Estranho seria
Conheci Antônio Augusto (cujo nome alterei um pouco aqui para dificultar a identificação) quando eu era servidor da Justiça Federal. Coisa de 1993 ou 1994. Formado a um par de anos, ele advogava por lá. Pelo que me lembro, fazia, em benefício exclusivo de um grande escritório da cidade, direito previdenciário. E, como era de praxe à época, também fazia, para tirar uns trocados, algumas audiências criminais, como advogado “ad hoc”, em prol de réus sempre desassistidos.
Mesmo com seus vinte e poucos anos, era muito calmo, pacato, quase lento. Era muito crédulo, talvez como resultado da criação das tias e da educação muitíssimo religiosa no Colégio Nossa Senhora das Neves. No foro, tinha pouca “manha”, característica que, se não é essencial, dá um empurrão danado na advocacia. O que ele queria, por aptidão de temperamento, e dizia isso a todos, era ser servidor público.
Se não era inteligente, era esforçado. Após muitas tentativas frustadas, que acompanhei curioso, ele acabou, para espanto dos mais céticos, sendo chamando, já na casa dos trinta anos, em um concurso que nem ele se lembrava quando e para o que tinha feito. Embora na rabeira da fila, mandou celebrar uma missa e tomou posse. E era isso o que importava.
Ainda no estágio probatório do seu venerável emprego, para espanto até dos mais crédulos, casou-se com Silvinha, jovem estagiária em uma promissora banca de advogados da cidade. E que estagiária! Silvinha, que por final era bem mais nova do que Antônio Augusto, tinha imaginação e manha de sobra.
Logo notou-se, ainda durante o estágio probatório (e, aqui, refiro-me aos primeiros meses do enlace amoroso), a falta de “sintonia” do casal. Silvinha - vítima de olhares cobiçosos, embora não fosse gostosuda do tipo de fazer motorista de ônibus subir meio-fio - era invariavelmente faceira. Antônio Augusto estava quase sempre cansado, exceto quando dava pra falar, sem mais nem menos, sobre seus dois assuntos prediletos: a teologia de São Boaventura de Bagnoregio (do qual se dizia profundo conhecedor, não havendo à mesa um interessado sequer para contraditar) e o método dos gráficos para fins de investimentos na nossa muito estável bolsa de valores.
Sempre houve rumores de escapadelas da manhosa Silvinha (e desde o estágio probatório). Financeiras e amorosas, registre-se. Com colegas advogados, com dois ou três amigos “das antigas” e com um primo que atendia pelo carinhoso apelido de “Ivanzinho”. Para ela, eram meras aleivosias. Para muitos, era “fato público e notório”. E tudo isso sempre chegou ao conhecimento de Antônio Augusto. Os amigos insinuaram que algo não batia nos investimentos financeiros e nos atrasos de Silvinha. Reafirmaram que nem sempre a TIM estava fora do ar (pelo menos não todas as quartas e sextas-feiras das 13 às 15 horas). Um amigo, que tomou todas, com a voz embrulhada, chegou a contar o “milagre” e o “santo” (no caso, para ser mais preciso, os “santos”) envolvidos na trama toda.
Mas Antônio Augusto sempre foi um “crédulo”. Leia-se: acreditava, sem questionamento ou espanto, em tudo o que dizia e fazia a manhosa Silvinha. Para ele, tudo estava bem e tinha uma explicação. E, se não tivesse, dizia ele: “era o desígnio de Deus, como afirmou, em seu 'Itinerarium mentis ad Deum', São Boaventura” (até hoje, por falta de proficiência no latim, não sei se o grande teólogo franciscano proferiu realmente essa “sentença”). Sem falar na sua chatíssima frase, repetida quase todos os dias, que dizia tudo e nada: “estranho seria se o cachorro miasse”. Minha vontade era sempre mandar esse “animal” para a PQP.
Finalmente, já com quase um lustro de anos de matrimônio, Antônio Augusto teve a oportunidade de dar um fim nas alegadas escapadelas de Silvinha. Um oportunidade de, vendo ou “tocando”, à semelhança de São Tomé, acreditar no que todo mundo sussurrava.
Era Natal, e ele “fugia”, antecipadamente, de um plantão que teve de dar lá para as bandas de Ceará-Mirim. Dizem que, quando chegou em sua casa, sita em um conhecido condomínio da cidade, desavisadamente (lembremos que o celular de Silvinha vivia desligado), flagrou um vulto fugindo pela janela de seu quarto matrimonial.
Como sempre fez, foi perguntar a Silvinha o que tinha acontecido. Mas, desta feita, Antônio Augusto fez algum barulho (dizer que fez escândalo é muito. O certo é que os vizinhos ficaram sabendo do ocorrido). É que havia uma coisa a mais fora de lugar: no quarto do casal, Antônio Augusto achou, além de uma Silvinha estranhamente cheirosa e excitada, uma roupa de Papai Noel. De um Papai Noel muito magro, mas definitivamente havia o gorrinho característico.
Sobre o vulto e a roupa de Papai Noel, a imaginativa Silvinha deu uma explicação. Um bom samaritano, que faz as vezes do bom velhinho, veio para dar presentes aos meninos. Um amigo da família. Talvez o próprio primo Ivanzinho. Apenas, por erro de fato plenamente escusável, errou de quarto.
Após pensar sete segundos, Antônio Augusto deu-se por satisfeito. Afinal, “era Natal”, disse ele, “e estranho seria se, naquela noite, tivesse aparecido o coelhinho da Páscoa”.
Marcelo Alves Dias de Souza
Procurador Regional da República
Doutor em Direito (PhD in Law) pelo King’s College London - KCL
Mestre em Direito pela PUC/SP
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