Páginas

10/03/2015

B E M P E R T O D E B U E N O S A I R E S



GILENO GUANABARA, sócio efetivo do IHGRN

Mês de dezembro de 1968, em Natal. O Cinema Rio Grande apresentou uma das obras primas de Luís Buñuel: La Belle de jour (A Bela da Tarde-1967, com Catherine Deneuve).  Tratava de uma adaptação do que se chamou “romance burguês”, escrito por Josefh Kessel que, na visão de Jean-André Fieschi, (La Nouvelle Critique, n. 58, 1972), comporta a vida de três mulheres – Célestine, Séverine, e Trinstane. Uma delas, ao mais se aproximar do pecado mais cria força e personalidade. No caso, a vida dupla de uma mulher, do lar durante a maior parte do dia e prostituta, ao anoitecer, quando então recebia os clientes sadomasoquistas num quarto de bordel. Um drama real feminino que retratava a força que muitas mulheres sentem numa sociedade repressora e em crise de valores morais. O drama solitário de uma transformista se valoriza pelo rigor da dúvida com que Buñuell suscita com humor sobre o que faz a trama da vida em cada um.
O viés pecaminoso individual torna-se maior, na resposta cinéfilo-pantagruélica do mesmo Buñuel, com o filme Le Charme Discret de la Bourgeoisie (O Discreto Charme da Burguesia – 1972). Neste, um Buñuel que aborda os princípios do adultério burguês, no conflito entre o real e o sonho, quando confessa estar no real, (mas) estamos no irreal. Buñuel, o moralista, em busca dos falsos semblantes só comprováveis nas rígidas formas de civilidade burguesa, coisas próprias da coisificação inerentes ao egoísmo humano, já observado em La Belle de Jour.
Na Argentina da atualidade temos a História del Miedo (A História do Medo), de Benjamím Neishtat, que no circuito brasileiro recebeu o título de Bem Perto de Buenos Aires. O autor se arrasta na abordagem do limite humano, o medo, através de um suspense pesado, tema já observado pela sua conterrânea Lucrécia Mortel, em O Pântano. A fita retrata os efeitos da conurbação urbana e os grupos sociais, os problemas na violência, presentes em grandes metrópoles sul-americanas, a que Buenos Aires está incluída.
Brasil e Argentina, irmãs siamesas dos mesmos problemas, quadro decorrente da crise econômica que se prolonga anos após anos, lá e cá, revelam o esgotamento atual de seus projetos políticos mais recentes. Na Argentina contemporânea, em final do ciclo político kirchneriano, a questão que mais preocupa é a violência, embora a Argentina não se mostre ainda um palco acirrado de violência urbana. Está mais entre nós do Brasil, bem próximo da Argentina, no subconsciente coletivo o poder da violência e do crime.
São questões atuais da explosão social por que passam as megalópoles latino-americanas, onde os ricos se resguardam e criam seu diálogo em condomínios fechados, horizontais ou verticais, cercados de seguranças e de cercas, luxuosos, verdadeiros subterfúgios, onde trocam a linguagem do medo. A dimensão do clima de insegurança social entre ricos e pobres contamina também os excluídos em suas insatisfações, ao verem as suas vidas miseráveis abortadas de um sem-sentido, o que pode passar a ser moeda político/eleitoral da linguagem demagógica, já ultrapassada, porém vigente. Foi assim, com efeito, os “descamisados” do peronismo. É assim com as gangues dos jovens de rua, em Puerto Rico, menos politizadas do que os camisas pretas fascistas, na Europa do século passado.
A realidade urbana atual contrapõe a convivência dessas massas, alocadas em favelas ou cortiços aproximados de seus locais de trabalho, diante de condomínios verticais inteligentes, próprios para o apartheid social, cujos habitantes são detentores de condições econômicas que contrastam com os seus vizinhos. Desde as transformações posteriores a 1930, no Brasil, o Estado Social interveio, tendo em vista amenizar o conflito iminente, com o peso do intervencionismo da burocracia estatal (Ministério do Trabalho; legislação e Justiça do Trabalho; sindicalismo; instituições de previdência e assistência social, etc.).
Ao contrário do esperado, as ações estatais de protecionismo estimularam ainda mais as demandas, aumentando o número de contendas. A lei trabalhista alavancou, de ano para ano, um volume cada vez maior de postulações na justiça do trabalho, provocado pelo conhecimento disseminado dos direitos outorgados. O custo os empregadores agregaram no valor final da produção, gerando, de um lado, a expectativa de conquista econômica por parte dos assalariados e, do outro, de ônus transferido para o custo final a ser pago por todos, via inflacionária.
A partir da primeira metade dos anos de 1950, o modelo desenvolvimentista/populista começou a se exaurir, seguindo-se as várias crises políticas, a contar do ano de 1950, com a nova eleição de Getúlio Vargas, que teve como candidato ao cargo de vice-presidente, de fragilíssima representatividade nacional, integrante do quadro do PSP paulista, o então Deputado Federal pelo Rio Grande do Norte, João Café Filho. O cenário político agitado contaminou governos sucessivos, dado o confronto entre setores conservadores, liderados pela UDN, e o trabalhismo, aí incluídos os comunistas. Ao final, o desfecho trágico, o golpe de 1964, após as variadas tentativas golpistas anteriores, a par de um momento de convivência pacífica, durante o governo de Juscelino. Restou a industrialização sob a consagração da Petrobrás e a usina metalúrgica de Volta Redonda; a criação do polo metalúrgico; a inflação crescente; e a frágil política monetária que, apesar de tudo, favoreceu o avanço da fronteira econômica, arcando os altos custos da interiorização da Capital Federal, no Estado de Goiás.
Enquanto isso, as províncias de outrora se agigantaram, face a migração das massas engalanadas e atraídas pelo desenvolvimentismo econômico. Através do processo de emigração rural intenso, dos anos de 1950/60, tornaram-se metrópoles ingovernáveis, tal o recrudescimento das demandas sociais e da explosão da violência.
Observa-se em a História del Miedo o cuidado de não sediar os interesses sociais que visa, em se tratando de uma produção multinacional, o que facilita serem conduzidos de forma equidistante os personagens comuns e identificáveis nas grandes cidades sul-americanas e suas populações, com destaque a Argentina. No entanto, a crise urbana que reina nas grandes metrópoles da América do Sul facilita identificar os verdadeiros atores ou os seus bufões. Para isso, nada melhor do que lutar pela democracia.

   

Nenhum comentário:

Postar um comentário