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07/05/2015


Discurso de posse na Academia Cearamirinense de Letras e Artes Pedro Simões Neto - ACLA, pronunciado em 05 de maio de 2015, na Estação das Artes, Ceará-Mirim/RN, por GUSTAVO LEITE SOBRAL, ocupante da Cadeira 20, Patrono Francisco de Sales Meira e Sá



ACERCA DA TERRA DOS MEUS

Machado de Assis, doce de coco; Pedro II, doce de figo; Rui Barbosa, doce de batata; Raquel de Queiroz, cocada; Graciliano 
Ramos, doce de laranja cristalizado; e Guimarães Rosa, doce de laranja da terra, e com uma ressalva, caseiro – eis a lista de preferência dos doces, levantada por Gilberto Freyre, que declara em Açúcar , o açúcar preferência nacional. É ainda Gilberto Freyre quem aponta que, vinda da ilha da Madeira, começa a tão antiga história da cana-de-açúcar no Brasil. Cascudo anota que no Rio Grande do Norte tudo partiu de Porto Mirim e Muriú, chegando primeiro ao vale do rio Ceará-Mirim a criação de gado e a notícia que ali se poderia fazer engenhos de açúcar. “Foi na embocadura do Baquipe, ou rio Pequeno (depois Ceará-Mirim), escreve Gilberto Osório, que os filhos de João de Barros [donatário da Capitania Hereditária do Rio Grande], vindos do Maranhão após a morte do parceiro do pai, Aires da Cunha [também donatário da mesma capitania], encontraram os franceses mancomunados com a indiada no comércio clandestino de pau-brasil. Isso aconteceu ai por 1535 ou 1536: antes, portanto de fundar-se a cidade do Natal” . 

Mas não se fizeram os engenhos. O rio Ceará-Mirim, irregular, não chegava a constituir correnteza necessária para mover os engenhos d´água. E assim dormiu o vale até 1845, quando implantam a primeira moenda movida à força animal, e nasceu então o primeiro engenho. Desperta a briosa vila do Ceará-Mirim, e começa a história de seus engenhos, seus bueiros e seus senhores. Vale em que, escreve Nilo Pereira, “surgiu com o ciclo da cana de açúcar a família única dos senhores de engenho – única pelos sentimentos, pela afeição à terra, pela grandeza do trabalho, pelas raízes morais e emocionais” . Um mundo. E neste mundo cabe, como nos versos do poeta Paulo de Tarso Correia Melo ,

Neste mundo cabe
passado, futuro
e fantasia
sonho, memória
e profecia
neste mundo
cabe a vida e a morte
o ser, o devir
e o poderia

Foi quando chegou o tempo. E aquele homem de barba branca previu em sonho, que morto seria conduzido pelos trabalhadores do seu engenho, e de outra maneira não teria sido. O cortejo seguiu pelo vale até o cemitério de Ceará-Mirim, onde está sepultado. Olhos azuis, leitor de A Republica, membro do partido popular, filho de um português imigrante. Terno, bengala, mancava de uma perna e possuía um cavalo baixeiro em que ainda montava. O trole reservava para longas viagens. Uma delas foi para comprar as ferragens de seu engenho. Já a mulher, era filha do bacharel Manoel Hemetério Raposo de Melo, homem importante, sisudo, dos fundadores do Instituto Histórico e Geográfico do Rio Grande do Norte, cujas filhas casaram-se com os senhores de engenho do vale do Ceará-Mirim. No vale viviam estes bisavôs e toda esta família.

A primeira mulher, então falecida, a irmã dela veio ajudar aquele homem a criar os filhos órfãos, e se casaram, formaram e educaram toda uma família, incontáveis gerações. Chamava-se João Xavier, o Joca, o bisavô; e Maria Umbelina, a Iaiá, a bisavó, e viviam no engenho Espirito Santo e Laranjeiras, de sua propriedade. Casa grande, plana, comprida, ao engenho se irmanava. O engenho era a fábrica de se produzir açúcar, os torrões transportados em lombo de animal até Igapó e ali de canoa pelo Potengi até os armazéns da Ribeira Em Natal. Aquele engenho era movido a besta na almajarra, nele conduziam a lida, tirador de cana, cambiteiro, mestre do açúcar, os trabalhadores do engenho. A cana plantada no solo de massapê, fértil, rico, fecundo, que bebia no rio Ceará-Mirim.

Engenho em um único edifício abrigava todas as funções para o fabricação do açúcar, moenda, caldeira, casa de purgar e lá no alto o bueiro. Ainda havia a pastagem dos animais, o sítio de fruteiras, as mais diversas, e um roçado. A manga bacuri de Laranjeiras era o sabor inesquecível daquele tempo e luzia feito gemas nos caçuas de cipô, escreveu sinhazinha Magdalena Antunes , ainda menina vendo a feira. O caldo que escorria da moenda seguia para o paiol e do paiol para os tachos aquecidos pelo fogo da fornalha onde começava o cozimento e as chamas subiam o bueiro e ganhavam todo o vale. Formava-se o mel de engenho que seguia para bater e depois para a casa de purgar onde era despejado nas formas, assim o melaço terminava de cristalizar e virava o mais doce açúcar. E assim viviam.

