CEARÁ-MIRIM, VALE DOS FARAÓS
Edgar Barbosa
A trinta e poucos quilômetros daqui, no percurso da Central e à margem de um vale sussurrante, dorme Ceará-Mirim. A cidade que já foi um dos nossos empórios e hoje é, lamentavelmente, uma recordação quase triste.Dorme o burgo melancólico, e a sua letargia é a daquela princesa adormecida da fábula, esperando em sonhos o cavaleiro romântico que a viesse
despertar. Na verdade, Ceará-Mirim com o seu vale extenso e fecundo já tem sido a preocupação mais entusiasta de alguns governos, e o seu caso grave e retumbante foi lembrado com boas intenções em algumas plataformas. O problema de Ceará-Mirim, sempre que tem estado em ordem do dia, e não tem sido poucas vezes, chama a atenção de engenheiros e industriais que sobre ele opinam largamente. A questão é bastante conhecida, tendo dissertado a seu respeito, entre outros, técnicos do valor de Antônio Olinto, Henrique de Novais e Júlio Rezende. Dos estudos que se fizeram ressaltam duas necessidades – o dessecamento e a irrigação racional do vale famoso – tentados em eras distantes pelos engenheiros Gustavo Dodt e Feliciano Martins. Ambos, no tempo do Império, construíram canais que ainda hoje prestam serviços à agricultura ceará-mirinense, conquanto estejam quase aterrados devido à má conservação. O problema é portanto o de um rio que, com enchentes que carregam para o vale sedimentos e detritos, constrói aterros permanentes que determinam o transvasamento das águas nos terrenos adjacentes. Já se pensou na construção de uma barragem um pouco acima do vale, em Taipu, e no estabelecimento de um sistema de canais de irrigação, mas o dispêndio elevado que exigem essas obras desanimou o interesse e a boa vontade do município e do Estado pela sua efetivação. Só há um meio, a colaboração federal, que bem poderia executar a útil empreitada, presenteando o Estado a si própria com um tesouro de incalculáveis recursos. Da solução do caso de Ceará-Mirim dependem interesses tão valiosos, de ordem financeira e econômica, que se a União estivesse mais próxima e melhor informada para prevê-los ou avaliá-los, logo se abalançaria a beneficiar o vale vizinho. Dissecada e limpa aquela concavidade exuberante, desapareceriam dela como por milagre o impaludismo e outras mazelas que ali campeiam, e Ceará-Mirim voltaria a ser, como foi no Império, um dos celeiros mais fartos do Rio Grande do Norte. Mas Ceará-Mirim, além desse problema de pura hidrografia, atemorizante apenas para os leigos que, como nós, deles se aventuram a tratar, possui outros casos transcendentes e misteriosos dos quais nem vale a pena falar. São casos que pertencem mais à arqueologia e a essas outras ciências empíricas e profundas que exumam sarcófagos e vão bisbilhotar na poeira venerável dos séculos o sono calmo das múmias. Entretanto, aquela dormência que Ceará-Mirim aparenta, e que dá a seu vale verdejante um silêncio tumular de vale egípcio onde jazem faraós e onde descansam deuses, tem de quando em vez um hiato de energia e de força. Fere o céu, ecoa pelas quebradas, atravessa os canaviais, o grito alegre do trabalho de alguns engenhos e de duas ou três usinas. É meia dúzia de homens que ali desafiam o rio traiçoeiro e lutam contra a pasmaceira ambiente e conseguem o milagre de enriquecer numa terra onde quase todos fazem questão de continuar pobres. São alguns persistentes e tenazes que sabem o que vale uma indústria, ainda mesmo combalida por dezenas de dissabores, e confiam no prestígio do açúcar, que permanece imutável desde a escravidão e que nunca desfavoreceu os que dela vivem. Perdem muito tempo os que, de braços cruzados, aguardam o beneficiamento do vale. Infelizmente, o governo ainda custará a resolver ativamente o velho problema, e o vale pródigo lá está para retribuir com muito o parco cultivo que lhe deram. Não consintam os ceará-mirinenses que a grande herança dos seus avós, a terra onde os seus antepassados trabalharam, o vale que construiu a Ceará-Mirim dos antigos dias, a cidade do luxo, das carruagens e da aristocracia açucareira, pereça e se transforme aos olhos dos passantes em um vale de faraós, perdido e inútil, ou que seja empolgado pelos adventícios atraídos pela sedução daquele tesouro. Não queira os ceará-mirinenses que a sua cidade, a nossa cidade, cidade verde, se estiole e arruíne à mingua de homens, e que fique à margem do caminho como uma tradição e um exemplo tristonho de desfalecimento. Não consintam nem queiram os meus corajosos conterrâneos a decadência, o desânimo e a fraqueza, que seriam a maior injúria lançada à terra fértil e dadivosa. Trabalhem, antes, com as possibilidades que tiverem, para que o nosso município volte à vanguarda econômica do Rio Grande do Norte e para que o nosso vale, enchendo-se de chaminés fumegantes e altaneiras, não inspire somente entusiasmos líricos aos governos e versos bucólicos aos poetas. 21.03.1934 NOTA: fragmento extraído do livro Artigos e crônicas de Edgar Barbosa: volume I (1927-1938)/Organização, seleção, apresentação e notas de Nelson Patriota – Natal, RN: EDUFRN, 2009. O texto foi originalmente publicado com o pseudônimo de de José Antônio, bastante utilizado por Edgar Barbosa |
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