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12/09/2015

A Carta de Américo Vespúcio



Copiada por João Felipe da Trindade
Natal, RN
Do livro “O Brasil de Américo Vespúcio”, de autoria de Riccardo Fontana, Editado pela UnB, extraímos uma carta que interessa a todos norte-rio-grandenses. Ricardo, italiano de naturalidade, casou-se com uma brasileira e veio morar no Brasil. 

Nessa carta a confirmação da posse das terras para o Rei Dom Manuel, que se realizou com o famoso Marco de Touros, que se encontra, hoje, na Fortaleza dos Reis Magos. Mais ainda a história trágica do canibalismo dos nossos índios. Vale a pena ler uma carta escrita de próprio punho por quem esteve aqui na nossa Costa. Aliás, essa foi a segunda vez que andou pelo Rio Grande do Norte, sendo a primeira patrocinadas por Dom Fernando de Castela.

Encontrava-me em Sevilha para descansar de minhas tão grandes fadigas que tinha afrontado nestas duas viagens feitas para o sereníssimo rei Fernando de Castela nas Índias Ocidentais, e com vontade de voltar à terra das pérolas, quando o destino, não contente com as minhas tribulações, não sei como pôs na mente deste sereníssimo rei dom Manuel de Portugal querer  servir-se de mim. Estando em Sevilha sem absolutamente imaginar ir a Portugal, chegou a mim um mensageiro com uma carta de sua Real Coroa, onde me rogava que viesse a Lisboa falar com Sua Alteza, prometendo oferecer-me recompensa. Fui aconselhado a que não fosse, mandei de volta o mensageiro dizendo que estava mal e que, quando me tivesse restabelecido, Sua Alteza, poderia então contar com os meus serviços e faria quanto me ordenasse. Visto que não podia contar comigo, decidiu mandar-me Giuliano di Bartolomeu di Giocondo, residente em Lisboa, com a missão de levar-me de qualquer maneira. O dito Giuliano veio a Sevilha e, por causa de sua vinda e dos seus rogos, fui forçado a vir, de forma que a minha partida foi mal interpretada por quantos me conheciam, pois partia de Castela onde recebera honrarias e o rei me tinha em boa conta; e a coisa pior foi que parti como hóspede sem ser saudado. Apresentando-me diante deste rei,k ele mostrou ter prazer com a minha vinda e pediu-me que partisse com três navios seus que estavam prontos para ir descobrir novas terras. E como o pedido de um rei é uma ordem, tive de consentir em quanto me rogava.

Zarpamos deste porto de Lisboa com três navios de reconhecimento, no dia 13 de maio de 1501, e tomamos nossa derrota diretos à ilha da Grande Canária e passamos, sem desembarcar, à vista dela e dali seguimos costeando a orla da África pela parte ocidental. Nesta cosa nos entregamos à pesca de uma espécie de peixes chamados pargos; ali nos detivemos por três dias e seguimos para costa da Etiópia (África negra), para um porto que se chama Beseneghe (Dacar, Senegal), que se encontra dentro da zona tórrida, sobre o qual o Polo Setentrional se eleva a 14º e meio, estando situado no primeiro clima; ali ficamos onze dias reabastecendo-nos de água e lenha. Com efeito, a minha intenção era navegar para o austro atravessando o golfo (oceano) Atlântico. Partimos deste porto da Etiópia e navegamos com vento sudoeste tomando (a direção) de uma quarta de meio-dia, de modo que, em 97 dias chegamos a sua terra que se encontrava a setecentas léguas para sudoeste do dito porto. Durante esses 97 dias deparamos com o pior tempo que mal poderia enfrentar quem navega no mar, por causa de muitos aguaceiros, redemoinhos e tormentas que nos aconteceram, pois viajamos numa estação muito adversa, devido ao fato de a característica da nossa navegação ser continuamente paralela à linha equinocial (onde no mês de junho é inverno) e descobrimos que o dia era igual à noite e que a sombra era contínua para o sul. Prouve a Deus mostrar-nos uma nova terra, o que ocorreu no dia 17 de agosto (1501). Ali ancoramos à distancia de meia légua, arriamos os nossos batéis e fomos ver se a terra era habitada e por qual tipo de gente. Descobrimos que era habitada por gente pior que animais. Contudo, poderás entender que no começo não vimos, mas percebemos bem que era habitada graças a muitos indícios que se viam. Tomamos posse daquela (terra) por aquele sereníssimo rei. Achamos que era uma terra muito amena, verdejante e de boa aparência. Encontrava-se a 5º par lá da linha equinocial rumo sul e, por isso, não retornamos aos navios e, por termos grande necessidade de água e lenha concordamos em voltar a terra no dia seguinte para nos abastecermos do necessário. Estando em terra, avistamos gente no alto do monte que (nos) observava sem ousar descer, pois estavam nus e tinham a mesma cor e feições dos outros descobertos nas viagens passadas por mim para o rei de Castela. 

