26/10/2020

 



O verdadeiro Sinhozinho Malta

Tomislav R. Femenick – Jornalista

 

Nos meus quase quarenta anos morando em São Paulo, realizei alguns trabalhos que eu realmente nunca esperei fazer; quer pela sua magnitude (por exemplo: gerenciar a auditoria externa do Banco do Brasil, em todo o país); quer pelos seus aspectos inusitados (outra vez, por exemplo: dar consultoria a um grupo empresarial italiano na instalação de uma fábrica de fábricas de papel higiênico). No primeiro caso eu fazia parte do corpo diretivo da Campiglia Auditores; no segundo, da Deloitte/Revisora Consultoria. Houve outros casos insólitos, como da vez em que fui chamado a participar de uma reunião para ajudar na solução de um caso de chantagem amorosa, promovida por uma amante casual de um diretor, ou de outra em que encontrei mais de três mil geladeiras que haviam “sumido” dos estoques de uma grande loja de departamento.

Tudo isso foi estranho e não usual para mim. Mas, nada foi tão insólito quanto meu encontro com o verdadeiro Sinhozinho Malta. Sim, você não leu errado: o “verdadeiro Sinhozinho Malta” – e olhe que não estou falando do maravilhoso ator Lima Duarte e sua personagem na novela Roque Santeiro, da TV Globo.

Um certo dia do ano de 1973 – e lá se vão quase 50 anos –, bem cedinho recebi um telefonema de José Pedro Canovas, meu colega de trabalho na Deloitte/Revisora. Tinha um recado para mim, de parte de nosso diretor Ernesto Marra: quando eu fosse para a firma, levasse maleta e bagagem para um trabalho especial fora da cidade, que poderia demorar uma semana, um mês ou mais.

Mensagens como essa não eram surpresas. Surpresa foi, sim, saber que o professor Marra (ele, que não saía do escritório) iria comigo para Araçatuba, iniciar uma auditoria. Só por isso, eu avaliei a importância do cliente. Também, não era por menos, o cliente era o Frigorífico T. Maia. Dito assim, hoje isso não significa nada. Mas, há cinquenta anos a história era outra.

O Frigorifico T. Maia pertencia a Sebastião Ferreira Maia, o celebre e conhecido Tião Maia, então o rei do gado do Brasil. Mineiro, com primário incompleto e boiadeiro. Sabido, explorou o jeito caipira de falar e de se comportar e fez amizade com empresários e políticos de altos níveis. Conseguiu ser o maior criador de gado do Brasil e montou um frigorifico, no interior de São Paulo.

Passada a “porteira” do frigorifico, fomos recebidos pelo próprio Tião Maia, que estava sentado na calçada do prédio da entrada. E alí também ficamos sentados. O professor Marra, eu, Tião e dois de seus funcionários (um era contador e outro, advogado). Em suma: ele queria saber o que a auditoria especial iria fazer. Algumas questões, de caráter informativo, foram respondidas e outras, por se tratarem de matérias relacionadas às investigações propriamente ditas, foram resguardadas. Aí foi que nós, o célebre Tião Maia e eu, começamos a falar diretamente. Ele não queria saber como a auditoria seria realizada, queria mesmo era saber o “porquê”, qual razão, de se fazer de um jeito e não de outro.

Depois disso, fomos lanchar. Mas, como era por volta das onze horas, o lanche foi um churrasco, ocasião em que, de tão relaxados, esquecemos-nos do trabalho e começamos a jogar conversa fora. E, então, o célebre Tião Maia olha para mim e pergunta: “você é russo”? Eu respondi que não, que era de Mossoró, no Rio Grande do Norte, e filho de croata.

Foi então que ele falou da sua amizade com Mota Neto, quando este último fora superindentende do Instituto Brasileiro do Sal. Foi Motinha quem convenceu o maior pecuarista do Brasil a usar sal grosso misturado à ração de seu imenso rebanho, comportamento que passou a ser copiado por outros criadores. Depois falei disso com o meu primo (Mota Neto era meu primo) e ele confirmou o fato.

