no assassinato de Nancy, lá pelo fim da obra, quando o relato de Dickens se mostra bastante preciso, como reconhecem os especialistas no assunto, no tratamento do direito processual penal de então. 

Outro exemplo dessa intimidade de Dickens com o direito, provavelmente o mais característico, é o seu romance “Bleak House” (“A Casa Sombria”, em português), originalmente publicado em 1853. O intricado – mas juridicamente preciso – enredo de “Bleak House” gira todo em torno de um bizarro caso de herança denominado “Jarndyce and Jarndyce”, que é julgado nas extintas Chancery Courts, sob o sistema/ideia de Equity. Tendo precisamente como pano de fundo o moroso desenrolar da querela e a vida nas cortes de justiça de Chancery Lane, em que o caso é periodicamente tratado, inúmeros eventos afetam as muitas personagens – Esther Summerson, a heroína, Dr. Woodcourt, Richard Carstone e Ada Clare, para citar algumas –, cujas vidas restam, sob diferentes graus, determinadas pelas idas e vindas de um arbitrário sistema legal. E, absurdamente, ao fim do processo, a herança acaba completamente consumida pelas despesas com advogados e custas legais. 

Essa “minha” tese (que de minha, no que toca à originalidade, não tem nada) vem a ser retumbantemente confirmada por um livro que acabo de receber pelos correios, novinho em folha, diretamente da Skoob Books, a maior loja de livros usados (leia-se “sebo”) da capital do Reino Unido (pelo menos segundo o meu conhecimento): “Charles Dickens as a Legal Historian”, de William S. Holdsworth (1871-1994), publicado em 1995 por The Lawbook Exchange (mas sendo uma edição fac-símile do original de 1928/1929 da Yale University Press). Registre-se William S. Holdsworth é nada mais nada menos que o autor da monumental “A History of English Law”, publicada, em dezessete volumes, de 1903 a 1966. Ou seja, ele entendia muito do assunto. 

Nesse seu “Charles Dickens como historiador do direito” – que se acha divido em quarto capítulos/aulas (proferidas na Yale University): “The Courts and the Dwellings of the Lawyers”, “The Lawyers, Lawyers’ Clerks, and other Satellites of the Law”, “Bleak House and the Procedure of the Court of Chancery” e “Pickwick and the Procedure of the Common Law” –, William S. Holdsworth já afirmava expressamente: “Muitos dos romances de Charles Dickens tratam do direito e de seus profissionais, em alguns deles o direito e os profissionais são parte importante da trama e em pelo menos um deles, Bleak House, uma ‘atmosfera jurídica’ domina toda a obra”. E mais: “Dickens nasceu em 1812; e as datas dos seus romances variam de 1835 a 1870; então, o direito e os juristas que Dickens observou e descreveu são o direito e os juristas dos dois primeiros terços do século XIX. Isso é agora um período que faz parte da história, e está começando a atrair a atenção dos historiadores, do direito ou não. Nestas aulas, minha intenção é mostrar que o tratamento dado por Dickens a vários aspectos do direito e dos juristas de seu tempo é um material valioso que se soma às nossas fontes formais, não apenas para aquele período, mas também para tempos ainda mais remotos da história legal inglesa”. 

E é assim que William S. Holdsworth considera Charles Dickens, de vocação um romancista (talvez o maior nascido na ilha britânica), como parte do seleto grupo de grandes historiadores do direito. Essa afirmação tem todo o meu humilde apoio. 


Marcelo Alves Dias de Souza
Procurador Regional da República
Doutor em Direito (PhD in Law) pelo King’s College London – KCL
Mestre em Direito pela PUC/SP

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