Esforçamo-nos com eles para que viessem falar conosco, mas jamais conseguimos tranquilizá-los, tanto que não tiveram confiança em nós. Dada a sua obstinação (e por já ser tarde), voltamos aos navios, deixando-lhes em terra muitos guizos, espelhos e outras coisas à vista deles.

Quando chegamos alto-mar, desceram do monte e vieram (buscar) as coisas que deixamos para eles, mostrando ter grande maravilha. Nesse dia, somente nos abastecemos de água.

Na manhã seguinte, vimos dos navios que a gente fazia muita fumaça em terra, pensamos que nos chamavam, fomos a terra e ali comprovamos que tinham vindo muitas tribos e, não obstante, permaneciam distantes de nós e faziam acenos para que seguíssemos com eles para o interior. Por isso, dois dos nossos cristãos vieram rogar ao capitão que lhe desse licença para correrem  o risco de ir com eles a terra a fim de observarem que gente era e se possuía alguma riqueza ou especiarias ou drogas. Tanto instaram que o capitão foi convencido (a deixá-los ir). Tendo recolhido muito material de resgate, partiram com instruções de não demorarem mais de cinco dias em voltar, pois só por esse período os iríamos esperar.

Encaminharam-se para terra e nós ficamos esperando por eles nos navios. Quase todo dia vinha gente à praia, mas não queriam nos falar. No sétimo dia, fomos a terra e notamos que haviam trazido suas mulheres, e, mal desembarcarmos, os homens daquela terra mandaram muitas delas falar conosco, e visto que não se fiavam em nós, decidimos mandar-lhes um homem dos nossos que era jovem muito oferecido, e nós, para ajudá-lo, entramos nos batéis e ele caminhou em direção às mulheres. Chegando junto delas, rodearam-no, tocando-o e olhando-o e fazendo cara de espanto. Enquanto isto acontecia, vimos uma mulher descer do monte trazendo na mão um grande pau; mal chegou aonde estava o nosso cristão veio atrás dele e, levantando o pau, deu-lhe uma pancada tão violenta que o estendeu morto por terra. Imediatamente as outras mulheres o agarraram pelos pés e o arrastaram para o monte, e os homens desceram à praia e com os seus arcos começaram a atirar-nos setas, infundindo tanto medo em nossa gente (os batéis estavam encalhados em bancos de areia) que, devido às inúmeras setas que se cravavam nos batéis, ninguém conseguia pegar em armas. Não obstante, disparamos contra eles quatro tiros de bombarda, mas sem os atingir. Porém, ouvindo o estrondo, fugiram todos para o monte onde estavam as mulheres despedaçando o cristão e assando-o à nossa vista numa grande fogueira que tinham feito, mostrando os diversos pedaços e comendo. Os homens, por sinais, queriam explicar como haviam morto e devorado os dois, o que muito nos angustiou. Ver com os nossos olhos a crueldade que fazia com o morto foi para todos nós uma injúria intolerável.

Mais de quarenta dos nossos tinham intenção de desembarcar e vingar uma tão cruel morte e um ato bestial e desumano, mas o capitão-mor não quis permitir e nós ficamos cheios de tanta raiva que nos afastamos daquela gente com má vontade e envergonhando-nos muito do nosso capitão.

Partimos desse lugar e iniciamos a nossa navegação entre levante e sueste, e assim íamos costeando e fazendo muitas escalas, sem encontrar mais gente com que quiséssemos conversar. Navegamos tanto que notamos que a terra fazia a volta para sudoeste. Mal dobramos um promontório ao qual demos o nome de cabo de Santo Agostinho, começamos a navegar para sudoeste.

Este promontório dista da referida terra que vimos, onde mataram os cristãos, 150 léguas para levante; e este mesmo promontório encontra-se 8º além da linha equinocial para sul.

Enquanto navegávamos, avistamos um dia muita gente que estava na praia admirando a beleza dos nossos navios, continuando a navegar fomos em sua direção, ancoramos num bom local, desembarcamos com batéis e notamos que esta gente era de melhor nível que a precedente. Embora custasse domesticá-la, fizemos amizade e negociamos com ela. Permanecemos neste lugar cinco dias e ali achamos cássia muito grossa, verde e seca (de altura superior) ao cume das árvores. Decidimos levar dois homens deste lugar, a fim de nos ensinarem a língua; vieram três deles, de livre vontade, para irem a Portugal.

Já cansado de tanto escrever, saiba que partimos deste porto navegando sempre para sudoeste à vista de terra, fazendo continuamente muitas escalas e falando com numerosa gente.

Andamos tanto em direção ao sul que já estávamos para além do Trópico de Capricórnio, onde o Polo Meridional se eleva 32º acima do horizonte. Já havíamos perdido completamente a Ursa Menor, e a Maior aparecia muito baixa e quase se mostrava no limite do horizonte, orientando-nos pelas estrelas do outro Polo Meridional, que são numerosas e bastante maiores e mais brilhantes que as do nosso polo.

