23/02/2022

 

ORIANO: ÚLTIMA ESTROFE

 


Valério Mesquita(**)

mesquita.valerio@gmail.com

 

Direi pouco sobre Oriano de Almeida. Outros falarão melhor porque conviveram de perto com o seu talento e a sua vida. Cláudio Galvão, Diógenes da Cunha Lima, por exemplo, Maria Luiza Dantas, Sanderson Negreiros, Enélio Lima Petrovich (que inaugurou o Memorial Oriano Almeida no anexo do IHGRN em 2001), se já não dissertaram, o farão, com certeza, com brilho e propriedade. Resolvi pronunciar-me porque gosto de pontuar atitudes e assumir gestos quando vejo algo que me desagrada. Fui à Academia de Letras me despedir do seu corpo, na sua tarde derradeira e melancólica. Não apenas movido pelo dever de colega acadêmico ou por solidariedade cristã, mas porque efetivamente ele foi um compositor e intérprete maravilhoso para a honra e orgulho do Rio Grande do Norte, cujo povo não “está nem aí”. No recinto, durante os discursos de despedida, pouquíssimos presentes.

Aí começou a nascer em mim a necessidade de protestar, de me indignar, de não me calar. Comentei com Genibaldo Barros, Armando Negreiros e Ernani Rosado que ali estavam: é o menor público da vida de Oriano, quando deveria ser o maior. Ele que havia conquistado as plateias milionárias, exigentes e refinadas do mundo inteiro não conseguia reunir para o último adeus a intelectualidade de sua terra. Quanta ironia, quanto paradoxo a vida nos ensina. O maior intérprete do mundo da obra de Chopin, que encantou os palcos da arte musical, gênio da música, compositor, ocupante da cadeira nº 13 que pertenceu a Câmara Cascudo, estava finalmente esquecido. Havia atingido a “verdadeira imortalidade”. Já escrevi que Natal sofre de ataraxia, indiferença. É pobre de sentimentos. 

Chegou um momento, no velório, que Diógenes preocupou-se com os circunstantes para conduzir o esquife do salão ao veículo funerário. A maioria era mulheres entre reduzido grupo de sexagenários em débito com o teste ergométrico. Afirmo, sem qualquer preconceito, que talvez tenha faltado a Oriano a passagem por uma banda de forró. Resta a esperança de que o nome, a importância do que fez como musicista, intérprete, compositor e escritor não desapareça. Não tenho dúvidas de que Oriano Almeida é maior do que os ausentes. A sua obra tem abrangência nacional e internacional. Simples, não buscava os refletores da fama. Ela vinha até ele. Nem o elogio fácil.

Já disse que na vida quando se passa dos 60 ou 70 anos, torna-se estatística. Diferente dos países mais civilizados. E Oriano se foi com 83. Fica para os pesquisadores, memorialistas e estudiosos da música e da obra que ele nos lega, a tarefa permanente de afirmar que Oriano Almeida vive. Na frase, que não é minha e nem sei de quem, mas que eu gosto de lembrar: “Não se acaba o homem. Constrói-se a cada dia sua performance”.

 

(*) Artigo publicado no livro “Inquietudes”

(**) Escritor

 


13/02/2022

 



Novas Cartas de Cotovelo – verão de 2022-06

Por: Carlos Roberto de Miranda Gomes

UM DOMINGO DE PAZ E SOL

        Depois de uma sexta-feira diferenciada, que trovejou e alagou o primeiro andar da minha casa, com uma chuva diferente, o que nunca havia acontecido desde que a construí, Cotovelo (há mais de 30 anos), tudo volta à sua normalidade, permitindo retomada das atividades quase 100%, embora registrando alguns pequenos danos em ruas sem calçamento, um início de incêndio numa mercearia em frente ao Posto de Gasolina que, segundo comentam, teria sido o resultado de um raio.

        No sábado fui ao vale do Pium (já no território de Nísia Floresta), com Carlinhos para abastecimento da casa com frutas e legumes – tudo legal.

        Eis que chega o domingo e com ele a Paz e a claridade do Deus Sol, em toda a sua exuberância. Levantei-me cedo e deixei Carlos Neto hibernando no ar condicionado.

