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16/11/2016

   
 
Marcelo Alves publicou no grupo Leitura de domingo.
 
   
Marcelo Alves

 
 
Sobre “O vento será a tua herança” (I)

A justiça – o direito, em sentido mais amplo –, como lembra Bruno Dayez (em “Justice & cinéma”, editora Anthemis, 2007), “é um dos temas favoritos do cinema”. Sempre foi, podemos dizer, muito embora possamos apontar algumas eras de ouro desse gênero de filmes, que, na sua caracterização mais estrita, são classificados como “filmes de tribunal”. 

As razões para tanto são muitas. As questões judiciais muitas vezes envolvem dinheiro, violência, sexo, o que, sabemos, é sempre algo interessante de se explorar no cinema. O crime em si, do mais banal ao mais grave, normalmente chama a nossa atenção. Muitas vezes, a própria perversidade do crime praticado ou o envolvimento de pessoas ilustres no fato, por exemplo, já são o suficiente para, sem o acréscimo de qualquer recurso dramático, emprestar qualidade e interesse a um filme. A personalidade do criminoso, assim como a sua conduta antes e depois do crime, constitui-se geralmente em excelente matéria prima para a ficção. A competência e a teatralidade dos operadores do direito – policiais, juízes, jurados, promotores e, sobretudo, advogados – é fascinante. A atmosfera de uma corte de justiça em pleno funcionamento é tensa e ao mesmo tempo encantadora. A “mise em scèce” do processo penal, em alguns casos, se assemelha a uma tragédia grega. A busca pela justiça, que é uma busca pela verdade, sempre envolve um suspense. Até mesmo a execução da pena, na trágica realidade carcerária existente mundo afora, é marcadamente perversa para invariavelmente prender nossa atenção. E por aí vai. 

E muitas vezes os filmes de tribunal são baseados ou inspirados (com maior ou menor fidelidade) em fatos reais, com é o caso de “O vento será a tua herança” (“Inherit the Wind”), de 1960, direção de Stanley Kramer, que é também um dos mais antigos exemplos desse tipo de relação – “cinema jurídico” e fatos reais. 

No caso de “O vento será a tua herança” (“Inherit the Wind”), tudo começa com o processo judicial – que restou conhecido como o “Julgamento do Macaco” – acontecido em 1925, na pequena cidade de Dayton, no estado norte-americano do Tennessee, no coração do chamado “Bible Belt” (“Cinturão Bíblico”), região assim apelidada pelo grande jornalista e iconoclasta americano (de Baltimore) H. L. Mencken (1880-1956), onde o pensamento religioso é dominado por uma interpretação estritamente literal da Bíblia. Mencken, aliás, é retratado nas obras de ficção que se seguiram ao julgamento de fato acontecido, no personagem E. K. Hornbeck, jornalista do Baltimore Herald, e que, no filme de 1960, é interpretado por Gene Kelly (1912-1966). 

Nessa cidadezinha, John Thomas Scope (1900-1970), professor local, foi criminalmente processado por haver infringido uma lei estadual que proibia o ensinamento da teoria da evolução da Charles Darwin (1809-1882) nas escolas. Em sua defesa atuou, “pro bono”, o grande advogado norte-americano Clarence Darrow (1857-1938), sobre quem já escrevi aqui (vide a crônica “Sobre Clarence Darrow”). Do outro lado, na acusação, estava o também célebre William Jennings Bryan (1860-1925), advogado e político norte-americano, que chegou a ser Secretário de Estado dos Estados Unidos da América (1913-1915) e três vezes candidato derrotado à presidência do país (1896, 1900 e 1908). No final, após muitas peripécias jurídicas e retóricas (sobretudo estas), que agitaram todo o país, Scope foi considerado culpado e condenado a uma multa (certamente simbólica) de 100 dólares, sendo esse julgamento posteriormente anulado, por razões processuais, e nunca mais retomado. 

De tão célebre, em 1955, em pleno período do “macarthismo”, o “Julgamento do Macaco”, tido como “a batalha legal do século”, virou peça de teatro nas penas de Jerome Lawrence (1915-2004) e Robert E. Lee (1918-1994), com o título “O vento será a tua herança” (“Inherit the Wind”), que é uma alusão à passagem bíblica, constante de Provérbios 11:29, que diz: “quem causa problemas à sua família herdará somente vento...”. E o enredo da dita cuja, para os amantes ou não do direito, é, de fato, apaixonante. Como se pode ler numa edição que possuo dessa peça (de 1960, da Bantam Books, em formato de bolso e em papel jornal, adquirida dia desses em um sebo da Mercer Street, em Greenwich Village, Nova Iorque), autoqualificada como “o maior drama legal do século”: “dia após dia, no calor de um tribunal lotado, os dois mais famosos oradores norte-americanos de então lutaram com os seus sólidos argumentos e os seus tremendos discursos. Drama como esse a América nunca tinha visto. Os espectadores ficaram encantados. Jornalistas cínicos tomaram lado e entraram também na luta. O juiz, o júri e o réu foram esquecidos enquanto os dois grandes oradores, outrora até amigos, explodiam e lutavam para destruir um ao outro. E a audiência ficou horrorizada quando um deles caiu morto no momento do seu discurso”. 

É preciso lembrar, entretanto, como fazem os próprios autores (Jerome Lawrence e Robert E. Lee), que “Inherit the Wind”, a peça – e também o filme de 1960, que nela se baseia –, não é história. De fato, os eventos que tiveram lugar em Dayton, no Tennessee, em julho de 1925, estão claramente na gênesis na peça. Há, todavia, uma enorme distância entre as duas coisas. Apenas um punhado de frases foram realmente retiradas das transcrições do “Julgamento do Macaco”, reconhecem os autores. E, sobretudo, “alguns dos personagens da peça estão relacionados com as coloridas figuras da batalha de gigantes; mas eles têm vida e linguagem própria e, consequentemente, nomes próprios”. 

Daí, uma vez a história/estória já contada em forma de teatro, foi um pulo para a sua adaptação à grande tela, o que se deu mais de uma vez, sendo que o filme “O vento será a tua herança” (“Inherit the Wind”) de 1960, dirigido por Stanley Kramer, é simplesmente fantástico. 

E é especificamente sobre ele, o filme de 1960, que conversaremos mais detidamente, cinematográfica e juridicamente, nas próximas duas semanas. Portanto, peço apenas um pouquinho de paciência. 

Marcelo Alves Dias de Souza
Procurador Regional da República
Doutor em Direito (PhD in Law) pelo King’s College London – KCL
Mestre em Direito pela PUC/SP

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