Separação e controle (II)
Na semana passada, aqui mesmo, narrando uma conversa que tive com
ex-alunos queridos (e assustados), defendi a necessária compatibilização
entre o princípio/teoria da separação dos poderes e o controle
jurisdicional de constitucionalidade das leis (e dos atos
administrativos em geral) que, embora tenham diretrizes aparentemente
contraditórias, são, nos dias de hoje, ideias fundamentais para qualquer
estado democrático de direito.
E, tendo primeiramente tratado da teoria da separação dos poderes
(embora superficialmente, reconheço), prometi, para hoje, pondo no papel
o papo que tive com os já citados alunos, escrever um pouco mais sobre o
controle jurisdicional de constitucionalidade das leis, descrevendo sua
evolução na história.
Bom, como já dito no artigo da semana passada, na Inglaterra, já no
século XVII, temos na decisão de Edward Coke (1552-1634) no caso Thomas
Bonham v. College of Physicians 8 Co. Rep. 114 (Court of Common Pleas
[1610]), conhecido como “Dr. Bonham's Case”, um embrião daquilo que hoje
conhecemos como controle jurisdicional de constitucionalidade das leis,
porquanto ali é afirmado que o “common law” (leia-se: o direito
primordial inglês), através de suas cortes, deve “controlar” os atos do
Parlamento (leia-se: as leis) e, em sendo eles desarrazoados ou
repugnantes (“repugnant”), declará-los nulos (“void”).
Entretanto, para fins da história do direito e das ideias políticas,
dois são os momentos luminares para consagração do controle
jurisdicional de constitucionalidade das leis.
O primeiro deles se dá nos Estados Unidos da América, no começo do
século XIX, com a decisão da Suprema Corte daquele país, capitaneada
pelo seu presidente, “Chief Justice” John Marshall (1755-1835), em
Marbury v. Madison 5 US 137, 1 Cranch 137, 2 L.Ed. 60 (1803), afirmando,
mesmo no silêncio da Constituição americana (ou seja, em uma criação
jurisprudencial), que essa Constituição é suprema em relação à
legislação infraconstitucional do país e qualquer lei que a contradiga
deve ser judicialmente declarada nula. Temos aí, segundo convencionado, a
origem do “judicial review of the constitutionality of the legislation”
(por nós chamado de controle jurisdicional de constitucionalidade das
leis) que, nos EUA, é realizado de modo descentralizado ou difuso, por
qualquer dos tribunais do país, concreto e por via de exceção, porque
exercido por ocasião da aplicação da lei a um caso particular e “a
posteriori”, porque exercido sobre uma lei já promulgada.
O segundo grande “momento” do controle jurisdicional de
constitucionalidade das leis se dá na Áustria, a partir das lições de
Hans Kelsen (1881-1973), com a previsão na Constituição Federal de 1º de
outubro de 1920 de um órgão especial, ali denominado de “Corte
Constitucional”, especialmente vocacionado para o controle concentrado
de constitucionalidade dos atos normativos. De fato, é lícito afirmar,
porque convencionado, que na Áustria surge o modelo continental/europeu
de controle jurisdicional de constitucionalidade das leis, mais como
ponto de chegada do que de partida, é verdade, tendo em vista esboços e
modelos pensados anteriormente a Kelsen e as inúmeras tentativas, após a
Primeira Guerra Mundial, de adoção de modelos de constitucionalidade
realizadas em constituições de vários países europeus. No controle
europeu típico, tem-se – sendo essa, certamente, a sua característica
mais marcante –, ao contrário do americano, um único tribunal,
geralmente chamado de Tribunal ou Corte Constitucional, competente para
apreciar, de modo concentrado, direto e em abstrato (às vezes, em
concreto), a constitucionalidade das leis (entendida aqui em sentido
lato, para abarcar outros atos normativos).
Por fim, é importante registrar que a ideia do controle
jurisdicional de constitucionalidade das leis se espalhou por vários
países do mundo. Por vezes, seguindo o modelo americano, como foi ou é o
caso do Japão, países da Commonwealth, Suíça, Noruega, Dinamarca,
Suécia, Grécia, Romênia no começo do século, Alemanha de Weimar, Itália
nos anos de 1948 a 1956, países da América Latina (como o Brasil),
Irlanda, Filipinas e por aí vai. Às vezes, seguindo o modelo europeu,
como foi ou é o caso da Áustria, Itália, antiga Alemanha Ocidental,
Alemanha Unificada, Brasil, Chipre, Turquia, Peru, antiga Iugoslávia,
antiga Tchecoslováquia, Portugal e Espanha, entre outros. E temos,
ainda, casos como o do nosso país que, como vocês já devem ter notado
pela presença dele nas duas listas acima, “joga” – e, infelizmente, é
“medalha de ouro” no terrível “esporte” de número de demandas – nas duas
modalidades de controle.
Marcelo Alves Dias de Souza
Procurador Regional da República
Doutor em Direito (PhD in Law) pelo King’s College London – KCL
Mestre em Direito pela PUC/SP |
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