Desenhei as figuras da maior parte delas e sobretudo das de primeira e maior grandeza, com a descrição de seus círculos que faziam em torno do Polo Austral e com a descrição de seus diâmetros e semidiametros, como se poderá ver nas minhas Quatro Jornadas.

Percorremos cerca de 750 légua desta costa, ou seja 150 do cabo de Santo Agostinho para o poente, e seiscentos para o sudoeste.

Se quisesse relatar  de novo as coisa que vi nesta costa e aquilo por que passamos, não me bastariam outras tantas folhas.

Nesta costa não vimos coisas preciosas, salvo infinitas árvores de verzino e de cássia e as que produzem a  mirra, e outras maravilhas da natureza que não se podem contar. E sendo já transcorridos dez meses de viagem, e visto que nesta terra não achamos nenhum minério, decidimos afastar-nos dela e seguir, enfrentando o mar em outra parte.

Feita a nossa reunião, foi deliberado que se continuasse aquela navegação que me parecesse oportuna, e foi-me confiado o comando total da armada. Ordenei então que toda a tripulação da frota fizesse reabastecimento de água e de lenha para seis meses, sendo este o período que os oficiais dos navios julgaram possível navegar com tais aprovisionamentos.

Terminado o reabastecimento nesta terra, começamos a nossa navegação para sueste, sendo o dia 15 de fevereiro (1502), quando o Sol se ia avizinhando do equinócio e voltava para este nosso Hemisfério Setentrional. E tanto navegamos com este vento que nos distanciamos tanto que o Polo Meridional se erguia bem a 52º fora do nosso horizonte. E não víamos mais nem as estrelas da Ursa Menor nem as da Ursa Maior. Estávamos já distantes do porto de onde partimos umas quinhentas léguas para sueste, e isto ocorreu no dia 3 de abril. Nesse dia começou no mar uma tempestade tão violenta que nos fez amainar todas as nossas velas, que corriam sobre a árvore nua com muito vento, que era sudoeste com enormes ondas. E o ar estava muito tormentoso e a tempestade era tão forte que toda a frota tinha um grande temor. As noites eram muito longas, tanto que no dia 7 de abril tivemos uma noite que durou quinze horas, pois o Sol se encontrava no final de Áries e nesta região era inverno, como bem podes avaliar.

Prosseguindo nesta tempestade, no dia 7 de abril avistamos uma nova terra, que percorremos por cerca de vinte léguas e observamos que toda ela era uma costa selvagem e não achamos nenhum porto ou população. Julgo que por ser o frio tão intenso nenhum membro da tripulação conseguia encontra defesa ou suportá-lo. De modo que, vendo-nos em tamanho perigo tormenta que mal se podia enxergar, de um para outro navio, por causa das grandes ondas que se formavam e pela forte cerração, decidimos junto com o capitão-mor fazer sinal à frota para que nos alcançasse e nos afastássemos da terra e tornássemos a caminho de Portugal.

Foi uma ótima decisão. Pois certamente, se tivéssemos demorado mais aquela noite, estaríamos perdidos. Com efeito, como recebêssemos o vento de popa, nessa noite e no dia seguinte, voltou tão forte a tormenta que estivemos em dúvida de nos perder e tivemos de fazer ritos e outras cerimônias, como é uso dos marinheiros em tais aflições. Navegamos por cinco dias e, como quer que seja, íamos nos aproximando da linha equinocial e com um tempo e mar mais moderados, e prouve a Deus pôr-nos a salvo de um tão grande perigo. A nossa navegação era com vento entre norte e nordeste, visto que a nossa intenção era ir reconhecer a costa da Etiópia, já que estávamos distante dela 1300 léguas, no golfo do mar Atlântico e, com a graça de Deus, a 10 de maio  alcançamos uma terra a sul que se chama Serra Leoa, onde permanecemos quinze dias concedendo-nos um pouco de restauro. Daqui partimos tomando nosso rumo às ilhas dos Açores, distantes daquele lugar de Serra Leoa cerca de 750 léguas, e chegamos às ilhas no fim de julho, onde ficamos outros quinze dias desfrutando de algum repouso. Dali partimos para Lisboa, de onde distávamos mais de trezentas léguas para ocidente, e entramos neste porto de Lisboa no dia 7 de setembro de 1502 sãos e salvos, graças a Deus, somente com dois navios, pois o outro o queimamos na Serra Leoa, por não poder mais navegar. Levamos nesta viagem cerca de quinze meses, durante os quais navegamos sem ver a estrela do Norte ou a Ursa Maior e Menor, que se chamam de chifre, orientando-nos pelas estrelas do outro polo. Isto foi o que eu vi nesta viagem ou jornada feita para o sereníssimo rei de Portugal.


Marco da Posse de Portugal, trazida por Américo Vespúcio

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