Sobre “O vento será a tua herança” (I)
A justiça – o direito, em sentido mais amplo –, como lembra Bruno
Dayez (em “Justice & cinéma”, editora Anthemis, 2007), “é um dos
temas favoritos do cinema”. Sempre foi, podemos dizer, muito embora
possamos apontar algumas eras de ouro desse gênero de filmes, que, na
sua caracterização mais estrita, são classificados como “filmes de
tribunal”.
As razões para tanto são muitas. As questões judiciais muitas vezes
envolvem dinheiro, violência, sexo, o que, sabemos, é sempre algo
interessante de se explorar no cinema. O crime em si, do mais banal ao
mais grave, normalmente chama a nossa atenção. Muitas vezes, a própria
perversidade do crime praticado ou o envolvimento de pessoas ilustres no
fato, por exemplo, já são o suficiente para, sem o acréscimo de
qualquer recurso dramático, emprestar qualidade e interesse a um filme. A
personalidade do criminoso, assim como a sua conduta antes e depois do
crime, constitui-se geralmente em excelente matéria prima para a ficção.
A competência e a teatralidade dos operadores do direito – policiais,
juízes, jurados, promotores e, sobretudo, advogados – é fascinante. A
atmosfera de uma corte de justiça em pleno funcionamento é tensa e ao
mesmo tempo encantadora. A “mise em scèce” do processo penal, em alguns
casos, se assemelha a uma tragédia grega. A busca pela justiça, que é
uma busca pela verdade, sempre envolve um suspense. Até mesmo a execução
da pena, na trágica realidade carcerária existente mundo afora, é
marcadamente perversa para invariavelmente prender nossa atenção. E por
aí vai.
E muitas vezes os filmes de tribunal são baseados ou inspirados (com
maior ou menor fidelidade) em fatos reais, com é o caso de “O vento
será a tua herança” (“Inherit the Wind”), de 1960, direção de Stanley
Kramer, que é também um dos mais antigos exemplos desse tipo de relação –
“cinema jurídico” e fatos reais.
No caso de “O vento será a tua herança” (“Inherit the Wind”), tudo
começa com o processo judicial – que restou conhecido como o “Julgamento
do Macaco” – acontecido em 1925, na pequena cidade de Dayton, no estado
norte-americano do Tennessee, no coração do chamado “Bible Belt”
(“Cinturão Bíblico”), região assim apelidada pelo grande jornalista e
iconoclasta americano (de Baltimore) H. L. Mencken (1880-1956), onde o
pensamento religioso é dominado por uma interpretação estritamente
literal da Bíblia. Mencken, aliás, é retratado nas obras de ficção que
se seguiram ao julgamento de fato acontecido, no personagem E. K.
Hornbeck, jornalista do Baltimore Herald, e que, no filme de 1960, é
interpretado por Gene Kelly (1912-1966).
Nessa cidadezinha, John Thomas Scope (1900-1970), professor local,
foi criminalmente processado por haver infringido uma lei estadual que
proibia o ensinamento da teoria da evolução da Charles Darwin
(1809-1882) nas escolas. Em sua defesa atuou, “pro bono”, o grande
advogado norte-americano Clarence Darrow (1857-1938), sobre quem já
escrevi aqui (vide a crônica “Sobre Clarence Darrow”). Do outro lado, na
acusação, estava o também célebre William Jennings Bryan (1860-1925),
advogado e político norte-americano, que chegou a ser Secretário de
Estado dos Estados Unidos da América (1913-1915) e três vezes candidato
derrotado à presidência do país (1896, 1900 e 1908). No final, após
muitas peripécias jurídicas e retóricas (sobretudo estas), que agitaram
todo o país, Scope foi considerado culpado e condenado a uma multa
(certamente simbólica) de 100 dólares, sendo esse julgamento
posteriormente anulado, por razões processuais, e nunca mais retomado.
De tão célebre, em 1955, em pleno período do “macarthismo”, o
“Julgamento do Macaco”, tido como “a batalha legal do século”, virou
peça de teatro nas penas de Jerome Lawrence (1915-2004) e Robert E. Lee
(1918-1994), com o título “O vento será a tua herança” (“Inherit the
Wind”), que é uma alusão à passagem bíblica, constante de Provérbios
11:29, que diz: “quem causa problemas à sua família herdará somente
vento...”. E o enredo da dita cuja, para os amantes ou não do direito,
é, de fato, apaixonante. Como se pode ler numa edição que possuo dessa
peça (de 1960, da Bantam Books, em formato de bolso e em papel jornal,
adquirida dia desses em um sebo da Mercer Street, em Greenwich Village,
Nova Iorque), autoqualificada como “o maior drama legal do século”: “dia
após dia, no calor de um tribunal lotado, os dois mais famosos oradores
norte-americanos de então lutaram com os seus sólidos argumentos e os
seus tremendos discursos. Drama como esse a América nunca tinha visto.
Os espectadores ficaram encantados. Jornalistas cínicos tomaram lado e
entraram também na luta. O juiz, o júri e o réu foram esquecidos
enquanto os dois grandes oradores, outrora até amigos, explodiam e
lutavam para destruir um ao outro. E a audiência ficou horrorizada
quando um deles caiu morto no momento do seu discurso”.
É preciso lembrar, entretanto, como fazem os próprios autores
(Jerome Lawrence e Robert E. Lee), que “Inherit the Wind”, a peça – e
também o filme de 1960, que nela se baseia –, não é história. De fato,
os eventos que tiveram lugar em Dayton, no Tennessee, em julho de 1925,
estão claramente na gênesis na peça. Há, todavia, uma enorme distância
entre as duas coisas. Apenas um punhado de frases foram realmente
retiradas das transcrições do “Julgamento do Macaco”, reconhecem os
autores. E, sobretudo, “alguns dos personagens da peça estão
relacionados com as coloridas figuras da batalha de gigantes; mas eles
têm vida e linguagem própria e, consequentemente, nomes próprios”.
Daí, uma vez a história/estória já contada em forma de teatro, foi
um pulo para a sua adaptação à grande tela, o que se deu mais de uma
vez, sendo que o filme “O vento será a tua herança” (“Inherit the Wind”)
de 1960, dirigido por Stanley Kramer, é simplesmente fantástico.
E é especificamente sobre ele, o filme de 1960, que conversaremos
mais detidamente, cinematográfica e juridicamente, nas próximas duas
semanas. Portanto, peço apenas um pouquinho de paciência.
Marcelo Alves Dias de Souza
Procurador Regional da República
Doutor em Direito (PhD in Law) pelo King’s College London – KCL
Mestre em Direito pela PUC/SP |
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