 Por motivos políticos e econômicos, o ex-boiadeiro mineiro deixou o Brasil em 1976 e foi para a Austrália. De lá foi para os Estados Unidos, para Las Vegas; não para jogar, mas para construir residências. Quando morreu deixou, entre outras coisas, cerca de 170 mil cabeças de gado, duas fazendas na Austrália e um conjunto de casas em Las Vegas – somente este no valor de 30 milhões de dólares.

 

Tribuna do Norte. Natal, 25 out. 2020


 

Glamour e decadência
O meu primeiro contato com F. Scott Fitzgerald (1896-1940) foi por meio do cinema. Fiquei encantado com o filme “O Grande Gatsby” (“The Great Gatsby”), de 1974, adaptação do romance homônimo de 1925. O filme tem direção de Jack Clayton (1921-1995) e roteiro de Francis Ford Coppola (1939-). No elenco estão Mia Farrow, Sam Waterston, Bruce Dern, Karen Black, Scott Wilson e Lois Chiles, entre outros. E Robert Redford faz o papel de Jay Gatsby, a enigmática personagem principal da trama.
Não sei bem explicar o porquê, mas a fotografia de “The Great Gatsby”, o filme, sempre foi para mim a imagem da riqueza americana nos seus anos dourados. A mansão de Long Island. Um antigo caso. A mulher casada que se quer impressionar. As festas. A beleza dos convidados e muita champanhe. Uma impressão visual mesmo, sensorial, que ficou marcada no meu espírito. Os contos de Fitzgerald, à moda de “The Diamond as Big as the Ritz and Other Stories” (edição da Penguin Books, de 2006, que tenho agora em mãos), em que o autor “mistura inteligência e cinismo em seus retratos satíricos da movimentada Era do Jazz”, também ajudaram bastante. São quase todas estórias que nos fazem sentir o êxtase da música, das festas e da bebida e nas quais “os deuses venerados são o glamour, a riqueza e o status social”.
Mas Scott Fitzgerald também é para mim um exemplo de decadência pelo álcool e outras turbulências da vida. Membro da chamada “geração perdida”, sua estada intermitente em Paris mostra muito do que eu quero dizer. Segundo registra Jessica Powell, em “Literary Paris: a Guide” (The Little Bookroom, 2006), quando Fitzgerald chegou a Paris, em meados dos anos 1920, “ele já tinha composto This Side of Paradise e The Great Gatsby, e era conhecido por seu estilo de vida descontrolado e luxurioso. Ele e sua esposa, Zelda, estavam tentando ‘encontrar um novo ritmo’ para suas vidas, e Paris, com sua vibrante cena artística e seu baixo custo de vida, era uma opção atrativa para muitos americanos. ‘A França tem as duas únicas coisas para as quais nos movemos enquanto envelhecemos – inteligência e boas maneiras’, disse Scott, embora ele e Zelda – ambos grandes bebedores – geralmente exibissem pouco da segunda”.
Seja frequentando o 6º arrondissement ou como moradores da Rue de Vaugirard, nas abas do Jardim de Luxemburgo, foram tempos de “mil festas e nenhum trabalho”, nas palavras do próprio escritor. Como anota Jessica Powell, “em 1929, o alcoolismo consumia Scott Fitzgerald. No majoritariamente autobiográfico romance Tender is the Night, ele escreveu: ‘a bebida fez coisas felizes do passado contemporâneas com o presente, como se elas ainda estivessem acontecendo, e contemporâneas mesmo com o futuro, como se elas estivessem para acontecer de novo’”. Os escândalos eram cada vez piores. E Zelda, mais “fanática”. Consta que Scott certa vez apareceu bêbado para tomar chá com Edith Wharton (1862-1937). E James Joyce (1882-1941), após um encontro, teria dito: “Ele causará algo de ruim a si mesmo um dia”. O comportamento errático do casal passou a afastar até os amigos.
Cientes das pontes que haviam queimado, os Fitzgerald esqueceram Paris. Foram se tratar na Suíça, um país onde “poucas coisas começam, mas muitas coisas terminam”, também nas palavras de Scott Fitzgerald. E é ali onde se passa parte de “Suave é a noite” (“Tender is the Night”, 1934), talvez o mais tentador e ambicioso, além de autobiográfico, dos seus romances.
A vida de Scott Fitzgerald foi uma mistura superlativa de glamour e decadência, de alegria e tristeza. Morreu jovem. A bebida cobrou seu preço. Fala-se também de tuberculose. O coração estava fraco. Ataques cardíacos e desmaios se sucederam no fim dos anos 1930. Em dezembro de 1940, vivendo em Hollywood, um infarto fulminante. Tinha apenas 44 anos.
Bom, a Paris do grande escritor – e da sua companheira Zelda – não durou para sempre. Aliás, agora recordo que a minha (Paris) também não. Quando estudava/morava lá, um tio querido faleceu no Brasil. As coisas perderam a graça. E comecei a arrumar as malas para voltar à terrinha. A festa não duraria para sempre. Nenhuma festa dura, parece.
Marcelo Alves Dias de Souza
Procurador Regional da República
Doutor em Direito (PhD in Law) pelo King’s College London – KCL
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16/10/2020