        Na varanda da casa tive a oportunidade de assistir a Missa na Igreja de Santa Luzia, celebrada pelo Padre Sidney, transmitida pela rádio web Mar e Campo, do nosso estimado amigo Octávio Lamartine. Em seguida, ainda emocionado com as mensagens recebidas fiz minhas comunicações, por celular, com o filho e filhas que momentaneamente não estão nesta querida praia, e o fiz com muita emoção, porque a religião nos oferece milagres espirituais.

        Um café farto feito por Carlinhos e Valéria, sem faltarem as costumeiras vitaminas de mamão com abacate, leite vegetal e fibras, depois um cafezinho feito na hora com fruta-pão e com o olhar pidão de Luma (nossa bulldog francês).

        Dando continuidade às minhas meditações, vislumbrei a minha mesa santuário, com os Santos da devoção da minha sempre saudosa Therezinha, cujo retrato ornamenta esse recanto sagrado, que tem em destaque uma pintura de Jesus orando e outra do Padre Pio e, em minha cadeira de balanço herdada da saudosa companheira, dei uma vista ao pequeno jardim e logo me deparo com o fiel beija-flor, cuja descendência há mais de 30 anos faz parte da geografia emocional do lugar e as cadeiras desarrumadamente dispostas, juntamente com as redes enroladas nos armadores, algumas bolas dispersas pelo chão e o sentir da brisa que nos premia neste recanto da casa. Em seguida fui beijar o mar, que estava com sargaço – coisas da fase da lua.

        Lembrei-me, então, daquela conhecida música – “Minha casa é tão bonita, que dá gosto a gente ver, tem varanda, tem jardim... minha casa que tem tudo, tanta coisa de valor, minha casa não tem nada [vivo só sem meu amor]”. Fiz adaptações à letra original de Minha Casa, de Joubert de Carvalho.

        Mas, domingo é dia de alegria – VIVA A VIDA.

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08/02/2022

 


 

Novas Cartas de Cotovelo – verão de 2022-05

Por: Carlos Roberto de Miranda Gomes

REVISITANDO A CASA DE PEDRA DE PIUM

        Neste último sábado resolvi revisitar a Casa de Pedra de Pium, equipamento histórico que tantas vezes mereceu crônicas e entrevistas minhas ao longo dos últimos anos.

     Minha primeira decepção foi constatar que, apesar dos apelos e até da celebração de uma missa no final do ano passado diretamente daquelas ruínas históricas, com a presença do arcebispo Don Jaime, o acesso piorou muito, agora mais do que nunca o pequeno trecho não passa de um caminho de animais, com a pior qualidade que se possa pensar, sem nenhuma possibilidade de manobra quando alguém se arrisca a ter acesso por veículo com alguma calibragem, pois será dificílimo algum dos veículos recuar.

     Essa agora “aventura” que fiz, com familiares, permitiu que reexaminasse o sítio histórico e agora fizesse algumas retificações: primeiro, houve plantação de árvores frondosas que retiraram a visão que existia para o mar, como anteriormente anunciei, qual seja, a visão da costa desde o contorno de Pirangi para Cotovelo quanto desta praia para o contorno de Ponta Negra, tirando o sentimento de que aquela construção secular daria uma visão da enseada capaz de avistar qualquer possível inimigo; segundo, em meu sentir, houve o agravamento da movimentação de algumas pedras que fazem parte daquele complexo; houve o aterramento, na marra, da passagem de fios de nascentes de água de um lado para o outro da estrada de acesso – essa que considero própria para animais.

      O lado positivo é que o vale está preservado com criação de gado, coqueirais, plantações de verduras, frutas e hortaliças, ainda longe do agrotóxico.

       Existem resquícios de algumas construções não concluídas de possíveis espigões ou condomínios fechados, ou mesmo mansões inadequadas para a paisagem bucólica a ser preservada, estes/estas depredados, já sem telhados, portas e janelas, enfim abandonados.

       Desconheço qualquer intervenção da Prefeitura de Nísia Floresta no sentido de regulamentação do uso do solo naquela localidade.

        Assim, convoco os interessados para resolvermos essa pendenga, entrando em contato com os possíveis proprietários (família Galvão) e depois com a Fundação José Augusto e com a Prefeitura de Nísia Floresta, aproveitando o momento político de breves eleições, sempre no intuito único de preservação da história.


