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22/09/2015


 
 

 
  
Marcelo Alves
 

Sobre “O sol é para Todos” (I)
Há alguns anos, quase numa só tirada, escrevi aqui, misturando Cinema e Direito, sobre alguns “filmes de tribunal”, que, em inglês, como uma subdivisão do gênero “legal films” (filmes cujo enredo, de uma forma ou outra, tem considerável ligação com o Direito), são chamados de “trial movies”, “trial films” ou “courtroom dramas”. Se a memória não me prega uma peça, dei aqui meus pitacos sobre clássicos desse (sub)gênero, tais como “Doze Homens e uma Sentença” (“12 Angry Men”, de 1957, dirigido por Sidney Lumet e com Henry Fonda no papel do jurado que, no confinamento da sala secreta, obstando a unanimidade, consegue convencer os demais onze jurados para fins de absolvição do jovem réu), “Testemunha de Acusação” (“Witness for the Prosecution”, de 1957, talvez o melhor dos “courtroom dramas”, dirigido por Billy Wilder e baseado em peça homônima de Agatha Christie) e “Anatomia de um Crime” (“Anatomy of a Murder”, de 1959, filme de Otto Preminger, estrelado pelo queridíssimo James Stuart).

À época, prometi, um dia, (re)assistindo mais um tanto desses grandes “filmes de tribunal”, voltar a escrever sobre o tema. Cumpro hoje minha promessa, tratando de “O Sol é para Todos” (“To Kill a Mockingbird”, no original), filme de 1962, baseado no romance homônimo (de 1960), vencedor do prêmio Pulitzer (de 1961), da escritora norte-americana Harper Lee (1926-).

Confesso que a escolha de “O Sol é para Todos” (“To Kill a Mockingbird”) para retomar a temática dos “filmes de tribunal” não foi aleatória. Foi motiva pelo recente lançamento, nos Estados Unidos da América, do novo livro da escritora Harper Lee, “Go Set a Watchman”, redigido nos anos 1950 como um primeiro esboço do romance “O Sol é para Todos” (“To Kill a Mockingbird”). “Go Set a Watchman” tem causado polêmica nos EUA e, talvez por isso mesmo, ali batido recordes de venda. Para se ter uma ideia, em “Go set a watchman”, Atticus Finch (personagem principal da trama) é um homem racista e intolerante, em claro contraste com o Atticus Finch de “O Sol é para Todos” (no filme maravilhosamente interpretado por Gregory Peck), advogado honrado que, no conservador Alabama pós Crise de 1929, defende um homem negro, acusado de haver estuprado uma jovem branca. Com lançamento no Brasil previsto para outubro (pelo que sei), “Go Set a Watchman”, muito provavelmente, será assunto, no futuro, de uma nova conversa nossa por aqui. Essa é minha intenção, pelo menos.

Sobre o filme “O Sol é para Todos” (“To Kill a Mockingbird”), é importante que se diga, antes de mais nada, que ele faz parte do período de ouro dos “trial films”, que vai dos últimos anos da década de 1950 aos primeiros da década de 1960 (de fato, já tive a oportunidade de registrar na crônica “Filmes de tribunal” que são desse período alguns dos maiores clássicos do gênero e, por que não dizer, do cinema como um todo).

Por sua qualidade, no Oscar de 1963, “O Sol é para Todos” acabou levando três estatuetas, melhor ator (Gregory Peck), melhor roteiro adaptado (por Horton Foote) e direção de arte em preto e branco, sendo o grande vencedor daquela edição, merecidamente, o premiadíssimo “Lawrence da Arábia” (“Lawrence of Arabia”, 1962), dirigido por David Lean.

Dirigido por Robert Mulligam, “O Sol é para Todos” conta no seu elenco com o premiado Gregory Peck (no papel de Atticus Finch), Mary Badham (Jean Louise “Scout” Finch), Phillip Alford (Jem Finch), John Megna (Dill Harris), Brock Peters (Tom Robinson), James Anderson (Bob Ewell), Robert Duvall (Arthur “Boo” Radley), Wilcox Paxton (Mayella Ewell), Estelle Evans (Calpurnia), Rosemary Murphy (Miss Maudie Atkinson), Frank Overton (Xerife Heck Tate) e Paul Fix (Juiz Taylor), entre outros.

No livro “100 filmes: da literatura para o cinema” (organizado por Henri Mitterand; publicado no Brasil, em 2010, pela editora BestSeller), o enredo de “O Sol é para Todos” está assim competentemente resumido: “Estado do Alabama, Grande Depressão da década de 1930 [precisamente, 1932]. Desde a morte da mulher, Atticus Finch, advogado idealista, cria sozinho os dois filhos, Scout [que narra, em forma de “flashback”, toda a estória] e Jem. Encarregado de defender um operário negro [Tom Robinson] acusado de espancar e violentar uma jovem branca [Mayella Ewell], Atticus enfrenta o ódio e o racismo da população local, em um julgamento de grande repercussão. Após uma tentativa de linchamento comandada pelo pai da vítima, Bob Ewell, o operário é condenado, apesar das provas de sua inocência. Desesperado, ele tenta fugir, e é abatido. Algum tempo depois, Scout e Jem são brutalmente agredidos por Ewell, mas Boo Radly, vizinho simplório [e com visíveis transtornos psiquiátricos] da família Finch, interfere e mata acidentalmente o agressor. O caso é abafado por Atticus e pelo xerife da cidade, tanto mais que uma forte suspeita recai sobre Ewell no caso do estupro de sua filha”.

“O Sol é para Todos” tem tudo que se requer de um excelente “trial movie”. Parte da estória se passa perante uma corte de justiça em pleno funcionamento, com advogado, promotor, juiz e júri realizando suas performáticas peripécias jurídicas. Como pano de fundo filosófico, há a tensão entre a falibilidade/hipocrisia/injustiça do sistema (ou da “justiça humana”) e a noção, com forte apelo no Direito Natural e na igualdade entre os homens, do que é a verdadeira Justiça. No mais, ao lado da imaginação poética da infância encarando a realidade da vida dos adultos (que seria o enredo “humano” do filme), o enredo “jurídico” de “O Sol é para Todos” foca no advogado generoso e idealista que é Atticus Finch, no controverso instituto do júri e, sobretudo, na absurdez de uma justiça (e de uma sociedade como um todo) racista e desigual.

Embora “O Sol é para Todos” possa nos levar, em alguns momentos, a visões equivocadas sobre a realidade do sistema judicial norte-americano (afinal, essencialmente, como quase todos os “filmes de tribunal, ele é uma obra de ficção), vale muito a pena estudar alguns dos seus temas “jurídicos”.

E é isso que faremos, se Deus permitir, na semana que vem.

Marcelo Alves Dias de Souza
Procurador Regional da República
Doutor em Direito (PhD in Law) pelo King’s College London – KCL
Mestre em Direito pela PUC/SP

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