A mesa de refeições tinha para mais de vinte metros, numa cabeceira seu Joca, noutra dona Iaiá, o banho tomavam no banheiro novo de alvenaria que fizeram lá por trás da balança, no rio Azul, onde nadavam e picavam piabas. Alvoroço foi quando mataram uma jararaca. À noite, acendiam os candeeiros. Serafina, Adelaide e Isabel aprumaram discos no gramofone, bastava dar a corda para funcionar, e todos dançaram. Manoel tocava sanfona, Paulo fazia retratos e foi estudar medicina no Recife. Paulo ao mudar-se para faculdade da Bahia, deixou firme o noivado com a prima Abigail do Recife. Casaram-se, subiram a Serra do Martins e depois vieram parar em Ceará-Mirim. Avós meus, neles nasceram em mim o Ceará-Mirim que existia, e os bisavôs tomaram sentido e vida nos retratos, e a família, e o bueiro fumegando, e os tios Joaquim, João, José e os outros, e os primos. Francisco, um tio-avô, morava em Minas Gerais, e escrevia ao pai, Joca:

Papai, 
Há muitos meses que não tenho notícias diretas suas, apenas o Paulo, ultimamente, me tem escrito, falando-me a seu respeito. Não sei se V.Mcê recebeu uns livros que mandei escritos por mim quando estava no Rio. Tenho muito que contar e estou agora em Alto do Rio Doce, que tem melhor clima e o povo goza de muita saúde. V.Mcê deve ter conhecido a Serra do Martins. Pois nem o frio de lá no inverno se compara com o calor de cá. Quando me lembro que o povo ai morre de sede enquanto a água aqui cascateia por todos os lados das montanhas mineiras, movendo engenhos de cana, moinhos de triturar milho e usinas de luz e força elétrica, tenho a impressão que Deus esqueceu do Nordeste. Como vai V.Mcê? Todos ai vão bem? O Manuel já casou? Paulo comunicou-me do noivado dele ficando eu satisfeito porque a moça é nossa prima do Recife, em 1925, era a mais bonita da capital. Não sei se algum dia voltarei ai. Dalila está sofrendo de uma aneurisma no coração, proibida de qualquer viagem por terra ou por mar. Além disso, os meus interesses aqui não me deixariam ir a não ser a passeio. Espero em Deus que a minha sorte se forme de uma vez e que eu possa algum dia ser útil ao nosso país e àqueles que precisam de mim. Recomende-me a Iaiá e aos de casa. Abençoe-nos a todos, Francisco, Alto do Rio Doce, 4-5-1932.

Assim o álbum de família começou a ser recolhido na composição inacabada da genealogia da família que terminei por não terminar. Tudo começou a se escrever para contar a história desses bisavós e avós, todos. Nascia em mim o Ceara-Mirim que existia no caminho de passagem pelos engenhos, nas conversas sobre as coisas antigas com os tios-avôs José, João, das lembranças de menina de Lourdinha, nas risadas do mestre Tião Oleiro que contava, nos poemas de Adelle Sobral de Oliveira, na história da mordida da raposa, no acidente que houve certa vez na caldeira, no traço de luz em óleo nas telas de Thomé Filgueira. O Ceará-Mirim estava em todo o lugar, e tudo tocou a se transformar em história, no rastro de todo este acervo de memória que se contará no livro que há de nascer um dia.

OBRAS CONSULTADAS
FREYRE, Gilberto. Açúcar: uma sociologia do doce, com receitas de bolos e doces do Nordeste do Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 1997
FREYRE, Gilberto. Açúcar: uma sociologia do doce, com receitas de bolos e doces do Nordeste do Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 1997
CASCUDO, Luis da Câmara. História do Rio Grande do Norte. Ministério da Educação e Cultura, s/d
ANDRADE, Gilberto Osório. Os rios do açúcar do Nordeste Oriental: o rio Ceará-Mirim. Ministério da Educação e Cultura. Publicações do Instituto Joaquim Nabuco de Pesquisas Sociais. Imprensa Oficial, Recife, 1957, p.30
PEREIRA, Nilo. Apud ANTUNES, Magdalena. Oiteiro: memórias de uma sinhá-moça. 2ed. Natal: A.S. Editores, 2003,p.248-249
CORREIA, Paulo de Tarso. Sabença. In: CORREIA, Paulo de Tarso. Talhe Rupestre: poesia reunida e inéditos. Organização, introdução e notas Carlos Newton Júnior. Natal/RN: Edufrn, 2008, p.360
ANTUNES, Magdalena. Oiteiro: memórias de uma sinhá-moça. 2ed. Natal: A.S. Editores, 2003,p.201

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