 

Qual a finalidade?
O grande penalista Basileu Garcia (1905-1986), em suas “Instituições de Direito Penal” (vol. I, tomo I, editora Saraiva, 2010), certa vez anotou: “Castigar ou punir, expiar, eliminar, intimidar, educar, corrigir ou regenerar, readaptar, proteger ou defender – eis verdadeiros verbos que, na diversidade das opiniões, indicam as finalidades possíveis do Direito Penal e, através destas, as raízes da sua existência. Para precisar essas finalidades, elaboram-se doutrinas, reunindo maior ou menor número de adeptos. E algumas tiveram irradiação tão ampla, que passaram a constituir escolas, as quais intentaram delimitar-se pela fixação de toda uma série de ideias centrais sobre as mais graves questões da nossa matéria”.
Mas qual é mesmo a finalidade do direito penal?
Especificamente, qual é a finalidade da pena ou sanção, já que a ratio do direito penal gira muito em torno desta, que é a resposta do Estado na sua labuta contra a criminalidade?
A pena já foi “encarada” de diversas maneiras, é claro. Basicamente, há os absolutistas (“pune-se porque pecou”, segundo Basileu Garcia), os utilitaristas (“pune-se para que não peque”) e os adeptos de uma teoria mista (“pune-se porque pecou e para que não peque”). E aqui já me afasto de gente como Claus Roxin (1931-), que sugere “excluir” a retribuição da teoria penal contemporânea em prol de uma quase exclusividade da prevenção/ressocialização como finalidade da pena. Embora eu também registre aqui que sou fã, em grande medida, de Roxin e do seu princípio da insignificância ou bagatela.
Pondo de lado considerações pouco ortodoxas, quase nada jurídicas, do tipo “bandido bom é bandido morto” (e aqui a finalidade do direito penal seria apenas “apagar um CPF”, como se diz estupidamente por aí), acredito que podemos sistematizar as finalidades da pena, sem as complicações artificialmente criadas pelos juristas, em quatro grandes eixos.
Para tanto, farei primeiramente uso do direito italiano, como homenagem ao país que nos deu as duas primeiras grandes escolas do direito penal, a clássica e a positiva. Segundo registra a “Enciclopedia del Diritto” (Editora De Agostini, 1994), à luz do Código Penal Italiano, a pena tem múltiplas finalidades, das quais as principais são: “(a) preventiva [geral]: visa prevenir o cometimento de crimes, visto que a previsão da sanção criminal representa um contraestímulo ao crime; a pena, portanto, tem uma função dissuasora, pois o potencial delinquente sabe que, se você cometer um determinado crime, corre o risco de uma determinada punição; (b) punitiva: a punição tem a função de punir o autor do crime; a este respeito, se fala de uma função retributiva, visto que constitui uma contraprestação pelo crime cometido, e é de fato proporcional à sua gravidade; (c) reeducativa ou ressocializante: a pena visa reeducar o autor do crime e favorecer sua reinserção social; para este fim, muitos institutos operam como semidetenção, liberdade condicional para serviço social, trabalho dentro da prisão etc”.
Faço apenas mais algumas considerações. A primeira é que devemos acrescentar, à finalidade preventiva geral, que é dissuasora para todos os potenciais delinquentes (assim pedagógica para todos), uma (d) finalidade preventiva especial, para aquele que cometeu o crime específico, que, além de supostamente dissuadido de cometer novos crimes (afinal, foi razoavelmente penalizado quando o cometeu), estará impedido de cometer esses crimes, uma vez que estará detido e afastado da sociedade (partindo aqui do pressuposto de que lhe foi aplicada uma pena ou medida privativa de liberdade).
A segunda consideração é que minha sistematização está de acordo com o nosso direito criminal. Afinal, determina o Código Penal brasileiro, no seu art. 59, in fine, que o juiz aplicará a pena “conforme seja necessário e suficiente para reprovação e prevenção do crime”. E a Lei de Execuções Penais, logo no art. 1º, complementa dizendo que a execução penal “tem por objetivo efetivar as disposições de sentença ou decisão criminal e proporcionar condições para a harmônica integração social do condenado e do internado”. Bom, nada melhor do que seguir a lei para não sofrermos uma sanção ou pena.
Marcelo Alves Dias de Souza
Procurador Regional da República
Doutor em Direito (PhD in Law) pelo King’s College London – KCL
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 REFLEXÕES AO ENTARDECER