 EVOCAÇÕES


Valério Mesquita*

Não precisa ser macaibense (filho da terra) para constatar o vazio da presente campanha eleitoral em comparação com os anos, 50, 60, 70 e até das últimas décadas. Basta mesmo ser macaibeiro (aquele que reside lá e veio de fora). O município parece um cemitério.. É o povo com fastio da política e da eleição. Lembro-me das passeatas daqueles anos que varavam as madrugadas. Rios de gente, janelas abertas, acenos, luzes, fogos. Uma multidão andando ou pulando ao som da música obedecendo ao comando do líder porque acreditava na palavra, no homem e na mensagem. Os bares, as praças, as esquinas viravam palanques dos eleitores que incensavam os escolhidos e queimavam os depurados.

Tempo dos gestos espontâneos da mulheres na madrugada da passeata, oferecendo um copo de leite ao líder cansado e caminhante. Tempo do povo romeiro que acendia velas votivas em louvor da vitória do seu candidato. Hoje nem vota e ainda mais roga praga. O que aconteceu com o povo ou com a cidade? Mudaram eles ou mudamos nós Nessa política até parece que Macaíba está sob o toque de silêncio. No interior, corre a notícia que não haverá eleição este ano. Os comícios de bairro na cidade até agora não aconteceram um sequer para acordar galinha. Diria que a política perdeu o charme, o glamour, o encanto, a confiabilidade, o rumo e o prumo. Sim, porque política é contágio, é cumplicidade, é atitude e participação, enfim, tudo aquilo que vibra, que vive, que estimula uma sociedade inteira a partilhar do processo democrático do voto do destino de um povo.

Evoco esses fatos porque eles existem. É só comparar, refletir sobre o passado recente e o presente. As ruas estão desertas e as mensagens dos candidatos não mais atingem os ouvidos do povo.

Eleger candidato de fora, aí o município perde a identidade, o sentimento nativista, o amor telúrico. Passar o comando de uma prefeitura, de um poder público de um cunhado para a sua cunhada, como quem troca um carro, uma moto ou uma bicicleta, é querer esconder papel safado, oculto, tudo por debaixo do pano. Por isso, o povo perdeu o canto, o encanto e o gosto de entoar nas ruas que é proibido cochilar.

