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23/06/2014

A PRIMEIRA SANTA-CASA NO BRASIL

Por: GILENO GUANABARA, sócio do IHGRN


            No Relatório que fez o então provedor da Irmandade da Santa Casa de Misericórdia de Santos, Cláudio Luís da Costa, em junho de 1857, consta a informação de que o português Braz Cubas fundou, no ano de 1548, uma Santa-Casa, nas proximidades do povoado de São Vicente, o primeiro hospital do Brasil e da América, ao qual foi dado o nome de Casa dos Santos. Na mesma época, a sua mantenedora, a Confraria da Misericórdia, fora criada e também por sua iniciativa. A par e no entorno do hospital, com a contribuição dos primeiros habitantes, Braz Cubas edificou também uma igreja, a de Nossa Senhora da Misericórdia. Dada a similaridade com a Casa dos Santos (ou Hospital de Todos os Santos, como também era chamada) e a sua mantenedora, Confraria da Misericórdia, fundadas em Lisboa no ano de 1498, e para que servisse de referência o até então conhecido Porto dos Escravos, passou a constar o nome – Porto dos Santos - nas correspondências trocadas com a corte. Em face da sua importância comercial/marítima, ficou o nome da atual cidade de Santos, na baixada paulista.
            No relato histórico de João Luís Promesse – in Reminiscências de Santos, D. João III, Rei de Portugal, em Almeirim, no ano de 1551, concedera à Casa dos Santos igual tratamento dado por seu pai, D. Manuel, as casas de misericórdia instituídas em Portugal. A mesma informação também se encontra nos escritos do beneditino e paulista Gaspar da Madre de Deus (Memórias para a História da Capitania de São Vicente-1797).
            O português Braz Cubas havia chegado em São Vicente no ano de 1532, na comitiva de Martim Afonso de Souza, donatário-mor da Capitania, de quem recebeu em doação uma gleba de terra, onde atualmente se acha encravado o perímetro urbano do litoral, escoadouro de índios escravizados para as minas do Peru, atual cidade de Santos. Conhecedor da experiência da Casa dos Santos, fundada em Lisboa, bem como passando a conviver com a situação precária dos patrícios aqui residentes, vítimas das doenças que atingiam os primeiros povoadores, se propôs fundar nos limites de sua propriedade uma casa de socorro público, nos moldes da experiência da metrópole.
            Edificada a sede e organizada a lista dos confrades, enviaram carta ao rei de Portugal, com pedido de facilidades para a instituição que fundaram. A publicação conservada no Arquivo Nacional (Documentos Históricos), na referência à Ordem Terceira de S. Francisco da Penitência de Santos, traz a informação de que o rei, D. João III, em setembro de 1548, solicitara esclarecimentos sobre o pedido de regalias e licença que os subscritores teriam requerido e obtido para a fundação daquela Casa, portadores que foram os integrantes do Conselho Ultramarino, Rafael Pires Pardinho e Antônio Henriques.
            Ainda hoje é mantida no arquivo da Santa-Casa de Santos o termo de Compromisso, tal como foi originariamente lavrado: - Compromissos e privilégios pelos quais a Irmandade ordena sejão cumpridas todas as obras de Misericórdia e espirituais, no quanto fôr possível, para socorrer as tribulações e miseria que padecem nossos irmãos em Christo, que recebem gozo do Santo Baptismo, a qual Confraria foi instituída no anno do Nascimento do Nosso Senhor Jesus Crhristo de mil quinhentos e quarenta e oito, no mês de agosto, na Sé Cathedral desta mui sempre leal cidade de Lisboa, por permisso e consentimento da Illustrissima Senhora Rainha D. Leonor, a segunda que Santa é, a qual, aos tempo da instituição da dita confraria e irmandade, governava os Reinos e Sonhorios de Portugal, pelo muito alto, Excelentissimo e muito poderoso Senhor Rei D. Manoel Nosso Senhor...
Segue-se anexo à cópia do Compromisso o da Confraria da Misericórdia, com seus 21 capítulos que serviram de estatuto, tal como observado aqui, na colônia vicentina. Dispunha: Das obras de Misericórdia; como serão ordenadas e compostas para o serviço; como hão de ter ao entrar de confrades e em repreenderem os que não forem de forte condição; da eleição dos oficiais; do provedor e dos mordomos de cada mês e os da capela; dos pedidores de pão; das propriedades da Confraria; dos condenados à morte; a repartição dos cargos; de como visitar os presos e os envergonhados; da arrecadação das esmolas; Da confirmação e aprovação do compromisso por El-Rei; e os privilégios que sejam concedidos por El-Rei Nosso Senhor.
            O modelo da instituição Santa-Casa adotado em São Vicente copiou o modelo de Portugal. A piedosa rainha, casada com D. João II, instituíra no ano de 1498, a Casa dos Santos, a primeira Santa-Casa de Portugal. Coube ao seu confessor e esmoler, Frei Miguel Contreiras, influir para que se adotasse ali o espírito das confrarias de misericórdia fundadas em Florença, no ano de 1350, as quais se destinavam a dar guarida aos desamparados, abrigo e educação aos órfãos, dotes as donzelas desprevenidas, remédio aos enfermos, esmolas aos necessitados, pousada aos retirantes e sepultura aos mortos. Já em Portugal, as confrarias serviam também para dar apoio e manutenção financeira àqueles hospitais beneficentes.

            A rainha Leonor, irmã de D. Manuel I e viúva de D. João II, dera apoio material àquele primeiro hospital público instalado no claustro da Sé de Lisboa. Pela ordem, o rei e a rainha eram o primeiro e o segundo confrades, a que se seguiam os membros da nobreza que obrigatoriamente aderiam ao gesto de caridade e, por isso, eram chamados irmãos de misericórdia, motivo de orgulho de seus portadores. A fim de angariar fundos, para os fins filantrópicos a que se propunham, organizavam-se festas e se realizavam comemorações religiosas. Numa delas, no Natal de 1518, ficou famosa a fala de Gil Vicente. Nas presenças do rei, da rainha e das Damas da Corte, o escritor, doublé de comediante e ourives, declamou pela boca de um dos seus personagens, vivente no purgatório: “ – Vêdes outro perrexil/ e marinheiro sedes vós;/ ora assim me salve Deus,/ e me livre do Brasil.” (Auto da Devoção – Obras Completas, 1572). O dramaturgo satirizava as contradições, contabilizava o medo que causava o Brasil e as personagens pitorescas da sociedade da época. Era tempo da acumulação comercial que se expandia nos mares à distância; da linguagem satírica dos autos pastoris/medievais; do renascimento europeu e da prática salvadora da filantropia misericordiosa.

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