Valério Mesquita*

mesquita.valerio@gmail.com


Tarde tediosa aquela do domingo que antecedeu o meu aniversário. O silêncio vespertino de Lagoa Nova me envolvia de surda espera. O quadro das ruas desabitadas se acostumou ao olhar vergado de tantas rotinas. O que mais devo repartir além da fadiga? Quantas pedras deverei ainda remover do caminho, como no verso de Carlos Drummond de Andrade? Cansaço físico e mental é muito comum. Diante de tudo que passei confesso que sobrevivi. Nordestino de Macaíba sobrevive – só Pablo Neruda confessou que viveu. Quem faz a travessia política durante mais de três décadas pode dizer que combateu e não perdeu a lâmina da alma.


Estou consciente que completo mais um périplo em torno do tempo. Silente, penetro no labirinto sem recomeço. Já ingresso na fila do caixa dos supermercados reservado aos idosos. Quase octagenário não é um velho. Mas a lei generosa permite. Recuso-me. A idade é vulnerável mas navegável quando soprada pelo vento leste porque ainda tenho a memória do fogo e da rosa. Explicar a minha vida? Não há porquê. Tenho um amigo que já escreve a sua autobiografia precoce aos sessenta. Se o fizer tal coisa somente irá ocorrer quando sentir o medo de viver. Ainda acredito na aurora, no porto, no barco, nas estrelas, no pássaro, na paz, no perfume de mulher. Aliás, o dossiê biográfico pesará pouco diante da Providência. Terão mais valor as ações que deixaram de ser feitas. O pecado da omissão é assombroso. Conforta-me haver atravessado as noites escuras do tempo sem desamar os frutos. O quinhão usual de tristezas e equívocos fica por conta da difícil condição humana de ser. 

Na vida pública aprendi uma amarga lição que serve para os atuais protagonistas: na política não há só amigos e inimigos, mas conspiradores que se unem.


Certa vez, o saudoso poeta Sanderson Negreiros disse que “é difícil ser testemunho de crepúsculo. Ele não é apenas cores se movimentando ao sol-posto. Mas a certeza de que não são caminhos somente para a morte, mas que, de nós, muita coisa ainda restará para a vida”. Fecho com o poeta maior as reflexões do meu entardecer.


