Crônica/artigo publicada na Tribuna do Norte (de Natal/RN)
Doutor em Direito pelo King’s College London – KCLPrecedente, jurisprudência, enunciado, súmula O “juridiquês” (traduzindo: “o empolado vocabulário dos juristas”) é algo realmente complicado. Obviamente, é muito complicado para o leigo (refiro-me àquele sem formação jurídica). Mas isso, em parte, é natural. Acredito que isso se dá com o vocabulário técnico de qualquer ciência, embora, no direito, isso talvez seja mais acentuado pela propensão de alguns “doutos” para falar muito e dizer nada. O que não acho natural, cá entre nós, é ser o “juridiquês” também muito complicado para nós, supostos juristas. E não falo aqui do “juridiquês” apenas em seu sentido pejorativo, como “o empolado vocabulário dos juristas”. Falo dele também em seu sentido positivo, como o vocabulário técnico, portanto necessário, da ciência jurídica. Talvez um dos grandes desafios do jurista moderno (falo aqui do jurista de verdade) seja trabalhar melhor a linguagem. Direito e linguagem estão muito mais relacionados do que imaginamos. Essa é o veículo daquele. E o nosso vocabulário jurídico, como eu disse certa vez em minha tese de doutorado no King's College London, é um “campo ideal para desentendimentos”. Para se ter uma ideia, darei alguns exemplos da área do direito que, particularmente, mais estudei: a “teoria dos precedentes judiciais”. Falemos de termos jurídicos bastante utilizados pelos profissionais do direito, frequentemente de forma equivocada, como “precedente”, “jurisprudência”, “enunciado” e “súmula”. Comecemos pelo vocábulo precedente. O seu significado, em termos não jurídicos, é fácil de se apreender. Segundo o Dicionário Houaiss de Língua Portuguesa, “precedente” quer significar algo “que precede, ocorrido previamente, anterior”. Já em termos jurídicos, o precedente judicial pode ser definido como “um caso sentenciado ou decisão de uma corte considerada como fornecedora de um exemplo ou de autoridade para um caso similar ou idêntico posteriormente surgido ou para uma questão similar de direito” (tradução livre da definição encontrada no famoso “Black’s Law Dictionary”, edição da West Publishing). Enfatizando a questão da persuasividade ou obrigatoriedade do precedente judicial, “The Oxford Companion to Law” (publicado pela Clarendon Press) semelhantemente define os precedentes judiciais como “decisões prévias das cortes superiores que são consideradas, para um caso subsequente em que se discute a mesma ou semelhante questão jurídica, como aptas a serem referidas como possuidoras de um princípio que pode ter influência ou mesmo, sob a doutrina do stare decisis, ser decisivo na decisão desse caso. Um precedente, portanto, é uma decisão anterior considerada como fonte do direito no caso posterior”. Com base nessa definição, é importante já registrar que uma decisão judicial anterior não é uma “jurisprudência”, como erroneamente se diz, todos os dias, no foro. É um precedente. Decisões judiciais - duas, dez ou mil - não são “jurisprudências”, que é um erro também bastante comum na linguagem dos profissionais do direito. Esse uso da expressão “jurisprudências”, para ser sincero, soa bizarro, pelo menos aos meus ouvidos. Na verdade, é fundamental não confundir o significado de precedente judicial em seu sentido estrito com jurisprudência: esse vocábulo, como explica De Plácido e Silva no seu tradicionalíssimo “Vocabulário jurídico” (publicado pela Forense), no sentido técnico, designa “o conjunto de decisões acerca de um mesmo assunto ou a coleção de decisões de um tribunal”. Aliás, é importante também não confundir a nossa “jurisprudência” como o termo “jurisprudence”, em inglês, usado no direito anglo-americano, que quer significar ciência ou filosofia do Direito. E, por fim, o que danado são “enunciado” e “súmula”, termos que estão, teoria dos precedentes judiciais, intimamente relacionados? Há muita confusão no uso dos termos enunciado e súmula. Consagrou-se algo, a bem da verdade, errado, que é a prática de chamar-se determinado verbete (ou o seu enunciado) de súmula X ou Y. Ao contrário do que muitos pensam, o termo súmula quer significar o conjunto da jurisprudência dominante de um tribunal, abrangendo os mais variados ramos do nosso Direito, organizado por verbetes numerados sem compromisso com a temática dos assuntos, e não cada um desses verbetes (ou seus enunciados) que trazem o entendimento do órgão acerca de determinada questão de direito. Na verdade, o conteúdo do verbete individualmente, que expressa o entendimento do tribunal sobre determinada questão de direito, deve ser chamado, por precisão técnica, de enunciado. Mas esse é um erro - o de confundir súmula e enunciado - que até o Supremo Tribunal Federal comete. Se duvidam de mim, vão lá no site do Tribunal e, como São Tomé, vejam para crer. Bem complicadinhos esses termos e conceitos todos, não? E olhem que, aqui, eu tentei usar o mínimo de “juridiquês”. Marcelo Alves Dias de Souza Procurador Regional da República Mestre em Direito pela PUC/SP |
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