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19/09/2013



V E R Í S S I M O   D E   M E L O
Gileno Guanabara

Uma das grandes figuras humanas da Cidade do Natal, com o devido resguardo às demais, trata-se do professor Veríssimo de Melo. Não pertenci exatamente a sua geração. Encontramo-nos e mantivemos uma convivência admirável. Poderia chamá-lo de enfiteuta do universo, numa paródia dirigida a pessoas ilustres que sob colunas praticam os rituais maçônicos: um Ticiano Duarte, por exemplo. Eis o personagem objeto dessas travessas linhas. Um intelectual, irmão e boêmio, “bon vivant”, contador de casos e arquivista da memória que comungou com nós outros.
Ainda quando a Redinha se arvorava em praia de veraneio, idos de 1950, na parte banhada pelo Rio Potengi, a que chamávamos de Praia do Maruim, se descortinava o ir e vir das lanchas de Luis Romão e dos botes à vela, desde o cais Tavares de Lyra ao “trapiche” de madeira xantado no beiço do rio. Transportavam os renitentes veranistas durante o dia. Nos chamados dias úteis, as noites eram soníferas. Nas de sextas-feiras até o domingo, porém, mudava tudo. Os senhorios reuniam-se com as famílias e vizinhos nos alpendres. Os violões e cavaquinhos em punho e haja seresta. Entre uma e outra talagada as modinhas eram revisitadas. Somente com a amanheçênça do dia, o raiar do sol em suas primeiras luzes, sinalizava o toque de recolher. Os instrumentos musicais só seriam retomados à tardinha, à aproximação da próxima noitada, uma nova tertúlia.
Comandavam a trupe os violonistas irmãos Holdão e Sebastião (Yo Yô) Botelho e o pai, Israel. Mabel Augusta ao desafio das cordas vocais. Ofélia, Lourdes Nascimento (rádio-atriz), Elmo, Toinho, Seminha, Socorro, Tancredo Fonseca e José de Almeida, reciclavam a cantoria das histórias de amor mal curado. Walter Canuto e sua irmã lourdinha, em diapasão com os demais, afinavam “Praieira dos meus amores”, ao final batendo retirada com “Chão de Estrelas” ou a valsa “Branca”.
Pela madrugada, de candeeiros a gás iluminando as veredas, a comitiva seguia pândega, em visitas cantarolando, a tocar para quem se propunha a abrir suas portas e comungar com os empertigados seresteiros o momento solene do Reisado: “Oh de casa, Oh nobre gente/Despertai e ouvireis/Que da parte do Oriente/São chegados os três Reis”//”As festas batendo às portas/A vós veem as festas pedir/Porque desse seu pedido/Não havereis de eximir”//”Eu só peço boas festas/a quem consagra amizade/As pessoas lindas e belas/Dotadas de prosperidade”...
Numa noite, ao regalo de uma dessas visitas, o dono da casa era exatamente Veríssimo de Melo. Abertas as portas, já se encontravam sobre a mesa as bebidas e o tira-gosto apropriado para o momento. Os violões logo tronitoaram seus acordes à disposição de quem iniciasse a cantoria. Veríssimo desfilou a composição de sua autoria, letra e melodia, de nome “Caju”. Dizia assim: “Caju nasceu pra cachaça/Pirão pro peixe nasceu/mulher nasceu pro amor/ Pro amor também nasci eu.” Guardei desde antão a imagem do bom anfitrião que se me apresentou Veríssimo, o irmão de Protásio, filhos do seu Eufrásio Melo que morava na Rua da Palha, no bairro da Cidade Alta, ao tempo do Café Magestic e do Cinema Royal.
No Curso de Sociologia da Fundação José Augusto, assisti às aulas de Veríssimo na cadeira de Etnologia Cultural, haja vista sua condição de professor do Museu de Antropologia da Universidade Federal. A mesma verve, a mesma graça de bem viver.
Os seus escritos e estudos foram tantos sobre tipos e fatos de época. Tive acesso a uma história de boemia que o próprio vivenciou. Segundo seu relato, havia chegado a casa às três e meia da manhã, portando um long-play, uma gravata amarela, um livro - “O Pequeno Príncipe” - e um violão, este o que mais o incomodava pelo denuncismo da hora. Bateu na porta da casa e, enquanto aguardava, ficou a meditar qual a reação que teria de enfrentar, para responder a sua mulher diante da inevitável pergunta: “sabe que horas são estas ?
A pergunta ouvida, entretanto, foi outra: “que perfume é esse?...”, e Vivi respondeu: “É francês, legítimo. Uma delícia.”. Em seguida passou a desvencilhar-se dos objetos, com as devidas explicações: “O long-play é para quando consertarmos a eletrola. A gravata amarela é para combinar com aquele paletó azul marinho. Bem, o livro é para Fernandinho, pois traz algumas aquarelas lindas do autor que se chama Saint-Exupery. O violão você já conhece...”.
Veríssimo estranhou a pergunta que não lhe fora feita: “de onde teria vindo ?”  Então o melhor seria antecipar-se e explicar de onde estava vindo: “Estive com o embaixador do Japão. Um homem excelente. Chegou hoje a Natal. Veio num navio de guerra japonês. Foi lá que me deram esses objetos.
Eis que a pergunta fatal, não esperada, fustigou a madrugada: “E você sabe falar japonês ?, perguntou confusa a sua mulher. Veríssimo esperou, se recompôs e respondeu: “Bem, falar eu não falo, mas tenho um amigo que fala divinamente.”. E novamente a dúvida: “E quem é esse seu amigo que fala japonês ?” A resposta veio sábia e instantânea: “É Romildo Gurgel. Ele fez um curso de Jiu-Jitsu, no Rio de Janeiro. E imagine, quem sabe jiu-jitsu aprende a falar muito bem o japonês”.
Dito assim, Veríssimo concluiu: “Eu é que não pratico nem uma coisa e nem outra”. E arrematou: “Sabe de uma...Eu vou é dormir”. E a mulher se deu por satisfeita e o aconchegou, tal um inocente sob o frio da manhã que despertava.

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