Saindo do papo político, gostaria de evocar aqui e agora um amigo que se foi há algum tempo. Partilhamos das fases da adolescência e da maturidade. Filho único de Emídio Pereira Filho e Maria Nazaré Madruga Pereira, Marcos Vinicius Madruga Pereira ainda se mantém vivo na minha memória como o garotão da motocicleta, o paquerador, o dançarino do Pax Clube, o amigo político fiel e dedicado, o caminhoneiro de longo curso, apesar de tudo e dos reveses que enfrentou na vida. Vinicius, o pescador, o caçador que ficava de “mutuca”, como gostava de dizer, para atingir a presa. Vinicius, conquistador e galante, louco por “pivetes”, como tratava as namoradinhas, que se refletiam nos seus olhos azuis, herdados de D. Nazaré. Relembro-o com sentimento de saudade. Foi um homem que teve tudo que quis, mas sofreu muitas perseguições e a todas sobreviveu. Valeu a pena revivê-lo com ternura e amizade. 

(*) Escritor









13/10/2020

 


A democracia, as eleições e a cidade

Tomislav R. Femenick – Jornalista

 

Dentre os inúmeros presentes que recebemos dos gregos (falo dos presentes genuínos, e não do cavalo de Troia), a democracia talvez tenha sido o mais precioso. Todavia, como muitas outras coisas – tais quais o ar e a água – é frequente não nos darmos conta de sua importância. A democracia é como a liberdade, a sua irmã siamesa; falamos muito sobre elas, porém só “sentimos” a sua importância quando as perdemos.

Como já deu para notar, o assunto de hoje é a democracia, explicitada nas eleições que se aproximam. Mas, afinal de contas, quem é essa senhora? Teórica e filosoficamente, a democracia (do grego: δῆμος”, povo; “κράτο”, poder) é o regime político em que todo o poder se origina do povo. Em nossa Constituição está dito: “Todo o poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente”. É lindo, não é?

Ela, a democracia, parece estar presente em todo o processo eleitoral, mas somente parece. Acontece que, no Brasil, os partidos políticos têm donos que se assenhoram da máquina e impõem sua vontade, prostituindo o conceito de democracia. Esses senhores fazem o que querem, escolhem os candidatos e a distribuição dos recursos do fundo partidário. E o povo? Ora, o povo! O povo é apenas massa de manobra desses senhores que transformam os partidos políticos em verdadeiros feudos, nos quais eles mandam e, mais que isso, desmandam.

As eleições que se aproximam são um exemplo clássico desse proceder. Para angariar votos, vale tudo, inclusive candidatos inexpressivos, sem plataforma nenhuma, mas que são simpáticos e possíveis puxadores de votos para reforçarem a votação das legendas. As redes sociais das quais participo dão um exemplo típico. Tenho recebido mensagens pedindo meu voto, oriundas de pessoas que conheço e, também, de outras que não conheço e de quem nunca ouvi falar. Tem de tudo. De pagodeiro a doutores, de intelectuais a gente do povo, de políticos profissionais a estreantes, dos que apresentam enredos de planos de ação aos que apelam para a excitação de sentimentos. No entanto, a grande maioria se apega a nomes como Bolsonaro ou Lula.

O que esses senhores e senhoras se esquecem é de que as próximas eleições têm caráter municipal, têm a ver com o cotidiano da cidade em que moramos; aqui, no nosso caso, a cidade de Natal, uma urbe cheia de problemas que nunca são resolvidos, dos mais simples aos mais sérios. Por exemplo: quase ninguém fala do nosso eterno problema de saneamento básico, do desmantelo que é o transporte público, da desatualização do Plano Diretor que engessou o desenvolvimento urbano. Há, dirão, mas esses são problemas que exigem grandes recursos ou grandes trabalhos. Sim, no entanto é para resolver grandes problemas que existem prefeitos e vereadores. Os pequenos, os funcionários burocráticos resolvem sozinhos.

O que falta é vontade política para resolvê-los, inclusive os pequenos assuntos controversos. Quer exemplos? Temos aos montões. Entram e saem governantes e ninguém resolve a questão da numeração das edificações de nossas ruas, avenidas e praças. Localizar um número é enfrentar uma loucura organizada. Em alguns logradores, não há um segmento lógico, há repetição de números, um número alto é seguido de um número baixo e assim por diante. Para completar a loucura, a maioria das ruas não têm placas nos cruzamentos.