(*) Escritor



01/02/2022

As “incelenças” Padre João Medeiros Filho São cânticos ou benditos fúnebres, executados por grupos de rezadores e rezadeiras (distintos das “Encomendadeiras das almas”), durante a vestição da mortalha, o velório (“fazer quarto”) e o sepultamento dos fiéis. Existem ainda em vários estados do Brasil. Discute-se a origem do termo. Evidentemente, trata-se de uma corruptela da palavra excelência. Para Oswaldo Lamartine, arrimado na Missão Abreviada, o termo provém de “orações de excelência para conduzir a alma ao Céu.” Lamartine seguia a recomendação do apóstolo Paulo: “Guardai cuidadosamente as tradições que vos foram ensinadas” (2Ts 2, 15). Segundo Théo Brandão, originalmente as incelenças eram cantadas nos funerais de criancinhas, verdadeiros anjinhos e excelências da corte celestial. De acordo com alguns historiadores, tal costume foi trazido de Portugal e enriquecido com elementos indígenas e africanos. Há vestígios de sua existência na Itália (Sicília) e na Grécia Antiga. Cabe lembrar que no sertão nordestino, urbano ou rural nem sempre existia a presença sacerdotal para presidir os funerais, nascendo formas alternativas de encomendação. Os clérigos mostravam no passado (talvez ainda hoje) pouco apreço pela religiosidade popular. Faltava-nos uma melhor formação para perceber a riqueza cultural, integrante da identidade de nosso povo. Não fomos iniciados na verdadeira seiva da sabedoria popular que constrói as tradições de nossa gente. Em razão desse menoscabo, muita coisa se perdeu. Padres Jocy Rodrigues (Tutóia/MA) e Reginaldo Velloso (Olinda/PE) conseguiram resgatar obras primas. Houve tempos em que as incelenças eram consideradas superstições, sendo desestimuladas ou proibidas. Hoje, muitos movimentos tentam perpetuar a rica tradição religiosa e cultural. Dentre tantos, destaca-se um grupo da comunidade de Cabeceiras, em Barbalha (CE). Assevera-se que a sistematização das incelenças começou com o Padre José Antônio de Maria Ibiapina (1806-1883). Este organizava equipes de fiéis (beatos), denominados “penitentes”, para catequizar o meio rural. Por muito tempo, tais cânticos constituíram parte fundamental dos velórios na região do semiárido, tendo sido registrados por vários estudiosos. Em “Morte e Vida Severina”, de João Cabral de Melo Neto, a conversa entre Severino e a Comadre – na qual ela lhe pergunta se sabia rezar incelenças – sugere que estas desempenhavam papel importante na vida cotidiana das comunidades nordestinas. Assim lemos em João Cabral: “Essa vida por aqui é coisa familiar. Mas, diga-me retirante, sabe benditos rezar? Sabe cantar excelências, defuntos encomendar? Sabe tirar ladainhas? Sabe mortos enterrar?” Dorival Caymmi gravou um desses benditos com o título de “Velório”, explicitando o fato de que para o sertanejo os velórios e as incelenças são quase inseparáveis. Algumas foram gravadas por: Clementina de Jesus e Edu Lobo. Nara Leão canta a incelença da Virgem: “Oh! Mãe de Deus, rogai por ele [falecido]. Esperança nossa, fonte do amor, gênio do bem, honesta flor.” Nessa forma popular de velório, realizada na casa do falecido – estendendo-se por toda a noite anterior ao enterro – atribui-se aos cânticos e rezas a propriedade de invocar anjos e santos, que, segundo a crença, acompanham a alma do falecido até o destino conveniente. De transmissão basicamente oral, nem sempre formam um ritual homogêneo, variando conforme a região, o grau de instrução dos presentes etc. Em tais rituais, há amálgama entre práticas oficiais da Igreja Católica e hábitos da religiosidade popular. Em muitos casos, versos lúdicos e trechos de cordel – despidos de qualquer significado místico – são enxertados para consolar os parentes do falecido. A estrutura literária dos benditos é poética, geralmente composta de grupos de doze estrofes, suplicando misericórdia, demonstrando penitência e arrependimento pelos pecados cometidos. O número é simbólico em homenagem aos doze apóstolos de Cristo. A figura intercessora de Maria Santíssima sempre está presente. Inspiradamente, Ariano Suassuna a denomina “A Compadecida”. A musicalidade é um misto de canto gregoriano em forma de salmodia com sons e tons de aboio. São cânticos de melodia despojada, com o predomínio do estilo silábico e sonoridade repetida, proferidos diante do defunto pelos familiares, amigos e vizinhos. A vida e a morte são elementos importantes da religiosidade popular no Brasil. Revelam a espiritualidade do povo brasileiro, que vive em profunda comunhão com Deus, em quem deposita uma infinita confiança. Há consciência de que “Deus é o Senhor da vida e da morte.” (1 Sm 2, 6).