Outra loucura é a altura das calçadas. Saindo dos bairros centrais, encontramos calçadas de todas alturas, umas baixas e outras altas, umas seguidas das outras. Completam o quadro da desordem os rebaixamentos ou as elevações para as entradas dos carros. As pessoas, principalmente as com deficiência de locomoção, que se lixem.                 

Não vi nem ouvi nenhum candidato falar nesses problemas; são pequenos demais para eles se envolverem. O foco deles é se apresentarem como simpáticos ou seguidores dessa ou daquela corrente, de direita ou de esquerda. A maioria pensa apenas em se dar bem.

 

Tribuna do Norte. Natal, 10 out. 2020.

 

 



 

LUCIA HELENA

(Depoimento do ex-presidente da UBE-RN, Eduardo Gosson, acerca da escritora LUCIA HELENA)

 

Tem pessoas que passam em nossas vidas e não acrescentam  nada; outras deixam marcas profundas. LUCIA HELENA PEREIRA pertencia a esse segundo grupo. Nascida em Ceará-Mirim pertencia à aristocracia do  açúcar.

Neta da escritora MADALENA ANTUNES (primeira mulher a escrever um romance no RN e JUVENAL ANTUNES, poeta, morou um tempo no Acre, onde foi Promotor de Justiça. Ficou famoso com o seu poema Elogio à preguiça.

Neta de MADALENA ANTUNES  e sobrinha de JUVENAL ANTUNES, logo estaria familiarizada\com o fazer literário.

Presidiu por 10 anos a ASSOCIAÇÃO DE MULHERES JORNALISTAS E ESCRITORAS – AJEB-RN.

Passei a conhecê-la  durante um sarau que realizei na  livraria  AS BOOK. O saudoso ENÉLIO PETROVICH foi quem fez a ponte entre nós.

Reconstruída a UBE-RN logo veio a ocupar a Diretoria de Divulgação onde realizou um profícuo trabalho. Foi uma assessora eficiente. Pronta para combater o bom combate a qualquer hora. Certa vez liguei para ela  às 2 horas da madrugada para contar-lhe um fato extraordinário.

Tinha uma qualidade nobre: dizia o que pensava. Não se importava se voava pedaço para todo lado. Corajosa, certa vez fui deixa-la em  sua residência, em Lagoa Nova. Durante o trajeto um carro, ocupado por dois homens,  quase batia  em nós. Um deles gritou: -sai do meio se não passo por cima de vocês! Provocaram e foram adiante. Ela olhou para mim e disse: - Dudu, acelere o carro atrás daqueles bandidos. Tentei com muito jeito demovê-la desta atitude.

Pessoas assim o mundo está carente: coragem e caráter íntegro.

LUCIA, como você está fazendo falta a todos os que ficamos neste Vale de  Lágrimas. Fundaremos uma  UBE pertinho de JESUS.

Abraço do seu amigo

Eduardo Gosson  

09/10/2020



 

Os cafés e a festa
Posso dizer que dois livros me fizeram passar temporadas fora do Brasil. Um deles foi “Amor a Roma” (1982), do nosso Afonso Arinos de Melo Franco (1905-1990), sobre o qual até já escrevi. O outro foi “Paris é uma festa” (“A Moveable Feast”, 1964), de Ernest Hemingway (1899-1961). Os respectivos títulos já informam sobre quais cidades estamos falando.
Ernest Hemingway, americano, prêmio nobel de literatura em 1954, é autor de textos clássicos. Contos e romances eram sua especialidade. Esportista, namorador, expatriado, membro da chamada “geração perdida”, infelizmente acabou tirando a própria vida em 1961. “Paris é uma festa” é um livro de memórias. Foi escrito no fim dos anos 1950 para o começo dos 1960, em estadas do autor em Cuba, na Espanha e em Idaho/EUA. Mas são memórias sobre uma Paris dos anos 1920, quando muitos escritores norte-americanos, com o dólar favorável, conseguiram ali viver “confortavelmente”. Hemingway, Gertrude Stein (1874-1946), Erza Pound (1885-1972), F. Scott Fitzgerald (1896-1940) e outros menos votados. Juntos e misturados.
Em 2006, com “Paris é uma festa” na cabeça, eu parti para a França. Na terrinha, havia deixado coisas inacabadas, que perturbavam a minha paz. A ideia era passar uns três ou quatro meses longe delas. Logo tomei quarto num pequeno hotel na Rue Madame, em Saint-Germain-des-Prés. No meu tempo, o estabelecimento era muito simples, quase uma pensão. Voltei lá para dar uma espiada faz uns dois anos. Está remodelado e chique. Chama-se agora La Villa Madame e não é mais coisa para estudante. Matriculei-me também na Alliance Française Paris Ile-de-France, que fica no número 101 do Boulevard Raspail, nas abas do bairro de Montparnasse, muitíssimo perto de onde eu estava morando. Foi uma das mais acertadas decisões que tomei. Essa Aliança de Paris, mais do que uma escola, é um espaço cultural fantástico. E, deixando todas as minhas preocupações no Brasil, aqueles meses sabáticos foram uma verdadeira catarse.
Estou quase certo de que a minha paixão – ou vício, já que devo coisas a Deus e ao diabo – por café e cafés começou naquela época. Paixão à la Hemingway, que também virou um habitué dos cafés de Paris. Como anota Jessica Powell, em “Literary Paris: a Guide” (The Little Bookroom, 2006), sobre o autor de “Paris é uma festa”: “La Closerie des Lilas e Le Dôme estavam entre os seus favoritos, mas havia também o Dingo Bar (então no número 10 da rua Delambre), onde ele pela primeira vez encontrou-se com F. Scott Fitzgerald, e Le Falstaff (42, rua do Montparnasse), que ainda serve comida inglesa e bebidas. A Brasserie Lipp (151, boulevard do Saint-Germain) era boa para cerveja e comida alsaciana, e Les Deux-Magots para um café crème com James Joyce. (…). Mesas de cafés frequentemente serviam como sua escrivaninha, e ocasionalmente são retratadas nos seus trabalhos. O Café de la Paix (ainda no número 5, praça de l'Opéra) foi o pano de fundo para o seu conto My Old Man, enquanto o Dingo Bar serviu de cenário para A Sea Change. E, em The Sun Also Rise, a personagem Jack alega: ‘partindo da margem direita do rio, não importa para qual café em Montparnasse você peça ao taxista para lhe deixar, ele sempre vai levar você para o Rotonde’”.
Assim como Hemingway, eu frequentei os cafés do Boulevard Montparnasse e, sobretudo, os do Boulevard Saint-Germain, sempre vendo a rua passar. Escrevi quase nada. Mas bebi muito. Café, vinho e outras coisas mais, embora não quisesse fazer parte de geração perdida alguma. Coisas inusitadas aconteceram, claro. A bela e elegante dama de Bilbao, casada, que sempre insistia em me pagar um vinho no Les Deux-Magots. Ainda hoje me pergunto o que ela queria a mais com aquilo. E havia, também, as garotas de Chicago, fãs de jazz e leitoras de Maurice Merleau-Ponty (1908-1961). Tirando a chatice do filósofo, elas eram divertidíssimas, podem ter certeza. Mas isso são outras histórias, que nem sei se devo contar aqui.
De toda sorte, há uma frase mais que famosa de Hemingway: “Se, na juventude, você teve a sorte de viver na cidade de Paris, ela o acompanhará sempre até ao fim da sua vida, vá você para onde for, porque Paris é uma festa móvel”.
Marcelo Alves Dias de Souza
Procurador Regional da República
Doutor em Direito (PhD in Law) pelo King’s College London – KCL
Taciana Jales e outras 4 pessoas
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