31/01/2022

Marcelo Alves · aOtn3ute1pgim3 9fàs 08:a3d2m91 · Vai o texto da crônica publicada hoje, 30 de janeiro de 2022, no jornal Tribuna do Norte (Natal/RN): ⬇️⬇️⬇️⬇️⬇️ O psicólogo penal Já escrevi, embora não recorde mais onde e quando, sobre Cesare Lombroso (1835-1909) e Enrico Ferri (1856-1929). Hoje é hora de conversarmos sobre Raffaele Garofalo (1851-1934), que, ao lado dos dois vultos precitados, formou a tríade da chamada Escola Positiva (italiana) do Direito Penal. Garofalo nasceu na belíssima Nápoles. Estudou direito na Universidade da sua terra. E foi ser muitas coisas na vida. Magistrado (promotor em Nápoles e juiz na Corte di cassazione do seu país) e senador do Reino da Itália. Foi jurista e, especificamente, criminólogo. Foi um exacerbado conservador (o que o distinguia de Ferri, notório socialista), tendo militado a favor da pena de morte, inclusive daqueles mentalmente doentes, e aderido, para o final da vida, ao fascismo de Mussolini (1883-1945). Como registra Walter Nunes da Silva Júnior (no texto “A escola positiva e os seus precursores”, constante da Revista da Academia de Letras Jurídicas do Rio Grande Norte, ano V, nº 6, novembro de 2021): “Garofalo foi um dos arautos da Escola Positiva e produziu extensa bibliografia. O seu escrito mais completo, no qual expôs o seu pensamento jurídico da Escola Positiva, foi Criminologia, editado em 1885. Outros escritos que merecem destaque foram Rippazazione alle vittime del delitto (1887) e La superstition socialiste (1895). Atribui-se-lhe o início da elaboração jurídica da Escola Positiva, trazendo, como elemento novo aos aspectos antropológicos de Lombroso e sociológicos de Ferri, as questões de ordem psicológica”. De fato, entre os seguidores de Lombroso, surgiram derivações que enfatizavam outros condicionamentos como causa – ou, pelo menos, concausa – da criminalidade. Segundo Antonio Padoa Schioppa (em “História do direito na Europa: da Idade Média à Idade Contemporânea”, WMF Martins Fontes, 2014), “teve particular importância a obra de Enrico Ferri (1856-1929), advogado e político de ideias socialistas – foi também deputado por muito tempo –, autor da Sociologia criminal (1884), bem como o pensamento de Garofalo, magistrado atuante na primeira fase de preparação do Código Penal de 1889. Esses criminalistas insistiam não apenas na denúncia das discriminações sociais como motivos da criminalidade, mas também e sobretudo no tema da prevenção como meio principal para a diminuição dos fenômenos criminosos”. A meu ver (e que não me xinguem os panfletários do punitivismo radical), a “pena” de Garofalo era pesada demais. A sua defesa da pena de morte, inclusive dos mentalmente doentes, da prisão perpétua, da prisão preventiva obrigatória para determinados crimes, a sua paixão por um processo penal inquisitorial (abeberando-se no outrora adotado pela Igreja), sem publicidade ou oralidade, a desimportância dada às nulidades (inclusive a ausência de advogado para o réu), a sua quase inversão do princípio da inocência, entre outras coisas, são, para mim, demais. Embora eu também entenda que era uma tática, exagerada (deixo claro), de se opor à Escola e ao direito penal clássico, de Beccaria a Carrara. E isso sem falar no seu abominável fascismo. Entretanto, assim como se dá com Lombroso, que “exagerou” em diversos pontos, há também muito de bom em Garofalo. Lombroso iniciou o estudo da pessoa do delinquente e foi, assim, sua antropologia criminal que primeiro jogou luz sobre a pessoa do criminoso, na busca das causas que levavam este a delinquir e de como evitar esse ato. A isso o marxista/socialista Ferri somou o seu fatalismo social. E Garofalo muito contribuiu com o seu determinismo, de ordem psicológica, que segue uma trilha antes aberta por Charles Darwin (1809-1882) e Herbert Spencer (1820-1903). Ainda hoje somos influenciados por Garofalo, entendendo que o Estado deve intervir sobre o indivíduo/criminoso que não se adapta às regras da sociedade, às exigências de convivência, segregando-o, porque psicologicamente tendente ao ilícito, prevenindo a sociedade do cometimento do crime (caráter essencialmente preventivo da pena). Tirando os exageros, que são muitos sob a lupa de hoje, há em Garofalo sobretudo o enorme ponto positivo de misturar a psiquiatria/psicologia nos estudos do direito penal. E, para resumir o papel de cada um dos “grandes” da Escola Positiva italiana, podemos dizer que Cesare Lombroso foi o seu antropólogo (penal); Enrico Ferri, o seu sociólogo; e o nosso Raffaele Garofalo, com certeza, o seu psicólogo. Daí a razão do título dado a este riscado. Marcelo Alves Dias de Souza Procurador Regional da República Doutor em Direito (PhD in Law) pelo King’s College London – KCL